Diário
da guerra de São Paulo, Fernando Bonassi. Fotos de João Wainer. 104
páginas. São Paulo: Publifolha. Lançado em 2007.
De forma involuntária e inesperada tive a fortuna de
achar este Diário da Guerra de São Paulo, na livraria Temos Livros,
ponto tradicional dos antigos fãs de ficção científica, no Centro da capital
paulista, em 2007. E só lá, não vi em mais nenhum outro ponto de venda.
Logo no início o autor alerta: “Aviso aos chatos. Livros
como este são escritos para que histórias como estas não aconteçam.” É um tipo
de desculpa aos seus leitores e convivas pela ousadia de escrever uma
história de ficção científica? Seja como for, anuncia sua premissa de como
encara o gênero, numa linha que segue os passos de Ray Bradbury, para quem cabe
ao gênero evitar os nossos possíveis erros no futuro.
Como anuncia o título a novela trata de São Paulo, aqui
chamada de “ex-cidade”. Num futuro incerto, mas não muito distante lemos o
diário de um adolescente, um “neutro” que ainda não tomou partido entre os
adultos ou as crianças, a grande clivagem social deste mundo. É que em uma
cidade sitiada e em ruínas, existem várias guerrilhas de crianças abandonadas,
fortemente armadas e com um apetite voraz em matar – e eventualmente também
comer – os adultos, a quem culpam por abortarem os seus futuros.
São Paulo, metrópole que virou uma “ex-cidade” nas
palavras do nosso confessor sem nome, é um caos completo, sem sistema de
transporte, com boa parte de suas ruas e pontes destruídas e com comunicações
apenas clandestinas feitas por grupos particulares. Há extrema falta de alimentos,
roupas e remédios. E talvez o mais dramático seja as variações de temperatura,
que se situam entre 72o C de dia a -112o C à noite. Uma
amplitude térmica semelhante à encontrada em Marte. Chove frequentemente
também, mas cai mais ácido do que água. E quando há um tempo aberto, o perigo é
a da radiação solar. Colocar os pés na rua é um risco de morte iminente, em
meio a tiroteios inesperados, assaltos, sequestros e balas perdidas.
Nos arredores do que sobrou de São Paulo, existem
cidades que ainda são minimamente viáveis. Só que elas construíram barreiras
para impedir o acesso dos refugiados. Muitos tentam entrar e são rechaçados ou
então se alojam em barracas em suas cercanias. Para entrar numa dessas cidades
e ser aceito é preciso que seja convidado por alguém que já mora em uma delas.
Os pais do narrador temtam, desesperadamente, contactar um parente para poder
sair do inferno paulistano.
É curioso que também os nomes dos bairros, avenidas,
praças etc de São Paulo não são nomeados, mas apenas como uma referência
indireta é que se sabe que o “Centro Exato” é a Praça da Sé e o “Planalto” é a
região da Avenida Paulista, por exemplo. No fim do livro, inclusive, há uma mapa
em duas páginas que dão uma idéia do que como foi renomeada a “ex-cidade”.
Um trecho do clima angustiante da história e a citação
de uma das partes conhecidas da cidade é ilustrado neste trecho:
“Na região dos túneis soterrados sob a grande artéria
oeste-centro, o asfalto derretido avança sobre as calçadas esburacadas,
formando esculturas de ondas secas. Entulho e sucata cobrem o passeio,
bloqueando a passagem pelo meio dele, me obrigando a abandonar as marquises,
ziguezagueando pelas carcaças dos veículos abandonados amontoados, me expondo às
‘brincadeiras’ dos atiradores drogados ou apenas malucos nas janelas dos
edifícios.
“Rajadas de balas me seguiram a maior parte do tempo.
“Pausa para descanso. Dois tabletes químicos de leite
e meio litro de água filtrada.” (página 69).
A esta altura o adolescente está à procura de Ana C. uma
garota por que está apaixonado. Ela é de fato a única luz que brilha em sua
vida e por meio da união dos dois irá frutificar uma esperança ao final da
história.
É uma história interessante e que vale ser conhecida pelos
leitores de ficção científica. Claro que para quem está acostumado com o tema,
talvez não acrescente muito. Mas o que importa é a perspectiva de acompanhar
uma São Paulo devastada que, ao que parece, caiu sozinha numa espécie de guerra
civil. Não fica claro, pois Bonassi não revela o que teria acontecido, o que
faz sentido se pensarmos que quem narra os acontecimentos é, afinal, alguém que
está imerso neste mundo e, só conheceu ele, já que quando nasceu o mundo já era
deste jeito.
Este é mais um exemplo de uma ficção científica com
pendor de crítica social. Parte de um viés infanto-juvenil, ilustrado pelo
discurso final em que o adolescente justifica aos pais porque não quer ir morar
com eles e deseja ficar com sua garota. Mas este aspecto é secundário, vale é o
desenvolvimento do tema e a reflexão sobre as mazelas que vivemos nos dias de
hoje e que pode, eventualmente, nos levar a uma situação no mínimo próxima ao
relatado pelo diário. Para dar uma carga realista ainda maior o texto é
ilustrado com excelentes fotos de página inteira em preto e branco, de João
Wainer. Algumas se encaixam bem, inclusive, com os trechos da narrativa,
trazendo mais impacto ao drama relatado.
Fernando Bonassi, um conhecido e prestigioso escritor de prosas
urbanas, na literatura, no teatro e também no cinema, escreve com desenvoltura, com estilo ora seco, ora com floreios poéticos. Não
há espaço para um tom dramático, num ritmo veloz e objetivo, como num relato
mesmo de um diário. Algumas opções me estranharam, como escrever “um” como “1”,
com o número mesmo. O que é isso? Uma referência a um jeito adolescente de
escrever nestes tempos de internet? Se em termos de ficção científica o melhor
que podemos dizer é que a opção pela forma é a sua maior virtude, a história
não desagrada e ainda provoca a reflexão sobre o que pode vir a acontecer mas,
mais importante, sobre problemas que vivemos já, nos dias de hoje, como a
desigualdade social e a inviabilidade estrutural de uma metrópole.
– Marcello Simão Branco
Interessante, Marcello!
ResponderExcluirSerá que ainda encontro uma cópia na Temos Livros?
Oi Luke. Acho que não. Mais fácil tentar comprar pelo site da Publifolha.
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