Fenda no Espaço (The Crack in Space), Philip
K. Dick. Tradução de Elisabeth Marques Jesus de Sousa. Publicações
Europa-América, coleção Ficção Científica, n.79, Portugal. Publicado
originalmente em 1966, 160 páginas.
Este pequeno
romance de Philip K. Dick foi publicado originalmente como uma novela na
revista Fantasy & Science Fiction em 1964, com o título de “Cantata 140”. Faz alusão
à peça musical de mesmo nome de Johann Sebastian Bach (1685-1750), em que
pessoas despertariam depois de um longo sono. Dois anos depois surgiu ampliada
e com o título definitivo, que faz referência à descoberta de um universo
alternativo.
Fenda no Espaço nos mostra os Estados
Unidos em 2080 às voltas com uma questão das mais controversas da história da
política do país: a possibilidade de um negro chegar à Casa Branca. Aqui não
vemos a exposição a partir de uma perspectiva anti-negro, como a do romance O Presidente Negro (1926), de Monteiro
Lobato, mas, ao invés, a narrativa é conduzida a partir de Jim Briskin, o postulante negro à Presidência.
É quase
automático pensar na frase que já se tornou um clichê: “Mais uma vez a
realidade superou a ficção”, pois Barack Obama chegou ao principal cargo do
país em 2009. Contudo, como se percebeu ao longo de seus dois mandatos, se a questão
racial melhorou, ainda está longe de ser um consenso, e parte das dificuldades
que o governo enfrentou junto à oposição republicana pode ser explicado por
causa da cor da pele do presidente.
Como só numa
história escrita por Dick este é apenas o ponto de partida provocador para a
apresentação de uma sociedade com soluções sociais, diria, bizarras, imaginadas
nos anos 1960 para uma América de 120 anos depois. Num país superpopuloso o
capitalismo não conseguiu integrar milhões de pessoas à economia, e optou-se
por colocar os pobres e desempregados para um sono criogênico, mantidos por uma
estatal do governo. Isso já seria sui-generis
e mesmo impensável nos dias de hoje, mas a questão também se complica pelo fato
da maioria das pessoas colocadas nesta condição serem negros e
latino-americanos. De forma perversa o país tirou do convívio social os
não-brancos! Ao que parece mais do que uma solução para a estagnação da
economia resolveu-se uma questão social, ao isolar os brancos da crescente
população negra e latina que em nossa realidade deverá ser maioria nos Estados
Unidos em meados deste século. Pois a candidatura de Briskim busca como
primeira meta, justamente, acabar com esta situação desumana, e a questão mais
candente da campanha presidencial dele e do presidente Bill Schwarcz é a
terraformação de um planeta do sistema solar, possivelmente Marte, para onde
seriam enviados os bibs, como são
chamados os dezenas de milhões de adormecidos.
Tudo muda,
entretanto, quando uma máquina pertencente a uma das maiores corporações do
país, devido a uma falha de funcionamento, descobre uma fenda no espaço, que dá
para outro planeta. Mas em pouco tempo chega-se à conclusão de que este outro
planeta, em tudo semelhante à Terra, é uma outra Terra! Muito mais despovoada
do que a de nosso universo, surge como uma solução mais barata e imediata para
a questão dos bibs. Briskim não perde
tempo e anuncia que, se eleito, transferirá os adormecidos para se tornarem os
colonos de um novo mundo. Precipitado devido ao calor da campanha saberá pouco
depois que a outra Terra está povoada não por Homo Sapiens, mas por Homo
Erectus ou, como chamados no livro, por homens de Pequim.
As expedições
enviadas constatam que os pequins – como são chamados de forma pejorativa –
evoluiram num mundo sem os homo sapiens, e por isso não se extinguiram.
Desenvolveram uma civilização em que os instrumentos são quase todos baseados
na madeira, e não no metal e no plástico. Em termos materiais vivem de forma
muito modesta, mas escondem segredos tecnológicos com os quais os homo sapiens nem imaginam.
Pois mesmo com
a descoberta de outra civilização o presidente começa uma transferência em
massa de bibs para a outra Terra,
numa tentativa desesperada de se reeleger. Pouco importa como irão viver lá,
como será a convivência com os pequins, que se trata na verdade de uma invasão.
Afinal são todos cidadãos de segunda categoria.
Neste contexto
de iminente conflito entre os sapiens
e os pequins, de forma esperta o mutante George Walt, uma pessoa com uma cabeça
em dois corpos, dono do bordel orbital Paraíso Dourado – destino cotidiano de
nove entre dez políticos do pais, sendo Briskim a exceção –, vai para a Terra
alternativa e se apresenta como um ser diferente e por sua excentricidade física
acaba adotado como um líder entre os homens de Pequim. Caberá a Briskim a
missão difícil de negociar com Walt para evitar que os pequins invadam a nossa
Terra, em represália ao envio dos bibs.
Como se
percebe é fundamentalmente um romance de enredo, em que várias ideias
interessantes são propostas de forma especulativa e socialmente provocadora, no
qual Dick endereça muitas críticas à sociedade de seu tempo, conflagrada pela
emancipação dos direitos civis (negros e mulheres) e a uma guerra impopular,
como a do Vietnã, que remete aos asiáticos, da mesma origem ancestral do Homo Erectus.
Se o que mais
importa são as ideias, o desenvolvimento dos personagens fica num plano
secundário, mas eles não são totalmente bidimensionais como poderia se imaginar,
pois, afinal, Dick sabe como construir personagens interessantes, como o Jim
Briskim, George Walt, Leo Turpin – o centenário dono da corporração
Desenvolvimento Terrestre – responsável pelos programas de terraformação e com
monopólio de transferência dos bibs à
outra Terra –, o detetive particular Tito Cravelli, o pragmático assessor da
campanha de Briskim, Sal Heim, e outros.
Fenda no Espaço talvez seja pouco
lembrado mesmo entre os fãs de Dick por ter sido escrito no apogeu de sua
carreira, quando entre os anos 1960 a meados dos 1970 publicou vários romances
clássicos que faziam uma referência maior a outros temas mais desenvolvidos por
ele, como os problemas relativos às religiões, drogas e o individualismo na
sociedade contemporânea. Entre outros, O
Homem do Castelo Alto (1962), Ubik
(1969) e Identidade Perdida (1974).[1] Mesmo
assim Fenda no Espaço é um livrinho
poderoso em suas muitas sacadas que tiram o leitor do lugar comum, e mesmo
quando algumas são inverossímeis têm o mérito de fazê-lo se posicionar.
Inédito no
Brasil poderia ser considerado a publicação deste romance que tem como outro mérito
um ar de não se levar muito a sério, como as muitas ideias e reviravoltas
acontecendo a todo o momento, boas doses de humor e observações satíricas sobre
a sociedade norte-americana – e ocidental, por extensão – e o arrojo de
apresentar soluções pouco convencionais para as especulações propostas.
– Marcello Simão Branco
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