sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

A Estranha Ficção Científica de Ursula K. Le Guin

A Mão Esquerda da Escuridão (The Left Hand of Darkness), Ursula K. Le Guin. Editora Aleph, São Paulo, 2014 (segunda edição). Tradução de Susana L. de Alexandria. Capa: Pedro Inoue.
                      
            Utilizei no título o adjetivo “estranha” porque o presente romance parece muito mais uma narrativa moderna de fantasia que de ficção científica. Em outras palavras, parece mais próximo de Tolkien, Lewis (Carrol ou C.S.), Rowling, Zimmer Bradley, que de Asimov, Van Vogt, Clarke ou Heinlein. Toda a logística da história passada no planeta Gethen segue um clima de fantasia, e o elemento FC se define mais pela origem do protagonista Genly Ai, como emissário da federação galática conhecida como Ekumen, da qual a Terra faz parte.
            Gethen é um mundo gelado, sem mamíferos, e os seres humanos que aí vivem, em diversos países, não possuem aparelhos voadores nem tecnologia avançada. Além disso possuem uma condição sexual insólita: na maior parte do tempo são assexuados e no restante podem adquirir um ou outro sexo, como hermafroditas. Esta fase mais curta é chamada de “kemmer”, o que tem alguma semelhança com o cio dos animais. Uma civilização de humanos-caracóis... detalhe que influencia toda a vida. Le Guin porém evita entrar em detalhes grosseiros ou lascivos, tecendo a narrativa com elegância e segurança. Ainda bem, porque o romance em questão não é de leitura facil.
            Realmente, não é fácil construir todo um universo ficcional, dar coerência à sua estrutura. No caso, a autora precisou criar a infra-estrutura de toda uma civilização planetária sem esquecer detalhes climáticos e geológicos, em descrições feitas com grande naturalidade. Nada mais irritante que certos autores de FC que se demoram em longas explicações didáticas dirigidas diretamente aos leitores, quebrando de todo a chamada “suspensão da incredulidade”. Numa boa narrativa de ficção científica e/ou fantasia, as coisas devem ir se explicando por si mesmas, à proporção que a trama se desenrola. E Ursula consegue esse efeito com facilidade.
            Vejamos alguns respigos da narrativa de Le Guin e a maneira como ela introduz os conceitos através do texto:
            “Quando falou, peguei-me acreditando que de fato iríamos chegar a Karhide, cruzando 1.300 quilômetros de montanha, ravina, fenda, vulcão, geleira, lençol de gelo, pântano congelado ou baía congelada, tudo desolado, sem abrigo e sem vida, sob as tempestades de inverno no meio de uma Era Glacial.” (cap. 15)
            Veja-se a habilidade com que ela define em poucas palavras todo o cenário que em sua jornada os dois personagens (Genly Ai e Estraven) têm de atravessar.
            “Durante o mês de Kus, vivi na costa leste, num Clã-Lar chamado Gorinhering, uma casa-cidade-forte-fazenda construída numa colina, acima das brumas eternas do Oceano Hodomin. Cerca de quinhentas pessoas viviam ali. Há quatro mil anos, eu teria encontrado seus ancestrais vivendo no mesmo lugar, no mesmo tipo de casa. Ao longo desses quatro milênios o motor elétrico foi desenvolvido, rádios e teares elétricos, veículos elétricos, maquinaria agrícola e outros equipamentos começaram a ser utilizados, e uma Idade da Máquina foi surgindo aos poucos, sem revolução industrial, sem revolução de espécie alguma.” (cap. 8)
            Este trecho, típico de uma narração feita sem precipitação (outro vício de tantos autores) justifica-se plenamente por se tratar de um relatório na primeira pessoa, e o autor fictício (isto é o protagonista-narrador) dirige-se à sua própria civilização, explicando fatos de uma civilização estranha. Mesmo assim, explica com uma grande naturalidade.
            Tudo o que Genly deseja é que aquele mundo entre para o Ekumen, ou seja a federação de povos galáticos. O Ekumen, porém, tem o critério de enviar um único representante, com a cara e a coragem, para negociar com os povos locais de cada mundo habitado por humanos e ainda exterior à federação. Uma nave fica esperando em órbita, que Genly a chame quando tiver certeza de que o acordo será feito. Mas em meio a intrigas políticas e ciúmes nacionais, Genly verá que a sua missão não é tão simples assim e que ele correrá perigo de vida, pois representa mudanças que trarão consequências imprevisíveis áqueles povos. Para início de conversa ele nem sequer é acreditado, sendo mesmo tido como um farsante. Uma sucessão de dissabores espera por ele, inclusive uma longa jornada por regiões gélidas e hostis à vida, em companhia de Estraven, único personagem a apoiá-lo na situação mais extrema.
            Como eu disse, não é uma leitura fácil, não é um livro linear (o protagonista-narrador inclusive intercala, ao seu próprio depoimento, o de Estraven e algumas lendas locais), ainda que Ursula K. Le Guin seja uma autora de fato categorizada. É livro para ler com paciência e atenção.
— Miguel Carqueija

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