Memórias Encontradas numa Banheira (Pamiętnik znaleziony w wannie, de 1961), Stanislaw Lem, 180
páginas. Tradução de Mário Molina. Francisco Alves Editora, coleção Mundos da
Ficção Científica, n. 36, 1985.
Se fosse possível definir em uma palavra este
romance curto de ficção científica, seria “angustiante”.
Stanislaw Lem (1921-2006), mais conhecido como
autor do clássico Solaris (1961), é um autor muito complexo do ponto de vista
temático e intelectual. Sua verve satírica por vezes chega ao limite deste
recurso, tornando-o incômodo e amargo. Este livro é o que poderia ser chamado
de um dos mais "kafkianos" já escritos. Em qualquer relação dos
livros que mais levam à frente as influências do imaginário e temática de Franz
Kafka (1883-1924), este estaria na linha de frente, sem fazer feio ao que
concebeu o escritor tcheco. Lem é cuidadoso e esperto o suficiente para não se
calcar numa leitura explicitamente kafkiana, recusando a fácil acusação de
estar realizando mais um dos famigerados pastiches.
O autor polonês recobre a prosa de uma situação tão
absurda, que o próprio personagem que se indaga do absurdo em que está
inserido, transforma-se, ele mesmo, no próprio absurdo.
Memórias Encontradas numa Banheira divide-se em duas partes claramente
distintas. E o que torna o livro classificável como FC é o recurso à ciosa e
interessantíssima introdução (que vale por si), às “memórias” propriamente
ditas.
Uma praga de origem cósmica destrói os papéis de
nosso planeta. Os que existem e os que são construídos. Todos os documentos,
registros, livros e fontes de conhecimento e comunicação da humanidade baseados
no papel são perdidos.
Entramos em colapso e no futuro distante,
paleógrafos acham um manuscrito dentro de uma banheira em uma fortaleza
subterrânea. E passam a decifrar o significado deste manuscrito, as memórias
propriamente ditas, que passam a ser narradas em primeira pessoa, pelo sujeito
que se transformará no peregrino do absurdo, do desatino sem fim, de um ir e
vir em corredores, salas, escritórios, portas e elevadores à procura das
instruções de sua missão, seja ela qual for.
O autor faz um libelo contra a onipotência do
Estado totalitário. Sim, totalitário e não autoritário, pois em sua fortaleza
subterrânea de inspiração político-religiosa todos são servidores cegos de uma
ordem de reconstrução do mundo, só que esta ordem propriamente dita, dilui-se
no próprio absurdo de regras e procedimentos já sem sentido, porque não
questionados, apenas seguidos numa corrente sem fim de ordens, contra-ordens, ditames
e não ditames, onde a forma vale mais que o conteúdo, sem que se perca de vista
o peso da ideologia fundadora, mesmo que ela, em si, não faça mais sentido para
ninguém individualmente.
Se o foco de Lem é o socialismo polonês, reprodutor
imposto do soviético, sua alegoria política supera sua crítica factual, porque
ela fala, em ampla escala, de todas as formas de opressão e do nonsense maior da suprema burocratização
de todas as formas de relacionamento, no qual, nenhum humano é mais humano,
pois não se reconhece nenhuma chance de individualidade e espírito crítico, num
regime monolítico e opressor.
No fim da jornada nos resta apenas um sorriso
amargo e uma sensação de angústia e libertação. Pena que o personagem que
vislumbra uma saída do terror fique imerso em seus próprios medos e dúvidas e
se imiscua no terror que em vão ele procurou entender.
Uma obra inteligente, instigante, e mantém sua
atualidade como crítica que se pode fazer a qualquer forma de organização
social que não priorize a liberdade individual e a pluralidade de escolhas e
expressões humanas.
– Marcello Simão Branco
Bela resenha sobre um certamente belo livro.
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