Ficção de polpa – Volume 1, Samir Machado de
Machado, organizador. 132 páginas. Editora Fósforo. Porto Alegre: Editora
Fósforo, 2007.
Este lançamento foi a maior surpresa no mercado
editorial brasileiro em 2007, com relação aos autores nacionais. Menos pelo
conteúdo e mais pela proposta. A começar é, fundamentalmente, um livro que
procura resgatar um espírito pulp para a literatura nacional que, como
lembra o organizador, nunca existiu da maneira como nos Estados Unidos aqui no
Brasil. E a proposta vai fundo no que se propõe, pois a própria edição é em
formato das revistas pulps americanas, a não ser pelo tamanho, que era
maior. A ilustração de capa de Gisele Oliveira, com uma linda loura acorrentada
prestes a ser atacada por um maníaco, era a norma destas revistas. Abrindo as
páginas, vemos que os textos estão divididos em duas colunas, como também
ocorria nas revistas, há ilustrações internas para alguns contos e por aí vai.
Se não por qualquer outro motivo, a iniciativa já seria elogiosa, pela
criatividade e competência em recriar uma típica pulp magazine. Mas
vamos ao principal, o conteúdo.
O organizador situa a proposta e os temas a serem
apresentados na antologia e já observa que “a maior parte dos textos pendeu
para o lado do horror, mesmo que dentro de um contexto fantástico ou de ficção
científica”. Esta informação ajuda
também a situar melhor a qual gênero as 16 histórias pertencem, pois pela capa
os três gêneros eram igualmente anunciados.
O primeiro conto pertence ao organizador e chama-se “O
homem que criava fábulas”. É a história de um sujeito que vai passar um fim de
semana numa fazenda de uma amiga de sua falecida vó. Lá ele conhece animais
produzidos por manipulação genética, inspirados na fantasia e mitologia
universal, como o unicórnio e o pégaso. Mas as coisas começam a dar errado um
dos animais ataca o marido da amiga da avó. A prosa é fluente e o texto mantém
o interesse, sendo mais efetivo por isso do que tema, mais uma variação sobre
os monstros do Doutor Moreau de H.G. Wells.
O segundo conto é “Carne”, de Guiherme Smee. Um sujeito
acorda com fome e dor de cabeça. Logo percebe que não conhece o lugar onde
está. Além disso, tudo ao seu redor está desarrumado e destruído. A forme e o
mal estar só aumentam e ele precisa de carne. Aos poucos e de maneira
convincente percebe-se que o autor subverte o ponto de vista das histórias de
mortos-vivos. O mundo foi devastado e a história é contada de um ângulo diverso
do convencional. Muito bom, intenso e ousado.
O próximo é “Lingüista”, de Rodrigo Rosp. História de
gosto duvidoso sobre um casal que tem um sexo intenso, especialmente com o uso
da língua. A sensação de desconforto não é pelas cenas de sexo, mas do que
passa a ocorrer quando ele resolve deixá-la por sentir-se submisso nas relações
sexuais. Basta dizer que ela estudava e, literalmente, colecionava línguas
mortas.
Um conto na linha absurdista é “Cosmologia ou de como
uma simples coceita pode mudar a vida de alguém”, de Marcelo Juchem. Um sujeito
tem uma coceira na orelha, vai coçando, mas ela só aumenta. Desesperado, nota
que algo grande e inexplicável vai saindo do seu ouvido.
Mais um conto que trabalha com uma situação estranha e
inusitada é “Os estranhos”, de Gustavo Faraon. Um menino é o último a aguardar
a chegada da mãe na saída da escola. Como ela demora, resolve ir ao banheiro e
se depara com pessoas estranhas – vestidos como médicos – que fazem exames nele
e em outras crianças. Os aprovados são liberados e os reprovados ficam retidos
dentro da escola. Quando percebe já é dia e ele tem de ir para a sala de aula,
como se nada tivesse acontecido. Ele ouve sons estranhos de uma construção na
escola, mas sabe que são daqueles que ficaram presos. É um conto com uma
atmosfera angustiante, que trabalha na questão da imaginação de uma criança,
não ficando claro se tudo aconteceu mesmo ou não.
Já “Dias de fome, noite de cão”, de Sérgio Napp é uma
história aparentemente convencional na figura de um sujeito que vem à cidade
grande em busca de emprego, não encontra e vive faminto pelas ruas. A certa
altura entra em uma casa aparentemente desabitada e encontra o horror absoluto
na forma de um enorme cão preto.
Rafael Spinelli assina “O homem dos ratos”. Um sujeito
não consegue se desfazer de nada. Acumula tudo e isso vira um problema grave
para sua mulher, em meio a lixo e bugigangas pela casa toda. Embora soe como
loucura, vez por outra são noticiados casos semelhantes. Mas talvez não com o
desfecho deste conto.
O próximo é uma eficaz cena de terror psicológico.
“Tempestade em Coney Island”, de Rafael Kasper narra uma fortíssima tempestade
e os efeitos que provoca em uma mulher enquanto o marido sai para comprar
cerveja. Tão bem narrado que fica no limite entre o suspense e o horror quase
sobrenatural.
Na seqüência temos “Ventre”, de Roberta Lorini. Um filho
mal cuidado por seus pais, mata a mãe, retirando-lhe o útero. E assim prossegue
tornando-se um psicopata. Ao mesmo tempo, o texto é intercalado por um delegado
solitário e bem-sucedido, disposto a não só prender, mas matar o criminoso. Uma
história curta e bem narrada, em que mesmo o final surpresa encaixa-se bem
dentro do contexto.
“Fungui”, de Luciana Thomé segue a tendência, com uma
situação bizarra acontecendo e invertendo o próprio sentido do terror.
Cogumelos nascem por toda casa, deixando uma mulher primeiro sedenta e depois
tomada de puro desespero.
Alessandro Garcia é o próximo autor com o seu “Vãos”, o
texto mais longo do volume. Contada em tons intimistas, os sentimentos do
protagonista dão o tom, ao relatar seus problemas pessoais, como um mau casamento,
a morte mal explicada de um funcionário de sua fazenda, um filho mimado e de
comportamento misterioso. É um suspense psicológico que se anuncia como sobrenatural,
mas fica no plano realista, pois não há nenhum elemento fantástico. O que
mantém o interesse é a prosa habilidosa e as intenções subjetivas dos
personagens, deixando ‘vãos’ de expectativas para o leitor.
A seguir temos “A meia-noite do fim do mundo”, de
Fernando Mantelli. Digo que o melhor
está no título. A história não passa de um pastiche pouco inspirado e
previsível de H.P. Lovecraft. Talvez funcionasse em um fanzine, não deveria ser
publicado nesta antologia.
Já “Cabeça-de-arroz”, de Annie Piagetti Müller, explora
mais uma história bizarra. Agora é a vez de Nilce, uma mulher viciada em arroz
(!). O conto tem o mérito de ser o primeiro do livro a não ser narrado em
primeira pessoa até aqui, pois o recurso estava repetitivo e cansativo.
Contudo, a narrativa é previsível quanto ao desfecho, aliás na mesma toada de
outros contos.
Assim como também “Fígado”, de Silvio Pilau. Uma outra
premissa absurda, quando um fígado bate à porta de um alcoólatra dizendo que
vai matá-lo por maltratá-lo por tantos anos. Talvez o personagem estivesse
tendo deliriuns tremens ou algo do tipo, mas o conto não faz questão de
sutilezas em sua proposta moralista sobre o vício da bebida.
“O desvio”, de Antônio Xerxeneski é como “Carne”, um
conto que brinca com os clichês, procurando subvertê-los. Um viajante solitário
em uma estrada deserta dá carona a uma garota, vestida no estilo gótico. Tudo
vai bem, até que um anuncia ao outro que é o diabo. Paira uma certa dúvida
durante a leitura, mas o fato é que um estava assustando o outro. Porém, um
desvio os espera numa próxima curva que nunca aparece para, provavelmente,
definir o destino de ambos. Ótimo conto.
Mas o melhor trabalho ficou para o final. Refiro-me a
“Quando eles chegaram”, de Rafael Bán Jacobsen. O argumento é simples e dos
mais retratados: Uma invasão extraterrestre em nosso planeta. De início
pacíficos, misturam-se aos humanos na condução do poder e dos negócios e por
fim revelam suas reais intenções de nos transformarem um fonte de sua
alimentação. Até aí também sem novidades, há ecos de O fim da infância,
de Arthur C. Clarke e da minissérie televisiva V, a batalha final. Mas a
força da narrativa impacta e choca por sua frieza e indiferença com que a
matança é realizada e a total impotência com que os humanos são dominados,
submetidos e eliminados. Muito efetivo também é o uso da primeira pessoa, com o
protagonista contando a tragédia de seu ponto de vista.
Ficção de polpa ainda reserva uma seção chamada
de “Faixa bônus”, que dá ainda mais charme à sua proposta pulp,
apresentando um conto de H.P. Lovecraft, “O cão de caça”, o primeiro a
mencionar o Necronomicon e um making-off interessante mostrando o
processo de criação da ilustração da capa.
Vale mencionar também que esta é uma antologia regional
e, mais que isso, gaúcha. Quase todos os autores lá nasceram ou moram lá há
muito tempo. São em sua maioria relativamente jovens, entre os 20 e 30 anos e
atuam no campo literário ao lado de ocupações profissonais na área de
comunicação e ciências exatas. Estes fatos certamente significam algo para a
comunidade brasileira de ficção científica, pois mostra que existe grupos de
autores atuando por fora de suas fronteiras, talvez como efeito da
internet e da própria decadência do fandom em integrar os novos
interessados, principalmente de uns dez anos para cá.
É curioso que este livro tenha aparecido justamente em
meio a uma polêmica sobre as virtudes de uma ficção pulp, como defendida
por Ana Cristina Rodrigues e Alexandre Lancaster, em artigo publicado no
fanzine Scarium n.19, de junho de 2007.[1]
Que este tipo de história tem seus encantos é indiscutível, mas não a concepção
pulp dos autores do artigo que entendem que sua simples expressão
prescindiria de uma busca por qualidade literária, desqualificando mesmo
propostas pretéritas e atuais que procuram conciliar uma boa história com um
bom texto. Ora, este Ficção de polpa, acaba por ser uma resposta
involuntária, pois afirmando uma proposta pulp, procurou primar por um
vocabulário e estilos relativamente elaborados, mostrando que é não só possível
como desejável contar boas histórias através da busca por uma boa literatura. É
certo que o resultado do livro é um pouco desigual, mas percebe-se o esforço
dos autores em produzir pulps com algo mais do que simples pulps,
à maneira do que faziam os americanos nos anos 20 e 30 do século passado e que,
a dupla de autores do referido artigo, quer parecer ressussitar.
Samir Machado de Machado já divulgou os autores e os
contos de uma segunda edição do livro, prevista para publicação em 2008. Se o
resultado geral desta antologia é de razoável para bom, com muitos contos
semelhantes quanto à temática e um pendor por vezes exagerado para o escatológico
e o sensacional, o saldo é positivo pela iniciativa em si, abrindo uma boa
expectativa de que no mínimo, o mesmo nível possa ser mantido na próxima
edição.
– Marcello Simão Branco
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