sábado, 20 de junho de 2020

Descobrimentos


Descobrimentos, João Batista Melo. Apresentação de Roberto de Sousa Causo. Capa de Cerito, sobre pintura de Andries van Eervelt e ilustrações internas de João Pirolla. 93 páginas. São Paulo: Devir Livraria, Coleção Asas do Vento, 2012.


Na boa e longa apresentação do livro, Roberto Causo defende que as três histórias que formam esta coletânea poderiam ser classificadas como ficção científica recursiva. Seriam o que a The Encyclopedia of Science Fiction (1993) chama de “histórias que tratam de pessoas reais, e os mundos ficcionais que ocupam os seus sonhos, como dividindo graus equivalentes de realidade”. Normalmente tem sido um recurso para contar histórias de ficção científica situadas no passado, no qual algum evento histórico ocorre de forma diferente – as assim chamadas histórias alternativas – ou algum tipo de tecnologia é antecedida ou desenvolvida de forma distinta – geralmente classificadas como steampunk. O uso de personagens reais, em ambos os casos, procuraria dar mais verossimilhança a tais criações ficcionais.
Embora este livro tenha sido publicado em 2012 é interessante porque marcou a volta do autor mineiro João Batista Melo ao convívio da FC brasileira, ainda que apenas uma de suas três histórias seja inédita. Melo publicou livros importantes no gênero como as coletâneas O Inventor de Estrelas (1991) e As Baleias de Saguenay (1995). É uma literatura com prosa refinada e abordagens que fogem do lugar comum em histórias de temas semelhantes. Sua FC transita entre uma densidade mais literária e uma espécie de diálogo limítrofe com o fantástico. Em Descobrimentos estas características estão presentes e servem como uma boa porta de entrada para conhecer esta FC de certa forma incomum dentro do panorama nacional.
A história que abre o livro é “Caminho das Índias” e mostra mais o espírito de aventura e mistério do desconhecido nas históricas expedições marítimas europeias dos séculos XV e XVI. A narrativa mostra de forma intimista as reações emocionais e existenciais de um tripulante da missão de Cristóvão Colombo que objetiva alcançar as índias, mas que acabará por descobrir o Novo Mundo. Na apresentação Causo sugere que este texto possa ser visto “como uma espécie de história alternativa das ideias, se não dos fatos históricos”. Isso soa subjetivo demais, mas a intenção de Melo foi mais ou menos essa, e não contar de forma mais concreta algum ponto de divergência que alteraria os rumos subsequentes da viagem de Colombo. Na verdade acredito que nenhuma destas histórias agradaria a um leitor de história alternativa tradicional, pois Melo não está preocupado com os impactos dos eventos em si, mas em como pessoas comuns os teriam percebido e reagido no contexto da época. Ora, imaginar como pensariam as pessoas de determinada época é uma tarefa complexa não só do ponto de vista histórico, mas principalmente filosófico. Mas se falta um mergulho mais intenso sobre a identificação de um zeitgeist da época, sobra em Melo sensibilidade e boa construção das personagens, e a serviço de uma prosa fluente e agradável.
Tais elementos em conjunto são vistos em especial na novela inédita “1500”. Índios brasileiros se aventuram no mar para enfrentar uma possível ameaça denunciada pelos sonhos do guia espiritual de uma tribo. Ele teve visões de uma invasão iminente vinda do mar, por homens em tudo semelhantes aos europeus. A jornada de Krakatan e seus companheiros é emocionante, e nos coloca diante de uma História não alternativa, mas como se fosse ao contrário. Uma narrativa inteligente e das mais interessantes publicadas na ficção científica brasileira nos últimos anos. O volume valeria mesmo só por esta novela.
O conto que fecha é “A Moça Triste de Berlim”. O dirigível Hindenburg está a caminho do Rio de Janeiro e um jovem brasileiro organiza um atentado terrorista que deverá desmoralizar de uma só vez Hitler e Getúlio Vargas. A premissa é das mais instigantes, mas a realização não, porque a opção mais subjetivista do autor talvez não seja a mais adequada para o tipo de enredo político montado, ou sugerido. Aqui, uma história de ficção científica mais política ou alternativa, no sentido mais tradicional, daria mais força dramática ao que sugere o enredo.
É estranho que João Batista Melo seja um autor tão desconhecido junto ao fandom brasileiro de FC. Menos pelo que ele publicou e do reconhecimento que já adquiriu junto ao mainstream, ao vencer prêmios e concursos literários de prestígio. Talvez a sua ausência física explique em parte isso. Eu mesmo só o conheci pessoalmente na já distante Fantasticon – Simpósio de Literatura Fantástica, em setembro de 2012. Mas o problema principal deve ser mesmo o esnobismo do leitor e fã médio brasileiro aos autores de sua própria terra. Não sabe o que perde, mas tem uma boa oportunidade de finalmente descobrir o talento de Melo neste livrinho pequeno em tamanho e grande em qualidade.

Marcello Simão Branco

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