Distrito Federal, Luiz Bras. Capa e ilustrações internas de Teodoro
Adorno. 282 páginas. São Paulo: Patuá Editora, 2014.
Desde que surgiu para o cenário
da ficção científica brasileira, no início dos anos 2000, Nelson de Oliveira
tem se notabilizado pela ousadia editorial e criatividade literária. Tornou-se
mesmo uma liderança intelectual em nosso campo.
Editou a série “Portal”, com
contos de ficção científica de autores mais vinculados ao mainstream. Rendeu seis edições e o livro Todos os Portais: Realidades Expandidas, em 2012. Como parte desta
intenção de aproximar os autores do mainstream
da FC e, com isso, procurar dar mais visibilidade e reconhecimento, organizou
para a Record a antologia Futuro Presente,
em 2009.
Em termos ficcionais adotou os
pseudônimos de Luiz Bras, como escritor, e Teo(doro) Adorno, como ilustrador, para
criar novas personas junto à nossa
FC, com uma outra identidade, principalmente como escritor. Sua maior
realização ainda é a coletânea Paraíso
Líquido (2010), notável ao aliar um estilo literário de qualidade incomum
para a ficção científica brasileira com a elaboração de temas complexos e de
fronteira da pesquisa científica. É, até o momento, o melhor livro brasileiro
do gênero neste século XXI.
A despeito disso, Distrito Federal também é uma
contribuição ímpar. Principalmente pela moldura adotada. Um livro escrito em
forma de rapsódia é incomum não só para a nossa FC – no geral bem conservadora
quanto ao estilo – no sentido de uma história, linear ou não que aborda no
conjunto alguns assuntos predominantes e recorrentes, que vem e vão ao longo
das páginas. Na literatura brasileira uma referência importante neste formato é
Macunaíma (1928), de Mário e Andrade
(1893-1945).
Em Distrito Federal lê-se um poema, depois outro, lê-se uma, duas,
três páginas. E o leitor desfruta, antes de mais nada, de um prazer poético
requintado e caprichado. Para quem aprecia, especialmente, poesia, pode-se
saborear as estrofes e passagens de maneira quase aleatória. Sim é possível ler
o livro de forma solta, sem preocupação com uma linha narrativa. Embora Bras
não tenha na poesia a principal fonte de sua expressão literária, é talentoso o
suficiente para conduzir a narrativa sem deixar a leitura dispersar. Pois é
intenção de Bras conduzir o leitor por uma linha narrativa encadeada, ainda que
rapsódica.
O assunto principal do livro,
como o próprio título sutilmente sugere é a política. Mas o lado menos
virtuoso. Estamos no Distrito Federal, capital da República Federativa do
Brasil, e o tópico central do livro é a corrupção. Mal que assola o Brasil
desde há muito tempo e que vem ganhando as manchetes de forma crescente e
cotidiana nos últimos anos.
O romance rapsódico retrata os
vários tipos de subterfúgios e ações para se desviar da lei e do interesse público,
ao comentar, de forma indireta, alguns dos vários escândalos dos últimos anos,
entre eles os anões do orçamento (1993) e o mensalão (2005).
À parte o tema da corrupção a
obra é permeada com algumas reflexões sobre outro grande problema nacional, a dilapidação
do nosso ecossistema. Para ilustrar o imaginário em torno da questão o Curupira
e o Saci-Pererê assumem mesmo uma tarefa contra o corrupto civilizado,
possuindo algumas pessoas como seus instrumentos de vingança.
Pois em Distrito Federal a corrupção é o mal maior, com desdobramentos
sobre todos os outros assuntos. Para combatê-lo é preciso ir direto ao ponto, à
margem das imperfeições das leis e da morosidade das regras institucionais.
Pois neste ambiente civilizado viceja, na verdade, a injustiça e o privilégio.
Mas o que é ir direto ao ponto? Simples, partir para a violência, “fazer
justiça com as próprias mãos”. Os que defendem os meios legais são chamados de
obtusos, cidadãos que tem uma postura entre o ingênuo e conformado e, por isso,
cúmplices não intencionais da malversação dos recursos públicos por políticos
desonestos e imorais. A violência é defendida e deflagrada com a morte violenta
dos corruptos: esquartejamento e decapitação expostos publicamente é o recurso
mais utilizado, e passa a ganhar adeptos com a criação de gangues de caçadores
de corruptos pelo país afora. Num contexto como este viveríamos a falência do
Estado democrático num caminho que levaria ou à anarquia ou a uma ditadura.
É claro que a obra não defende “o
olho por olho, dente por dente”, ao realizar mais um expediente de provocação
ao leitor e ao mesmo tempo quase que um panfleto de desabafo ante a uma
corrupção mostrada como generalizada. Talvez o cerne subjacente da provocação,
digamos assim, é uma postura hipócrita de muitos segmentos da sociedade, ao se
condenar mais uns do que outros, e relativizar uns atos de corrupção, com
outros, a depender, em boa medida, da ideologia de quem o pratica. Mesmo assim
incomoda. Primeiro ao circunscrever a corrupção apenas no ambiente da política
institucionalizada. Ora, os atos lesivos ao interesse público só se disseminam
porque fazem parte de um substrato sociocultural. A corrupção antes de se
manifestar na política institucionalizada é praticada em todos os segmentos
(privados) da sociedade. Este é um argumento clássico dos estudos sociais
brasileiros. Confundimos o interesse público com o privado. Mas o livro passa
uma ideia de que o mal estaria na classe política; sem a corrupção no ambiente
público, teríamos um país mais próspero, uma sociedade mais civilizada e, por
consequência, com cidadãos mais éticos. Impressão certa ou não, não há como
concordar com tal reducionismo. Esta solução nos colocaria num contexto
policialesco de tons fascistas. Afinal, quem é o senhor do que é certo e o que
é errado? Existiria alguém moralmente superior?
O fato é que o Brasil de 2015
para cá, a partir dos escândalos investigados pela Operação Lava Jato, tem
depurado, de forma inédita, corruptos graúdos como nunca se viu, mas levou de
roldão uma presidente da República honesta e eleita com mais de 54 milhões de
votos. Em consequência, temos hoje uma democracia menos robusta e segura do
ponto de vista de sua estabilidade.
Como dito, o contexto da rapsódia
se alterna entre a crítica ao desmatamento ambiental e a crítica à corrupção
política, com prevalência desta última, com uma ficção científica que se
manifesta na linguagem tecnológica, pós-humana como se convencionou chamar de
uns tempos para cá, neste século XXI. Afora o Distrito Federal como centro
político, também temos o Distrito Federal como a representação de um videogame
de realidade virtual ultrassofisticado que seria livre, porque gerenciado de
forma quase sensiente por uma inteligência artificial. Este ambiente virtual
vai, aos poucos, se sobrepondo ao mundo concreto, sem contudo transformar a
realidade e seus problemas.
Pois nesta leve moldura de ficção
especulativa, o tema da corrupção adquire uma importância algo desmedida, e
talvez o livro fosse melhor em termos temáticos, se apresentasse em suas
rapsódias outros problemas brasileiros igualmente graves. Exemplo maior seria a
desigualdade social historicamente abjeta, praticamente ausente da obra.
O maior problema do Brasil não é
a corrupção, mas a desigualdade social. É ela que, inclusive, reproduz as
relações desiguais de poder, com os setores histórica e socialmente dominantes
agindo em torno de seus interesses, ao explorar e desrespeitar o povo menos
favorecido. Um país mais civilizado é mais justo e igualitário, mesmo num
sistema de produção capitalista. Não só por existir um Estado mais republicano
e socialmente presente, mas também por responder de forma mais equânime as
demandas dos mais diferentes setores. Um Estado mais transparente e
universalizado em seus objetivos e interesses. Ora, por consequência, menos
corrupto. Uma sociedade desigual e com privilégio para poucos reproduz
comportamentos mais autoritários e privatistas, menos comprometidos com o
coletivo. Este contexto socioeconômico explica mais a corrupção do que a
acusação tão senso comum de que existiria um déficit moral, uma “crise ética”.
Sim, crise há, mas da reprodução de um modelo de relação Estado-sociedade de
caráter patrimonialista, em que o interesse público serve, em grande medida,
para reproduzir os privilégios de uma elite descomprometida com as necessidades
da população mais carente e com os interesses nacionais.
Já se disse que quem se importa
mais com a corrupção é uma certa corrente da classe média, de perfil ideológico
mais conservador. Não enxerga que o problema é menos moral e mais político, no
sentido de se praticar políticas públicas realmente inclusivas e
democratizantes. A corrupção se transforma numa questão moral porque não há
interesse em alterar esta sociedade desigual e cheia de privilégios para
poucos. Afinal, quem foi que tomou as ruas do país para clamar por “moralidade
pública”? Ora, ajudou sim a afastar a presidente Dilma Rousseff e fragilizar o
seu partido –, de vinculação socialmente mais progressista, embora envolvido
nos esquemas de corrupção com as empreiteiras –, mas tem se mostrado tolerante
com os novos (velhos) políticos que assumiram o governo, tão ou mais envolvidos
nos mesmos escândalos. Quem seriam os verdadeiros obtusos, então?
Distrito Federal foi escrito antes da Lava Jato, mas parece que
vaticinou o ambiente conturbado e polarizado que estava por vir. Seja como for
é um livro pertinente por trazer uma discussão tão polêmica e contemporânea no
contexto da FC, e apresentar uma tentativa bem-sucedida do ponto de vista
estético e literário. Acho que dificilmente teremos outra experiência de
romance em rapsódia na FC brasileira. Algum outro autor se arrisca?
–
Marcello Simão Branco
Respeito autores que defendem um viés ativista em suas obras, a criticidade a corrupção é um exemplo quando ataca justamente a parcialidade dos que dizem combate-la.
ResponderExcluirDifícil dizer que um romance tão alegórico quanto "Distrito Federal" de algum modo pregaria a violência contra os corruptos. Sua violência alegórica, e a denúncia da corrupção como uma agressão olfativa às forças da natureza, são ferramentas pra despertar uma reação visceral do leitor, para além de qualquer análise sociopolítica. E aí o Marcello vem e responde justamente com uma análise sociopolítica. Ops. Caiu na armadilha do saci.
ResponderExcluirHá ainda a questão da visão política que a resenha propõe. Eu sugiro que Marcello dê uma olhada no conceito do "totalitarismo invertido" ou "inverted totalitarism", do sociólogo americano Sheldon Wolin. O nome é muito ruim, porque a gente tende a parar de pensar, quando qualquer coisa tenta fundir "totalitarismo" com "democracia", mas o conceito de Wolin é sólido. Ele propõe que um país como os Estados Unidos tem sua política definida pelo casamento entre big parties e big business, no qual tanto o processo eleitoral quanto as pressões dos agentes sociais legítimos são minimizados e encabrestados pela opacidade dos lobbies e por técnicas de manipulação da opinião pública, de modo que reivindicações sociais legítimas tenham pouco ou nenhuma eficácia juto aos políticos, e de modo que o grosso dos recursos do Estado sejam desviados da atenção para o corpo social, para alimentar os interesses financeiros dos parceiros do poder político. Os argumentos de Wolin tem sido muito repetidos pela esquerda americana. Daí ser muito irônico enxergar uma situação semelhante montada no Brasil pela nossa esquerda petista. Porque o que Mensalão, Petrolão e Lava-Jato têm revelado é menos o fato de que a corrupção seria o principal problema do Brasil, e sim o fato de que nossa democracia passou a ser gerenciada ("democracia gerenciada" é outro conceito de Wolin) por esse comitê suprapartidário e supra-social, composto dos poder político e sua base financeira empresarial. Assim, quem define a política pública é menos a ideologia partidária, menos as pressões da sociedade civil, e mais os interesses financeiros desse grupo de poder. Lava-Jato revelou que a política energética, a política de infraestrutura, a política social (o programa "bolsa empresário" é maior do que o bolsa família) e até a política externa (Odebrecht e outras empreiteiras exportando o nosso modelo de corrupção). Nesse sentido, existe aí menos um esquema de desvio de verbas -- é mais um esquema >antidemocrático<, uma >ação contra a democracia<, porque a cada passo o compromisso da administração pública com o público (o povo) é relegado em favor de uma ação empresarial/financeira.
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ResponderExcluirOra, o conceito do "totalitarismo invertido" é, de fato, infeliz no nome. E quando um autor conceitua mal seus argumentos eles geralmente tendem a ser errados. Em todo caso, não dá para explicar o sistema político apenas com sua relação, no caso promíscua, com o assim chamado sistema financeiro, mesmo nos Estados Unidos, um país com uma sociedade civil extremamente vital e bem organizada em seus interesses. Mas no caso do Brasil, a corrupção tem se mostrado sistêmica, pois atinge qualquer grupo que esteja no poder, seja conservador ou progressista. Como disse na resenha o Brasil é um país patrimonialista, com relações historicamente fisiológicas entre a elite e o Estado. Pelo que li de seus comentários, Causo, não sei onde discordamos. O único porém que critico neste processo da Lava Jato é a sua partidarização com relação ao partido que estava no poder. Ora, Sergio Moro é um aliado público do PSDB. Isso é um fato admitido até pelos tucanos. O PT errou, seguindo os erros dos outros partidos antes dele. Mas pagou mais caro que os outros. Especialmente quando uma presidente honesta e sem vinculação alguma com os escândalos foi retirada do poder, justamente porque não interferiu na Lava Jato, que passou a ameaçar, justamente, o grupo que hoje está no poder. Obviamente que quem errou deve pagar, mas a conta deve ser igual para todos. Minha maior preocupação é com a estabilidade política do país. E o impeachment realizado da forma como foi, certamente trará danos a futuros governantes, trazendo mais instabilidade política. Esse é o possível legado grave ao país.
ResponderExcluirMeu sonho é ver Lula e Fernando Henrique (ou Aécio Neves) dividindo o mesmo beliche na cadeia, mas o futuro dirá.
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