A Invasão, José Antonio Severo. 225 páginas. Capa de
Uberti. Editora L&PM, Porto Alegre, RS, 1979.
Dentro desta linha tivemos livros
como, por exemplo, Adaptação do Funcionário Ruam, de Mauro Chaves (1975)
– despersonalização do indivíduo –, O Fruto do Vosso Ventre (1976), de
Herberto Salles – crítica à burocracia autoritária – e Não Verás País Nenhum,
de Ignácio de Loyola Brandão (1981), uma distopia ecológica sob uma ditadura
que nunca terminou.
Se o tom destes livros todos é de
desalento e pessimismo quanto ao futuro do país, o romance de estréia do
jornalista gaúcho José Antonio Severo vai, aparentemente, por outra linha.[1] Escrito
em 1979, quando estávamos no chamado processo de “abertura lenta, gradual e
segura”, na definição do presidente Ernesto Geisel (1974-1979), que comandou
esta liberalização, o Brasil é assinalado como uma “potência emergente”: um
país que aprofundou a sua industrialização e tornou-se temido em termos
militares por seus vizinhos. Ora, estas eram as duas principais bandeiras dos
militares-governantes – após o combate sem tréguas aos comunistas no início dos
anos 70 –, que este romance contempla.
De fato, ao final dos anos 1970 o
Brasil tinha estas duas características. Estava entre as dez principais
economias do mundo e havia desenvolvido uma indústria bélica importante, que
colocou o país como um dos principais exportadores do setor no mundo. Havia
também se distanciado dos Estados Unidos, ao procurar uma relação de aliado
especial não reconhecida, ao enfrentar uma crítica severa para afrouxar seu
desrespeito aos direitos humanos e, sobretudo, assinado um acordo de cooperação
nuclear com a Alemanha Ocidental, que desagradara também aos seus vizinhos
sul-americanos.
Todo este contexto transparece em
A Invasão, que retrata a aventura militar brasileira em invadir a
Angola, um país do sul da África sob ocupação de tropas cubanas e de outros
países socialistas. Após sua independência de Portugal em 1974, o país viveu
sob guerra civil entre os líderes da libertação, de três tendências opostas, um
deles a favor do comunismo e dois deles apoiados pelos norte-americanos e
sul-africanos. No romance quem está no poder é um presidente comunista, daí a
presença de apoio de tropas de países com a mesma orientação ideológica. Mas os
angolanos estão perdendo o controle do país para os cubanos, com um expressivo
contingente militar na luta contra as forças pró-Ocidente. Por isso eles
propõem que o Brasil invada o país e expulse os cubanos. Em troca, os angolanos
prometem relações econômicas preferências, a mais importante delas os diamantes
e petróleo que o país possui. Os angolanos apelam também para uma
“solidariedade histórica cultural”, já que os dois países falam a mesma língua
e o Brasil tem uma presença expressiva de descendentes africanos em sua população.
Se nos ativermos apenas a estes argumentos eles podem soar como insuficientes
para justificar uma empreitada arriscada como esta mas, de fato, o Brasil
durante os anos 70 tornou-se uma voz de liderança da África em vários fóruns
internacionais, em defesa de um projeto de desenvolvimento econômico a favor
dos países subdesenvolvidos.
Acontece que o governo de Angola
no romance é comunista, presidido pelo presidente Agostinho Neto – que morreria
no mundo real em setembro de 1979. Acho que o leitor já intuiu estas perguntas:
1) como que um governo conservador e anticomunista como o brasileiro vai ajudar
um país governado por forças pró-Moscou? Seria mais lógico que apoiasse as
guerrilhas de direita, que lutavam pelo domínio de Angola. 2) ao assumir que
está perdendo o controle sobre seus aliados ideológicos, o governo angolano não
estaria justificando a guerrilha de direita que o combate? Talvez só mesmo o autor
possa explicar o motivo de optar por uma aliança tão irreal, mesmo tendo a
chance de construir a história sob uma base mais sólida.
Inverossimilhanças à parte, o
leitor pode encontrar bons momentos pelo menos até a metade do livro, quando as
negociações entre os dois governos são feitas, os preparativos dos militares
são mostrados, os planos de invasão, o recrutamento e a logística da ação são
expostos com competência e realismo. Percebe-se que Severo tem intimidade com o
assunto, pois na nota biográfica ao final do livro informa-se que ele fez a
cobertura para o jornal Gazeta Mercantil, de São Paulo, da sucessão do
presidente Geisel e tornou-se próximo de diplomatas e militares graúdos do
regime. Talvez esta seja mais uma sinalização de que esse romance de ficção
científica política sobre o período da ditadura tenha um viés de certo apoio ao
regime. Será? Vejamos.
A invasão brasileira acontece em
1986, e o país ainda se encontra sob o domínio dos militares. De uma forma
curiosa, o autor elabora uma coalizão de poder em que estão presentes os
militares e os cinco principais partidos políticos do país. Líderes
democráticos nossa história, como Ulysses Guimarães, Leonel Brizola e Pedro
Simon surgem confabulando com os militares sobre a necessidade de manter o
equilíbrio de forças para manter a democracia no país. Como? Esta falta de
clareza conceitual sobre o que é uma ditadura ou uma democracia talvez tenha
ocorrido ao autor por causa do contexto incerto do regime militar brasileiro
quando ele escreveu o romance. Mas isso incomoda na busca por uma especulação
mais refinada sobre o momento político em que a história é narrada.
O Brasil invade Angola com toda a
sua força. Mas enfrenta uma boa resistência dos cubanos e dos alemães
orientais. Contamos com o apoio de dois terços das Forças Armadas angolanas.
Mas, depois de narrar com vividez e realismo duas boas batalhas em solo
angolano, de uma forma surpreendente e decepcionante, o autor abandona o
conflito que dá razão à história e conduz a narrativa para outro rumo. Severo
tenta mostrar as consequências políticas no interior do Brasil e no mundo. Sem
dúvida que esta linha narrativa é válida e merece ser enfatizada. O problema é
como isto é realizado. O texto deixa seu tom sério e descai para uma espécie de
deboche – mas não assumido, apenas implícito. Situações absurdas se sucedem sem
maiores explicações ou desdobramentos coerentes.
Os norte-americanos são
surpreendidos, repreendem o Brasil, são pressionados pelos soviéticos e
despacham, simplesmente, o presidente Jimmy Carter para Brasília. Ele chega de
madrugada, se hospeda num hotel e fica por aí. Não se tem mais notícia dele
pelo resto do livro![2] Uma
tempestade assola a cidade do Rio de Janeiro e a ponte Rio-Niterói desaba. Isso
mesmo! O presidente brasileiro renuncia subitamente, sem explicação alguma e em
plena guerra. Na calada da noite, nos bastidores de Brasília, o alto comando
militar e os líderes políticos dão um novo golpe ao decidir pela não posse do
vice-presidente – por ser um homem por demais ligado à esquerda... –, na figura
de Paulo Brossard, que viria a ser ministro da Justiça do governo Sarney. Mas
ainda mais insólito que o golpe é a decisão de restaurar a monarquia no Brasil.
Após esta sucessão de nonsenses,
o romance termina por mostrar uma invasão coordenada de vários países da
América Latina ao Brasil, sob o argumento de que estavam ameaçados pela força
imperialista e monarquista que o país tinha se tornado.
O que transparece é que Severo
procurou abordar algumas questões da época histórica em que o livro foi
escrito. Mas se a invasão de Angola foi mostrada em detalhes, depois disso o
conflito foi abandonado e as demais questões foram mostradas de forma
sarcástica, talvez procurando ridicularizar tanto os militares, quanto a classe
política que lutava pela redemocratização do país. O fato é que como romance,
obra de ficção, o livro deixa muito a desejar; é uma decepção por sua
inverossimilhança e descuido com a continuidade narrativa. Talvez o seu legado
esteja nas consequências desastrosas da aventura militar em Angola e nas
decisões precipitadas dos donos do poder. Ou seja, Severo não se posiciona
claramente contra a ditadura, mas contra o sistema de poder como um
todo. O que pode ser visto tanto a partir de uma postura mais cética, niilista,
como também de ficar ‘em cima do muro’, não se definir por nenhum dos lados.
– Marcello Simão Branco
[1] Severo é
um jornalista político experiente, com carreira sólida, em jornais como Gazeta
Mercantil (SP), Correio do Povo (RS), Folha de S. Paulo,
revistas Veja e Exame, além da Rede Globo de Televisão. Também
escreveu, entre outros, o romance distópico A Guerra dos Cachorros
(1983) e o romance histórico Senhores da Guerra (2000), todos por uma
linha política com ênfase militar.
[2] Outra
situação de descontinuidade é a do jornalista que divulga a notícia da invasão
com exclusividade. Ele aparece com destaque no começo da história, mas depois
some. Até ocorre uma sequência da cobertura jornalística, mas tímida e sem
importância alguma para a história.
É uma pena que foi perdida a oportunidade de se criar um techno-thriller como os de Tom Clancy .
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