sábado, 6 de fevereiro de 2016

Fenda no Espaço, Philip K. Dick

Fenda no Espaço (The Crack in Space), Philip K. Dick. Tradução de Elisabeth Marques Jesus de Sousa. Publicações Europa-América, coleção Ficção Científica, n.79, Portugal. Publicado originalmente em 1966, 160 páginas.

Este pequeno romance de Philip K. Dick foi publicado originalmente como uma novela na revista Fantasy & Science Fiction  em 1964, com o título de “Cantata 140”. Faz alusão à peça musical de mesmo nome de Johann Sebastian Bach (1685-1750), em que pessoas despertariam depois de um longo sono. Dois anos depois surgiu ampliada e com o título definitivo, que faz referência à descoberta de um universo alternativo.
Fenda no Espaço nos mostra os Estados Unidos em 2080 às voltas com uma questão das mais controversas da história da política do país: a possibilidade de um negro chegar à Casa Branca. Aqui não vemos a exposição a partir de uma perspectiva anti-negro, como a do romance O Presidente Negro (1926), de Monteiro Lobato, mas, ao invés, a narrativa é conduzida a partir de Jim  Briskin, o postulante negro à Presidência.
É quase automático pensar na frase que já se tornou um clichê: “Mais uma vez a realidade superou a ficção”, pois Barack Obama chegou ao principal cargo do país em 2009. Contudo, como se percebeu ao longo de seus dois mandatos, se a questão racial melhorou, ainda está longe de ser um consenso, e parte das dificuldades que o governo enfrentou junto à oposição republicana pode ser explicado por causa da cor da pele do presidente.
Como só numa história escrita por Dick este é apenas o ponto de partida provocador para a apresentação de uma sociedade com soluções sociais, diria, bizarras, imaginadas nos anos 1960 para uma América de 120 anos depois. Num país superpopuloso o capitalismo não conseguiu integrar milhões de pessoas à economia, e optou-se por colocar os pobres e desempregados para um sono criogênico, mantidos por uma estatal do governo. Isso já seria sui-generis e mesmo impensável nos dias de hoje, mas a questão também se complica pelo fato da maioria das pessoas colocadas nesta condição serem negros e latino-americanos. De forma perversa o país tirou do convívio social os não-brancos! Ao que parece mais do que uma solução para a estagnação da economia resolveu-se uma questão social, ao isolar os brancos da crescente população negra e latina que em nossa realidade deverá ser maioria nos Estados Unidos em meados deste século. Pois a candidatura de Briskim busca como primeira meta, justamente, acabar com esta situação desumana, e a questão mais candente da campanha presidencial dele e do presidente Bill Schwarcz é a terraformação de um planeta do sistema solar, possivelmente Marte, para onde seriam enviados os bibs, como são chamados os dezenas de milhões de adormecidos.
Tudo muda, entretanto, quando uma máquina pertencente a uma das maiores corporações do país, devido a uma falha de funcionamento, descobre uma fenda no espaço, que dá para outro planeta. Mas em pouco tempo chega-se à conclusão de que este outro planeta, em tudo semelhante à Terra, é uma outra Terra! Muito mais despovoada do que a de nosso universo, surge como uma solução mais barata e imediata para a questão dos bibs. Briskim não perde tempo e anuncia que, se eleito, transferirá os adormecidos para se tornarem os colonos de um novo mundo. Precipitado devido ao calor da campanha saberá pouco depois que a outra Terra está povoada não por Homo Sapiens, mas por Homo Erectus ou, como chamados no livro, por homens de Pequim.
As expedições enviadas constatam que os pequins – como são chamados de forma pejorativa – evoluiram num mundo sem os homo sapiens, e por isso não se extinguiram. Desenvolveram uma civilização em que os instrumentos são quase todos baseados na madeira, e não no metal e no plástico. Em termos materiais vivem de forma muito modesta, mas escondem segredos tecnológicos com os quais os homo sapiens nem imaginam.
Pois mesmo com a descoberta de outra civilização o presidente começa uma transferência em massa de bibs para a outra Terra, numa tentativa desesperada de se reeleger. Pouco importa como irão viver lá, como será a convivência com os pequins, que se trata na verdade de uma invasão. Afinal são todos cidadãos de segunda categoria.
Neste contexto de iminente conflito entre os sapiens e os pequins, de forma esperta o mutante George Walt, uma pessoa com uma cabeça em dois corpos, dono do bordel orbital Paraíso Dourado – destino cotidiano de nove entre dez políticos do pais, sendo Briskim a exceção –, vai para a Terra alternativa e se apresenta como um ser diferente e por sua excentricidade física acaba adotado como um líder entre os homens de Pequim. Caberá a Briskim a missão difícil de negociar com Walt para evitar que os pequins invadam a nossa Terra, em represália ao envio dos bibs.
Como se percebe é fundamentalmente um romance de enredo, em que várias ideias interessantes são propostas de forma especulativa e socialmente provocadora, no qual Dick endereça muitas críticas à sociedade de seu tempo, conflagrada pela emancipação dos direitos civis (negros e mulheres) e a uma guerra impopular, como a do Vietnã, que remete aos asiáticos, da mesma origem ancestral do Homo Erectus.
Se o que mais importa são as ideias, o desenvolvimento dos personagens fica num plano secundário, mas eles não são totalmente bidimensionais como poderia se imaginar, pois, afinal, Dick sabe como construir personagens interessantes, como o Jim Briskim, George Walt, Leo Turpin – o centenário dono da corporração Desenvolvimento Terrestre – responsável pelos programas de terraformação e com monopólio de transferência dos bibs à outra Terra –, o detetive particular Tito Cravelli, o pragmático assessor da campanha de Briskim, Sal Heim, e outros.
Fenda no Espaço talvez seja pouco lembrado mesmo entre os fãs de Dick por ter sido escrito no apogeu de sua carreira, quando entre os anos 1960 a meados dos 1970 publicou vários romances clássicos que faziam uma referência maior a outros temas mais desenvolvidos por ele, como os problemas relativos às religiões, drogas e o individualismo na sociedade contemporânea. Entre outros, O Homem do Castelo Alto (1962), Ubik (1969) e Identidade Perdida (1974).[1] Mesmo assim Fenda no Espaço é um livrinho poderoso em suas muitas sacadas que tiram o leitor do lugar comum, e mesmo quando algumas são inverossímeis têm o mérito de fazê-lo se posicionar.
Inédito no Brasil poderia ser considerado a publicação deste romance que tem como outro mérito um ar de não se levar muito a sério, como as muitas ideias e reviravoltas acontecendo a todo o momento, boas doses de humor e observações satíricas sobre a sociedade norte-americana – e ocidental, por extensão – e o arrojo de apresentar soluções pouco convencionais para as especulações propostas.

– Marcello Simão Branco




[1] Republicado pela editora Aleph em 2013 como Fluam, Minhas Lágrimas, Disse o Policial.

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