30 Anos do Clube de Leitores de Ficção Científica
Marcello Simão Branco
Nos anos 1960 e 1970 boa parte dos
livros de ficção científica que apareceram nas livrarias e bancas de jornal brasileiras
eram coleções de bolso. Pequenos, baratos e relativamente perecíveis. Muito
semelhantes às revistas pulps
publicadas nos Estados Unidos nos anos 1930 e 1940. As coleções eram em sua
maioria de origem portuguesa: Antecipação, Argonauta, Europa-América; e
brasileiras, como Bruguera, Galáxia e Urânia, entre outras. Leitor e
colecionador de todos estes livrinhos, Roberto Cesar do Nascimento resolveu
escrever um livro sobre a coleção mais importante destas todas, a Argonauta,
publicada pela editora lusitana Livros do Brasil, desde o início dos anos 1950.
O livro chamou-se Quem é Quem na Ficção
Científica: Volume 1, A Coleção Argonauta (João Scortecci Editor, 1985) e,
ambicioso, Nascimento incluiu em seu final uma ficha de inscrição para a
criação de uma associação de leitores voltada ao gênero.
Como resultado concreto deste
sonho em conhecer outros como ele em seu amor e devoção à ficção científica,
foi fundado no dia 15 de dezembro de 1985 o Clube de Leitores de Ficção
Científica (CLFC), na cidade de São Paulo. Além do Nascimento, outros três são
considerados fundadores: Ivan Carlos Regina, Fritz Peter Bendinelli e Walter da
Silva Machado. Assinaram a ata, escreveram o estatuto, registraram em cartório
e publicaram o número zero do “Boletim do Clube de Leitores de Ficção
Científica”. Tudo muito organizado, característica principal do Nascimento.
Previsto para ser mensal, o
boletim só ganhou seu nome definitivo em julho de 1986, na sétima edição. Por
meio de um concurso promovido entre os sócios, o nome escolhido foi “Somnium”,
uma homenagem à história de mesmo nome publicada pelo astrônomo alemão Johannes
Keppler (1571-1660), numa sugestão do sócio José dos Santos Fernandes. Desde então
o Somnium representou um dos
principais centros de divulgação, publicação, debate e crítica da ficção
científica realizada no Brasil. Pelo menos nos anos iniciais, sob edição do
Nascimento, foi regular, característica que seria abandonada drasticamente nas
administrações posteriores. Mesmo assim publicou a incrível marca de 100 edições
impressas no ano de 2007, e está atualmente na 111ª. Em termos de qualidade, o
fanzine sempre esteve entre os mais importantes e influentes. Venceu o Prêmio
Nova de “Melhor Fanzine” em 1987, 1989 (empatado com o Megalon) e 1991; e venceu como “Melhor Publicação Semi-Profissional”,
em 1994.
De suas páginas surgiram e/ou se
desenvolveram a maior parte dos talentos da Segunda Onda da Ficção Científica
Brasileira, seja como escritor, crítico, editor, ilustrador: Braulio Tavares,
Gerson Lodi-Ribeiro, Ivan Carlos Regina, Roberto Schima, Roberto de Sousa
Causo, Fábio Fernandes, Lúcio Manfredi, Carlos Orsi Martinho, Miguel Carqueija,
Jorge Luiz Calife, Gilberto Schoereder, Carlos Andre Mores, José dos Santos
Fernandes, Sylvio Gonçalves, Ataíde Tartari, Cesar Silva, Henrique Flory, Octávio
Aragão, Martha Argel, Finisia Fideli, José Carlos Neves, e tantos outros. Tal
conjunto fez do Somnium o fanzine que
mais teve histórias premiadas: 10 prêmios Nova, um Tapìrài e um Argos. Entre os
editores do Somnium, tivemos o já
citado Nascimento, Lúcio Manfredi, Christiano de Melo Nunes, Luiz Marcos da
Fonseca, Carlos André Mores, Marcello Simão Branco, Alfredo Keppler, Cesar
Silva, Matias Perazoli Júnior, Daniel Borba, e Ricardo Guilherme dos Santos. O
decano dos autores brasileiros de ficção científica, André Carneiro (1922-2014),
manteve por vários anos a coluna “Crônicas do André”, com saborosas passagens
de sua vida pessoal e literária. Entre fins dos anos 1980 e início dos 1990, o
fanzine tinha tal evidência no fandom,
que chegou a ser parodiado, com outro fanzine chamado Zomnium, publicado por sócios do Rio de Janeiro.
Além da publicação principal, o CLFC
manteve também por alguns anos o Informativo
Mensal CLFC, mais voltado à parte social, com informe de novos sócios,
eventos, convocações para reuniões etc. Entre seus editores tivemos nomes como
Adriana Simon, Ataíde Tartari e Humberto Fimiani. Em termos de livros, o CLFC
publicou dois: o primeiro foi Vinte
Voltas ao Redor do Sol, organizado por Alfredo Keppler, em comemoração ao
aniversário de 20 anos, no ano de 2005. Uma caudalosa e representativa
antologia de 390 páginas com depoimentos e 20 histórias escritas por sócios. Já
o segundo foi Brasil Fantástico: Lendas de um País Sobrenatural, organizado por
Clinton Davisson, Grazielle de Marco e Goergina de Sousa. Ao contrário do
primeiro, que foi publicado com recursos do clube, este saiu com o selo da
editora Draco, em 2013. Curiosamente uma antologia com 11 histórias de fantasia
e horror.
Talvez a atividade mais
tradicional do clube seja os encontros mensais. Desde a fundação, os sócios
paulistas têm se reunido no último sábado do mês. Nos primeiros anos era de
manhã, na então Livraria Paisagem, na Avenida São Luís, Centro de São Paulo. Nesta
época outro ponto de encontro regular era a Livraria Temos Livros, na Avenida
São João, também no Centro da capital paulista. Do início dos anos 1990 até o
início dos anos 2000 o local foi a sede do sindicato dos engenheiros
ferroviários de São Paulo, próximo à Estação Luz do metrô, e desde então tem
sido realizada à noite, numa pizzaria no bairro da Aclimação, pertencente à
família do sócio Humberto Fimiani. Mais recentemente, no segundo semestre de
2015, além do encontro gastronômico, tem havido a tentativa de retornar as
reuniões vespertinas, na sede da Devir Livraria. Os grupos de sócios de outros estados
não foram tão regulares, mas por vários anos especialmente os sócios do Rio de
Janeiro (na capital) e do Rio Grande do Sul (em Porto Alegre), também
realizaram animadas reuniões periódicas. As reuniões chegaram a ser muito
aguardadas e concorridas, principalmente porque divulgavam as novidades do clube,
novos livros, contatos com entidades do país e do exterior, a chance de
conhecer novos fãs e sócios, mostrar e vender livros e fanzines, apresentar
novos projetos etc. É importante lembrar que nos anos 1980 e em parte dos 1990
não existia internet e nem TV a cabo, além de existir muita dificuldade em
importar livros e revistas, por causa da inflação e da burocracia. Desta
maneira uma das principais formas de se informar sobre FC era por meio das
reuniões, além dos próprios fanzines. Nos anos iniciais, pelo menos em São
Paulo, cada reunião tinha como principal atração uma palestra ministrada por
algum sócio que fosse especialista num tema, numa obra ou num autor. Chegavam a
aparecer 40, 50 pessoas nas reuniões, verdadeiras mini-convenções que se
estendiam pelo dia adentro. Velhos e saudosos tempos.
Já em seus primeiros anos o CLFC
procurou divulgar o clube e a FC junto à sociedade em geral. Realizou duas
mostras no Sesc Pompéia, em 1986 e no Sesc Carmo, em 1988. Dois eventos que
trouxeram prestígio à associação. Em 1988 organizou uma “Semana de FC”, na
então Livraria Belas Artes, na Avenida Paulista, com debates e exposições sobre
itens de FC. Já em meados dos anos 1990, realizou dois encontros “FC e
Universidade” em São Paulo, com debates entre sócios, acadêmicos e
personalidades ligadas à cultura. Num deles esteve presente o indigenista
Orlando Villas Boas (1914-2002). Nos anos posteriores, o CLFC esteve presente
como entidade convidada ou associada de vários eventos, como a RhodanCon –
Convenção Brasileira sobre Perry Rhodan, em 1994, a Convenção Brasileira de FC,
em 1995 – ambas realizadas em São Paulo –, as InteriorCons: Convenções de
Ficção Científica do Interior de São Paulo, realizadas de 1990 a 1997 pelo
sócio Roberto de Sousa Causo, na cidade de Sumaré e, mais recentemente, o clube
tem participado de eventos como as JediCons, de iniciativa dos fãs de Star Wars, em cidades como São Paulo,
Rio de Janeiro e Curitiba. Além dos eventos, especialmente nos seus primeiros
anos, o CLFC foi bastante divulgado na imprensa de São Paulo, em jornais como O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e na revista Veja. Eu mesmo conheci o clube em 1986
através de uma destas reportagens, publicada no Jornal da Tarde.
Ao longo dos anos foi possível
acompanhar uma verdadeira troca de gerações no comando e na liderança do clube.
Os primeiros presidentes participaram da chamada Primeira Onda, dos anos 1960,
seja como fãs, leitores, colecionadores, escritores ou editores. O Nascimento,
o Luiz Marcos da Fonseca e o Gumercindo Rocha Dorea. De meados dos anos 1990 em
diante, uma nova geração assumiu a entidade: primeiro de sócios surgidos na
Segunda Onda nos primórdios do clube: Gerson Lodi-Ribeiro, Humberto Fimiani e
Alfredo Keppler; depois os mais identificados com os anos recentes: Ana
Cristina Rodrigues, Eduardo Torres – este não em termos de idade, mas de
participação –, e o atual presidente Clinton Davisson. Outros nomes que
assumiram cargos de diretoria incluem, entre outros, Ivan Carlos Regina, Sérgio
Roberto Lins da Costa, Fritz Peter Bendinelli, Daniela Bittencourt, Marcello
Simão Branco, Cesar Silva, Matias Perazoli Júnior, Ataíde Tartari, Adriana
Simon, Gabriel Bozano, Paulo Elache.
O CLFC não foi o marco inicial da
Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira. Antes dele, foi fundado o Clube
de Ficção Científica Antares (CFCA), de Porto Alegre, e a Sociedade Astronômica
Star Trek (SAST), de São Paulo, ambos de 1982 – os dois misturavam entre seus
interesses ficção científica e astronomia. Além deles, tivemos ao menos dois
fanzines importantes, como o Boletim
Antares, do CFCA, e o Hiperespaço,
editado por Cesar Silva, José Carlos Neves e Mário Mastrotti, ambos também de
1982.
Mas o CLFC foi o ponto central de
convergência de atividades e resultados de toda a Segunda Onda. Especialmente
de 1985 a 1995 é possível afirmar que o clube esteve à frente da maior parte
das atividades e polêmicas em torno do gênero no país. Nesta época o clube
chegou a ser consultado para a publicação de livros de FC, uma espécie de
consultoria informal, em algumas editoras. Sócios de destaque divulgaram,
publicaram e participaram da revista Isaac
Asimov Magazine, publicada pela Editora Record, entre 1990 e 1993, em suas
25 edições. Um exemplo disso foi a composição do júri do “Concurso Jerônymo Monteiro”,
no qual dois dos três integrantes pertenciam aos quadros do CLFC. Como parte
deste prestígio, o clube torna-se uma das poucas associações de fãs do gênero
em todo o mundo a ser aceito como membro da Science Fiction and Fantasy Writers
of America (SFWA).
A queda da importância, uma
verdadeira decadência, começa a vigorar em meados dos anos 1990 devido a uma
série de motivos. Entre eles, problemas sucessórios e administrativos, um
conflito de gerações entre sócios mais colecionadores e outros mais produtores,
e como parte disso pela busca por objetivos mais individuais de sócios que
despontaram como artistas com chances de êxito profissional, além da queda
brutal no número de livros do gênero lançados no país, o que causou certa
depressão no fandom como um todo,
especialmente depois do fim da Isaac
Asimov Magazine. Já nos anos 2000, a falta de relevância foi aprofundada
com a segmentação social provocada pela internet – que trouxe também novas
maneiras de articular a divulgação e produção de FC –, além de uma nova geração
de talentos sem participação prévia na história da associação, e o afastamento
de vários sócios dos primeiros anos.
Houve, contudo, algumas formas de
resistência contra a crescente perda de importância. Em 2000 foi criado o
Prêmio Argos. Durou quatro edições e nas duas primeiras remunerou os vencedores
na tentativa de chamar a atenção da mídia. Não deu certo. Mas em 2012 o prêmio
voltou a ser organizado, e conta já com mais quatro edições. Neste segunda
fase, o Argos têm tido uma boa participação eleitoral dos sócios.
Também aconteceram algumas
iniciativas editoriais. Em 2001 o clube firmou uma parceria editorial com
editora Meia-Sete, para indicar contos para a revista Sci-Fi News Contos. Mas a revista durou só duas edições. E, como já
citado, dois livros foram publicados, ainda que de alcance restrito às fileiras
do fandom.
Nestes 30 anos conhecer a
trajetória do CLFC é importante para a compreensão da história recente da FC
brasileira e dos seus rumos possíveis. Porém, mais que isso, embora sem
pretender alcançar a relevância dos seus primeiros anos, o clube pode voltar a ser
uma entidade útil para a divulgação, articulação de atividades e promoção de
talentos nos dias de hoje. Um pólo informal de atração e identificação do
gênero no Brasil, num momento de tantas atividades, mas de certa desarticulação
entre elas.
-- Marcello Simão Branco é o sócio n. 83, desde maio de 1987.
Nenhum comentário:
Postar um comentário