O mágico pode estar logo além da esquina. A cada minuto acontece um milagre sobre a Terra, muitos são documentados e testemunhados. Acontecimentos inusitados podem estar prestes a maravilhar a existência de qualquer um. É claro que na maior parte das vezes esses pequenos milagres são apenas impressões, frutos de uma percepção alterada da realidade, esta sim, uma ilusão de nossos sentidos. Uma breve pane sensorial pode fazer o mundo virar literalmente do avesso, para voltar ao normal pouco depois. A impressão forte pode ser interpretada como uma epifania, uma revelação divina. Dificilmente uma pessoa voltará ao seu estado normal depois de uma experiência como essa.
Mas, e se não for apenas uma impressão? E se não for somente uma falha dos sentidos? E se for... real?
É isso que parece estar acontecendo com Charles Nansi – ou Fat Charlie, um apelido de infância –, um jovem afro-americano que vive no subúrbio londrino, tem um emprego numa agência de artistas, um patrão de quem ele decididamente não gosta e uma noiva inglesa de quem ele acha que gosta e que acredita que gosta dele. Nada de muito diferente da rotina de qualquer pessoa em qualquer parte do mundo. Fat Charlie vai levando sua vida, aguentando o mau-humor do patrão, a rabugice da futura sogra e a resistência puritana da noiva, que só vai permitir maiores intimidades depois do casamento, marcado para breve. Ela insiste que ele convide o pai para a cerimônia e isso deixa Charlie em pânico.
O pai de Fat Charlie é o que se pode chamar de bon-vivant, um negro sorridente e simpático, que vive curtindo, cantando, dançando e namorando. E é o cara mais constrangedor do mundo. Charlie guardava lembranças ruins de seu pai e se tinha uma coisa que ele não queria era um constrangimento gigante no dia de seu casamento. Mas a noiva tanto insiste que ele decide entrar em contato com a parentela, na Flórida. Viaja para os EUA e descobre, mais aliviado que surpreso, que seu pai morreu. Obviamente, numa situação constrangedora.
Mas havia algo que Charlie não sabia: ele tem um irmão gêmeo. As vizinhas de seu pai, umas velhas assustadoras que agora eram as únicas referências da sua infância, contaram a novidade e estranharam que ele não se lembrasse do irmão. Era uma peste, diziam. Foi morar em outro lugar. Mas, se ele quisesse, poderia chamá-lo. Bastava pedir a uma aranha, qualquer aranha, que ele viria.
Charlie, acreditando que as velhotas estavam esclerosadas, volta para a Inglaterra satisfeito por não ter o pai no casamento. Retorna para o seu emprego medíocre e sua noiva certinha. Numa noite especialmente confusa, enche a cara de vinho branco e faz aquilo que devia – ou não, se quisesse manter sua vida medíocre – ao encontrar uma aranha enorme na banheira, pede a ela que mande um alô para o irmão. Na manhã seguinte, Spider está diante do seu portão.
Spider, o irmão de Fat Charlie, é completamente diferente dele. Parece ser mesmo um filho do velho Nansi, pois é alegre, atraente e muito desencanado. Mas, além de tudo, sabe fazer uns truques maneiros, como tornar um armário num quarto enorme equipado com os mais caros e avançados sonhos de consumo do mercado. Spider é uma espécie de mago-rebelde-sem-causa, que herdou os poderes mágicos que seu falecido pai sempre teve.
Através de Spider, Charlie descobre que ambos são filhos de Anansi, um deus africano que faz com que a realidade mantenha-se nos eixos. Anansi é aquele trapaceiro de quem as lendas falam: a aranha, o macaco, o coelho e outras personificações de um ser esperto que sempre se dá bem no final das histórias. Mas se assim é, como pode ter morrido?
Este é um dos muitos mistérios transcendentais a serem desvendados por Charlie, assim como deve descobrir qual é o seu lugar no plano geral do universo. Isso tudo enquanto manobra a noiva que tem uma aventura voluptuosa com Spider; o chefe, que planeja dar um grande desfalque nos clientes e lançar a culpa em Charlie; as velhotas, que ainda não lhe contaram nem metade da história; Spider que, apesar de ser seu irmão, parece ser um furacão de problemas... e o tigre. Tigre? Bom, pode também ser um leão ou uma onça, dá no mesmo.
Assim são as coisas no universo de Os filhos de Anansi, romance de fantasia do escritor e roteirista britânico Neil Gaiman. Antes de ficar conhecido como romancista, Gaiman já mostrava talento no mercado de história em quadrinhos. Foi de sua pena que saíram os roteiros de uma das mais bem sucedidas, premiadas e cultuadas séries: Sandman, da DC Comics. Gaiman pegou um personagem aparentemente sem substância, ridículo até, e o tornou num caldeirão de ideias bem desenvolvidas. Mesmo depois de encerrada, com mais de 70 episódios publicados, Gaiman voltou ao universo de Sandman várias vezes, em séries curtas e novelas ilustradas. De repente, estava publicando romances.
Geralmente, os leitores de fc&f não recebem muito bem os escritores que vem dos quadrinhos. Gardner Fox e Stan Lee que o digam. Por isso, foi mesmo uma surpresa quando Gaiman começou a faturar Hugos e Nebulas um atrás do outro. A começar por American gods (Prêmios Hugo, Nebula, Locus e British S.F. de melhor romance de 2002), e Coraline (Prêmios Hugo, Nebula e Locus de melhor novela de 2003), além de vários outros prêmios para contos e noveletas em 2003 e 2004.
Era possível esperar que Os filhos de Anansi tivesse o mesmo sucesso. E não decepcionou: conquistou o Prêmio Locus de melhor romance de fantasia de 2006 e Prêmio British Fantasy de melhor romance de 2006.
Os filhos de Anansi surpreende em muitos aspectos. Para começar, os personagens principais são negros. É claro que Gaiman deixou esse detalhe bastante submerso na narrativa, talvez porque conheça bem as regras não escritas do mercado editorial no qual transita. De qualquer forma, um romance em que o protagonista é negro sem qualquer estereótipo já é, por si, uma variação muito importante. Além do mais, Gaiman usou e abusou da mitologia africana para montar o background sobrenatural de seu romance. Um aproveitamento muito sofisticado e sem proselitismos. Algumas das histórias que ele conta sobre as aventuras do velho Anansi têm paralelos idênticos na mitologia brasileira. Bem, Gaiman esteve no Brasil algumas vezes...
A tradução, assinada por Juliana Lemos, foi muito feliz. Algumas figuras literárias florescem aqui e ali, como se o autor as tivesse criado para serem lidas em português. É claro que isso é mérito da tradução, mas fornece uma boa ideia de como deve ser prazerosa a leitura no inglês original.
O romance não é longo e a leitura agradável o torna ainda mais ligeiro. Rapidamente, as páginas se esgotam no inevitável fim e, com ele, vem a sensação que sucede a última página de todos os bons livros: bem que poderia ter se demorado mais um tantinho. Neste caso, faça como eu: leia de novo. E de novo.
— Cesar Silva
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