A Mão Esquerda da Escuridão (The Left Hand of Darkness), Ursula K. Le Guin. Editora Aleph, São Paulo, 2014 (segunda
edição). Tradução de Susana L. de Alexandria. Capa: Pedro Inoue.
Utilizei no título o adjetivo
“estranha” porque o presente romance parece muito mais uma narrativa moderna de
fantasia que de ficção científica. Em outras palavras, parece mais próximo de
Tolkien, Lewis (Carrol ou C.S.), Rowling, Zimmer Bradley, que de Asimov, Van
Vogt, Clarke ou Heinlein. Toda a logística da história passada no planeta
Gethen segue um clima de fantasia, e o elemento FC se define mais pela origem
do protagonista Genly Ai, como emissário da federação galática conhecida como
Ekumen, da qual a Terra faz parte.
Gethen é um mundo gelado, sem
mamíferos, e os seres humanos que aí vivem, em diversos países, não possuem
aparelhos voadores nem tecnologia avançada. Além disso possuem uma condição
sexual insólita: na maior parte do tempo são assexuados e no restante podem adquirir
um ou outro sexo, como hermafroditas. Esta fase mais curta é chamada de
“kemmer”, o que tem alguma semelhança com o cio dos animais. Uma civilização de
humanos-caracóis... detalhe que influencia toda a vida. Le Guin porém evita
entrar em detalhes grosseiros ou lascivos, tecendo a narrativa com elegância e
segurança. Ainda bem, porque o romance em questão não é de leitura facil.
Realmente, não é fácil construir
todo um universo ficcional, dar coerência à sua estrutura. No caso, a autora
precisou criar a infra-estrutura de toda uma civilização planetária sem
esquecer detalhes climáticos e geológicos, em descrições feitas com grande
naturalidade. Nada mais irritante que certos autores de FC que se demoram em
longas explicações didáticas dirigidas diretamente aos leitores, quebrando de
todo a chamada “suspensão da incredulidade”. Numa boa narrativa de ficção
científica e/ou fantasia, as coisas devem ir se explicando por si mesmas, à
proporção que a trama se desenrola. E Ursula consegue esse efeito com facilidade.
Vejamos alguns respigos da narrativa
de Le Guin e a maneira como ela introduz os conceitos através do texto:
“Quando
falou, peguei-me acreditando que de fato iríamos chegar a Karhide, cruzando
1.300 quilômetros de montanha, ravina, fenda, vulcão, geleira, lençol de gelo,
pântano congelado ou baía congelada, tudo desolado, sem abrigo e sem vida, sob
as tempestades de inverno no meio de uma Era Glacial.” (cap. 15)
Veja-se a habilidade com que ela
define em poucas palavras todo o cenário que em sua jornada os dois personagens
(Genly Ai e Estraven) têm de atravessar.
“Durante
o mês de Kus, vivi na costa leste, num Clã-Lar chamado Gorinhering, uma
casa-cidade-forte-fazenda construída numa colina, acima das brumas eternas do
Oceano Hodomin. Cerca de quinhentas pessoas viviam ali. Há quatro mil anos, eu
teria encontrado seus ancestrais vivendo no mesmo lugar, no mesmo tipo de casa.
Ao longo desses quatro milênios o motor elétrico foi desenvolvido, rádios e
teares elétricos, veículos elétricos, maquinaria agrícola e outros equipamentos
começaram a ser utilizados, e uma Idade da Máquina foi surgindo aos poucos, sem
revolução industrial, sem revolução de espécie alguma.” (cap. 8)
Este trecho, típico de uma narração
feita sem precipitação (outro vício de tantos autores) justifica-se plenamente
por se tratar de um relatório na primeira pessoa, e o autor fictício (isto é o
protagonista-narrador) dirige-se à sua própria civilização, explicando fatos de
uma civilização estranha. Mesmo assim, explica com uma grande naturalidade.
Tudo o que Genly deseja é que aquele
mundo entre para o Ekumen, ou seja a federação de povos galáticos. O Ekumen,
porém, tem o critério de enviar um único representante, com a cara e a coragem,
para negociar com os povos locais de cada mundo habitado por humanos e ainda
exterior à federação. Uma nave fica esperando em órbita, que Genly a chame
quando tiver certeza de que o acordo será feito. Mas em meio a intrigas
políticas e ciúmes nacionais, Genly verá que a sua missão não é tão simples assim
e que ele correrá perigo de vida, pois representa mudanças que trarão
consequências imprevisíveis áqueles povos. Para início de conversa ele nem
sequer é acreditado, sendo mesmo tido como um farsante. Uma sucessão de
dissabores espera por ele, inclusive uma longa jornada por regiões gélidas e
hostis à vida, em companhia de Estraven, único personagem a apoiá-lo na
situação mais extrema.
Como eu disse, não é uma leitura
fácil, não é um livro linear (o protagonista-narrador inclusive intercala, ao
seu próprio depoimento, o de Estraven e algumas lendas locais), ainda que
Ursula K. Le Guin seja uma autora de fato categorizada. É livro para ler com
paciência e atenção.
— Miguel Carqueija
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