terça-feira, 15 de dezembro de 2015

30 Anos do Clube de Leitores de Ficção Científica

Marcello Simão Branco


Nos anos 1960 e 1970 boa parte dos livros de ficção científica que apareceram nas livrarias e bancas de jornal brasileiras eram coleções de bolso. Pequenos, baratos e relativamente perecíveis. Muito semelhantes às revistas pulps publicadas nos Estados Unidos nos anos 1930 e 1940. As coleções eram em sua maioria de origem portuguesa: Antecipação, Argonauta, Europa-América; e brasileiras, como Bruguera, Galáxia e Urânia, entre outras. Leitor e colecionador de todos estes livrinhos, Roberto Cesar do Nascimento resolveu escrever um livro sobre a coleção mais importante destas todas, a Argonauta, publicada pela editora lusitana Livros do Brasil, desde o início dos anos 1950. O livro chamou-se Quem é Quem na Ficção Científica: Volume 1, A Coleção Argonauta (João Scortecci Editor, 1985) e, ambicioso, Nascimento incluiu em seu final uma ficha de inscrição para a criação de uma associação de leitores voltada ao gênero.

Como resultado concreto deste sonho em conhecer outros como ele em seu amor e devoção à ficção científica, foi fundado no dia 15 de dezembro de 1985 o Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC), na cidade de São Paulo. Além do Nascimento, outros três são considerados fundadores: Ivan Carlos Regina, Fritz Peter Bendinelli e Walter da Silva Machado. Assinaram a ata, escreveram o estatuto, registraram em cartório e publicaram o número zero do “Boletim do Clube de Leitores de Ficção Científica”. Tudo muito organizado, característica principal do Nascimento.

Previsto para ser mensal, o boletim só ganhou seu nome definitivo em julho de 1986, na sétima edição. Por meio de um concurso promovido entre os sócios, o nome escolhido foi “Somnium”, uma homenagem à história de mesmo nome publicada pelo astrônomo alemão Johannes Keppler (1571-1660), numa sugestão do sócio José dos Santos Fernandes. Desde então o Somnium representou um dos principais centros de divulgação, publicação, debate e crítica da ficção científica realizada no Brasil. Pelo menos nos anos iniciais, sob edição do Nascimento, foi regular, característica que seria abandonada drasticamente nas administrações posteriores. Mesmo assim publicou a incrível marca de 100 edições impressas no ano de 2007, e está atualmente na 111ª. Em termos de qualidade, o fanzine sempre esteve entre os mais importantes e influentes. Venceu o Prêmio Nova de “Melhor Fanzine” em 1987, 1989 (empatado com o Megalon) e 1991; e venceu como “Melhor Publicação Semi-Profissional”, em 1994.

De suas páginas surgiram e/ou se desenvolveram a maior parte dos talentos da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira, seja como escritor, crítico, editor, ilustrador: Braulio Tavares, Gerson Lodi-Ribeiro, Ivan Carlos Regina, Roberto Schima, Roberto de Sousa Causo, Fábio Fernandes, Lúcio Manfredi, Carlos Orsi Martinho, Miguel Carqueija, Jorge Luiz Calife, Gilberto Schoereder, Carlos Andre Mores, José dos Santos Fernandes, Sylvio Gonçalves, Ataíde Tartari, Cesar Silva, Henrique Flory, Octávio Aragão, Martha Argel, Finisia Fideli, José Carlos Neves, e tantos outros. Tal conjunto fez do Somnium o fanzine que mais teve histórias premiadas: 10 prêmios Nova, um Tapìrài e um Argos. Entre os editores do Somnium, tivemos o já citado Nascimento, Lúcio Manfredi, Christiano de Melo Nunes, Luiz Marcos da Fonseca, Carlos André Mores, Marcello Simão Branco, Alfredo Keppler, Cesar Silva, Matias Perazoli Júnior, Daniel Borba, e Ricardo Guilherme dos Santos. O decano dos autores brasileiros de ficção científica, André Carneiro (1922-2014), manteve por vários anos a coluna “Crônicas do André”, com saborosas passagens de sua vida pessoal e literária. Entre fins dos anos 1980 e início dos 1990, o fanzine tinha tal evidência no fandom, que chegou a ser parodiado, com outro fanzine chamado Zomnium, publicado por sócios do Rio de Janeiro.

Além da publicação principal, o CLFC manteve também por alguns anos o Informativo Mensal CLFC, mais voltado à parte social, com informe de novos sócios, eventos, convocações para reuniões etc. Entre seus editores tivemos nomes como Adriana Simon, Ataíde Tartari e Humberto Fimiani. Em termos de livros, o CLFC publicou dois: o primeiro foi Vinte Voltas ao Redor do Sol, organizado por Alfredo Keppler, em comemoração ao aniversário de 20 anos, no ano de 2005. Uma caudalosa e representativa antologia de 390 páginas com depoimentos e 20 histórias escritas por sócios. Já o segundo foi Brasil Fantástico: Lendas de um País Sobrenatural, organizado por Clinton Davisson, Grazielle de Marco e Goergina de Sousa. Ao contrário do primeiro, que foi publicado com recursos do clube, este saiu com o selo da editora Draco, em 2013. Curiosamente uma antologia com 11 histórias de fantasia e horror.

Talvez a atividade mais tradicional do clube seja os encontros mensais. Desde a fundação, os sócios paulistas têm se reunido no último sábado do mês. Nos primeiros anos era de manhã, na então Livraria Paisagem, na Avenida São Luís, Centro de São Paulo. Nesta época outro ponto de encontro regular era a Livraria Temos Livros, na Avenida São João, também no Centro da capital paulista. Do início dos anos 1990 até o início dos anos 2000 o local foi a sede do sindicato dos engenheiros ferroviários de São Paulo, próximo à Estação Luz do metrô, e desde então tem sido realizada à noite, numa pizzaria no bairro da Aclimação, pertencente à família do sócio Humberto Fimiani. Mais recentemente, no segundo semestre de 2015, além do encontro gastronômico, tem havido a tentativa de retornar as reuniões vespertinas, na sede da Devir Livraria. Os grupos de sócios de outros estados não foram tão regulares, mas por vários anos especialmente os sócios do Rio de Janeiro (na capital) e do Rio Grande do Sul (em Porto Alegre), também realizaram animadas reuniões periódicas. As reuniões chegaram a ser muito aguardadas e concorridas, principalmente porque divulgavam as novidades do clube, novos livros, contatos com entidades do país e do exterior, a chance de conhecer novos fãs e sócios, mostrar e vender livros e fanzines, apresentar novos projetos etc. É importante lembrar que nos anos 1980 e em parte dos 1990 não existia internet e nem TV a cabo, além de existir muita dificuldade em importar livros e revistas, por causa da inflação e da burocracia. Desta maneira uma das principais formas de se informar sobre FC era por meio das reuniões, além dos próprios fanzines. Nos anos iniciais, pelo menos em São Paulo, cada reunião tinha como principal atração uma palestra ministrada por algum sócio que fosse especialista num tema, numa obra ou num autor. Chegavam a aparecer 40, 50 pessoas nas reuniões, verdadeiras mini-convenções que se estendiam pelo dia adentro. Velhos e saudosos tempos.



      


Já em seus primeiros anos o CLFC procurou divulgar o clube e a FC junto à sociedade em geral. Realizou duas mostras no Sesc Pompéia, em 1986 e no Sesc Carmo, em 1988. Dois eventos que trouxeram prestígio à associação. Em 1988 organizou uma “Semana de FC”, na então Livraria Belas Artes, na Avenida Paulista, com debates e exposições sobre itens de FC. Já em meados dos anos 1990, realizou dois encontros “FC e Universidade” em São Paulo, com debates entre sócios, acadêmicos e personalidades ligadas à cultura. Num deles esteve presente o indigenista Orlando Villas Boas (1914-2002). Nos anos posteriores, o CLFC esteve presente como entidade convidada ou associada de vários eventos, como a RhodanCon – Convenção Brasileira sobre Perry Rhodan, em 1994, a Convenção Brasileira de FC, em 1995 – ambas realizadas em São Paulo –, as InteriorCons: Convenções de Ficção Científica do Interior de São Paulo, realizadas de 1990 a 1997 pelo sócio Roberto de Sousa Causo, na cidade de Sumaré e, mais recentemente, o clube tem participado de eventos como as JediCons, de iniciativa dos fãs de Star Wars, em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. Além dos eventos, especialmente nos seus primeiros anos, o CLFC foi bastante divulgado na imprensa de São Paulo, em jornais como O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e na revista Veja. Eu mesmo conheci o clube em 1986 através de uma destas reportagens, publicada no Jornal da Tarde.
Ao longo dos anos foi possível acompanhar uma verdadeira troca de gerações no comando e na liderança do clube. Os primeiros presidentes participaram da chamada Primeira Onda, dos anos 1960, seja como fãs, leitores, colecionadores, escritores ou editores. O Nascimento, o Luiz Marcos da Fonseca e o Gumercindo Rocha Dorea. De meados dos anos 1990 em diante, uma nova geração assumiu a entidade: primeiro de sócios surgidos na Segunda Onda nos primórdios do clube: Gerson Lodi-Ribeiro, Humberto Fimiani e Alfredo Keppler; depois os mais identificados com os anos recentes: Ana Cristina Rodrigues, Eduardo Torres – este não em termos de idade, mas de participação –, e o atual presidente Clinton Davisson. Outros nomes que assumiram cargos de diretoria incluem, entre outros, Ivan Carlos Regina, Sérgio Roberto Lins da Costa, Fritz Peter Bendinelli, Daniela Bittencourt, Marcello Simão Branco, Cesar Silva, Matias Perazoli Júnior, Ataíde Tartari, Adriana Simon, Gabriel Bozano, Paulo Elache.
O CLFC não foi o marco inicial da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira. Antes dele, foi fundado o Clube de Ficção Científica Antares (CFCA), de Porto Alegre, e a Sociedade Astronômica Star Trek (SAST), de São Paulo, ambos de 1982 – os dois misturavam entre seus interesses ficção científica e astronomia. Além deles, tivemos ao menos dois fanzines importantes, como o Boletim Antares, do CFCA, e o Hiperespaço, editado por Cesar Silva, José Carlos Neves e Mário Mastrotti, ambos também de 1982.
Mas o CLFC foi o ponto central de convergência de atividades e resultados de toda a Segunda Onda. Especialmente de 1985 a 1995 é possível afirmar que o clube esteve à frente da maior parte das atividades e polêmicas em torno do gênero no país. Nesta época o clube chegou a ser consultado para a publicação de livros de FC, uma espécie de consultoria informal, em algumas editoras. Sócios de destaque divulgaram, publicaram e participaram da revista Isaac Asimov Magazine, publicada pela Editora Record, entre 1990 e 1993, em suas 25 edições. Um exemplo disso foi a composição do júri do “Concurso Jerônymo Monteiro”, no qual dois dos três integrantes pertenciam aos quadros do CLFC. Como parte deste prestígio, o clube torna-se uma das poucas associações de fãs do gênero em todo o mundo a ser aceito como membro da Science Fiction and Fantasy Writers of America (SFWA).
A queda da importância, uma verdadeira decadência, começa a vigorar em meados dos anos 1990 devido a uma série de motivos. Entre eles, problemas sucessórios e administrativos, um conflito de gerações entre sócios mais colecionadores e outros mais produtores, e como parte disso pela busca por objetivos mais individuais de sócios que despontaram como artistas com chances de êxito profissional, além da queda brutal no número de livros do gênero lançados no país, o que causou certa depressão no fandom como um todo, especialmente depois do fim da Isaac Asimov Magazine. Já nos anos 2000, a falta de relevância foi aprofundada com a segmentação social provocada pela internet – que trouxe também novas maneiras de articular a divulgação e produção de FC –, além de uma nova geração de talentos sem participação prévia na história da associação, e o afastamento de vários sócios dos primeiros anos.
Houve, contudo, algumas formas de resistência contra a crescente perda de importância. Em 2000 foi criado o Prêmio Argos. Durou quatro edições e nas duas primeiras remunerou os vencedores na tentativa de chamar a atenção da mídia. Não deu certo. Mas em 2012 o prêmio voltou a ser organizado, e conta já com mais quatro edições. Neste segunda fase, o Argos têm tido uma boa participação eleitoral dos sócios.
Também aconteceram algumas iniciativas editoriais. Em 2001 o clube firmou uma parceria editorial com editora Meia-Sete, para indicar contos para a revista Sci-Fi News Contos. Mas a revista durou só duas edições. E, como já citado, dois livros foram publicados, ainda que de alcance restrito às fileiras do fandom.
Nestes 30 anos conhecer a trajetória do CLFC é importante para a compreensão da história recente da FC brasileira e dos seus rumos possíveis. Porém, mais que isso, embora sem pretender alcançar a relevância dos seus primeiros anos, o clube pode voltar a ser uma entidade útil para a divulgação, articulação de atividades e promoção de talentos nos dias de hoje. Um pólo informal de atração e identificação do gênero no Brasil, num momento de tantas atividades, mas de certa desarticulação entre elas.
  
-- Marcello Simão Branco é o sócio n. 83, desde maio de 1987.

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