O gigante enterrado (The buried giant), Kazuo Ishiguro. 396 páginas. Tradução de Sonia Moreira. Editora Companhia da Letras, São Paulo, 2015.
Há alguns meses, o fandom mundial
de ficção fantástica agitou-se com as polêmicas declarações do escritor
nipobritânico Kazuo Ishiguro a propósito do seu romance O gigante enterrado,
uma história na tradição arturiana com inúmeros elementos de fantasia
heróica medieval, rótulo que o autor fez questão de negar com
comentários algo preconceituosos. Importantes autores do gênero reagiram
às opiniões de Ishiguro, que moveu uma verdadeira campanha para
contornar o mal estar criado pelo debate público. Ficou a suspeita de
ter sido uma polêmica deliberada, pois o debate só fez aumentar o
interesse pelo livro que a editora Companhia das Letras trouxe ao
público brasileiro em 2014, com tradução de Sonia Moreira.
O que causou mais estranheza nas incômodas declarações de Ishiguro foi o fato dele já ter pelo menos um outro bestseller de gênero, a ficção científica Não me abandone jamais (Never let me go),
uma história sobre clonagem de seres humanos já adaptada para o cinema.
Menos mal, pois o debate ajudou a construir uma ponte, ainda que
frágil, entre as muitas definições de fantasia que navegam nos ambientes
do fandom e do mainstream.
O tenso bailado entre o mainstream e
a ficção de gênero é recorrente não apenas na literatura, mas em todas
as mídias. Trata-se do velho choque entre as artes erudita e a popular,
que motivou mais de um paladino a propor manifestos e movimentos de
resistência cultural, como por exemplo, o Movimento Armorial de Ariano
Suassuna. Tanto é que, poucas semanas depois, a conhecida escritora
infantojuvenil Ana Maria Machado fez declarações muito similares ao
discurso de Ishiguro, com os mesmos resultados dentro do fandom brasileiro.
O gigante enterrado
instala-se num momento imediatamente posterior a queda de rei Arthur.
Contudo, apesar da ausência do soberano, a paz entre bretões e saxões
continua, contrariando todas as expectativas em contrário. Os dois povos
seguiam vivendo juntos e misturados, apesar das incontornáveis
diferenças passadas que foram o maior problema ao longo do reinado de
Arthur.
A história é contada a partir da vida do casal ancião Axl e
Beatrice, que decidiu abandonar a comunidade na qual viviam para fazer
uma visita ao filho, que morava numa aldeia distante. Mas algo não vai
bem. A névoa que predomina a paisagem britânica parece ser a causa do
peculiar comportamento das pessoas que, fácil e rapidamente, se esquecem
das coisas. Não é diferente com o casal de anciãos, que também tem
dificuldade de lembrar de seu passado e até da localização exata da
aldeia em que mora o filho. Mesmo assim, lançam-se à aventura e sua
jornada vai revelar não apenas a origem da estranha névoa do
esquecimento, mas também os motivos que a trouxeram para um mundo à
beira de se transformar para sempre. Ao longo do caminho, o casal vai se
envolver com os protagonistas da dramática mudança que está por vir: o
guerreiro saxão Wistan, cuja missão é matar a perigosa e traiçoeira
dragoa Querig, o jovem estigmatizado Edwin, que foi mordido por um
filhote de dragão e agora é protegido de Winstan, e um envelhecido Sir
Gawain, último remanescente da prestigiosa Távola Redonda, que parece
saber muito mais do que dá revelar. Ogros, fadas malignas, bruxas e
outros seres mitológicos também vão surgir no longo e duro caminho de
Axl e Beatrice. Apesar da evidente fragilidade física dos protagonistas,
a história tem muita ação e violência, com uma conclusão dramática
cheia de significados que certamente mudam conforme a percepção do
leitor.
Japonês de nascimento, Ishiguro cresceu e foi educado na
Inglaterra, para onde se mudou aos cinco anos de idade; sua literatura
está, portanto, classificada como de língua inglesa. Contudo, podemos
perceber influências da cultura japonesa em alguns momentos de O gigante enterrado, sobretudo nos duelos de espada, muito similares aos das histórias de samurais, nos quais tudo se resolve num único golpe.
Não há dúvida que O gigante enterrado
é diferenciado do modelo de fantasia heroica que os leitores de nicho
estão acostumados, não apenas pelo fato dos protagonistas serem idosos
em contraposição aos adolescentes imberbes que infestam o gênero, mas
por um conjunto de detalhes que vão de um estilo literário algo mais
sofisticado, dos mecanismos narrativos, dos temas propostos à discussão e
do final aberto e nada redentor. E, ainda que se possa perceber um
pouco da famigerada "jornada do herói" no enredo, o autor o subverte em
vários momentos, o que certamente o diferencia, mas não o suficiente
para descaracterizá-lo como um romance de gênero como desejava o autor.
O gigante enterrado
é uma leitura inteligente e acessível, embora um tanto perturbadora
quanto as expectativas à fantasia heroica; é preciso estar disposto a
rever alguns dos conceitos do gênero; um romance para o leitor que gosta
de ser desafiado, portanto.
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