terça-feira, 24 de outubro de 2017

Pesadelo, um conto de Miguel Carqueija

PESADELO
Miguel Carqueija
            O Doutor Gumercindo Macieira Dantas chegara cansado e sem disposição sequer para assistir o Rambo que colocara em seu aparelho de vídeo. Só queria dormir. Tomou um banho cuidadoso, eliminando os vestígios de sangue nas unhas, esquentou um lanche rápido e consumiu-o entre bocejos. Uma fatia de empadão de galinha com café bem forte e algumas bolachas com queijo pareceram-lhe suficientes. A cama o esperava.
            Aproximou-se da cama, quase cambaleando. Puxa, como aquela chimpanzé dera trabalho! Sim, às vezes cansava muito. E a luz faltar justamente na hora dos elétrodos... isso é que dava ser pesquisador no Brasil.
            Não se conseguia nem receber animais saudáveis. A chimpanzé morrera depressa demais, em consequência da dor e dos choques elétricos. Dantas precisava que ela aguentasse mais uma semana, para complementar as suas observações. Agora teria de começar a briga para conseguir outro exemplar.
            Gumercindo bocejou longamente, já na cama. As pálpebras pesavam como chumbo. Ainda têm uns idiotas que rezam antes de dormir, pensou ele. E adormeceu completamente.
            Em pouco já roncava.
................................

            As luzes se acenderam de súbito.
            — Que é isso?
            Dantas já não estava em seu quarto. Estava numa estranha sala, cheia de luzes semelhantes às dos estúdios de televisão, direcionadas sobre ele, ofuscando-o. E ele próprio estava sentado numa cadeira de lenha e couro, preso com correias aos braços, às pernas e às costas de mesma. Remexeu-se, tentando se libertar. E então observou, horrorizado, os demais presentes.
            Ali estavam diversos chimpanzés, todos com batas brancas, vários cachorros, gatos, porquinhos da Índia, ratos brancos e coelhos. Os chimpánzés portavam diversos objetos médico-cirúrgicos, moviam-se e confabulavam pelo aposento; os demais animais, agrupados em círculo ao redor da cadeira, fitavam-no com olhos de acusação.
            — Que faço aqui? Quem me prendeu? Socorro!
            Um dos símios olhou bem para Dantas e falou:
            — Hoje, humano, é o dia do seu julgamento. Nós, a quem você torturou e matou, o temos finalmente em nossas mãos.
            Incrédulo, Dantas percebeu que se tratava da fêmea que fôra aparufasa a uma cruz de aço, tivera o ventre aberto e o filhote eletrocutado no útero e recebera ainda uma séire de torturas dantescas antes de morrer, e da qual ele se recordara quando estava para adormecer.
            — Só que não lhe injetaremos curare — prosseguiu a chimpanzé, segurando um escalpelo. — Queremos que se debata e muito.
            — Hein?
            Um cachorro branco, que tivera suas patas serradas em vida (agora elas lá estavam de volta, inteiras), começou a latir para ele, furiosamente.
            — Calma, Rex! — disse um chimpanzé macho, a quem Dantas extraíra os olhos — Hoje ele será castigado.
            Aproximou-se de Dantas, empunhando um alicate.
            — Vamos começar pelos dentes. Naturalmente não lhe daremos anestesia, pois você nunca nos deu. Amor com amor se paga.
            — Como vocês podem falar? O que querem de mim?
            Se aquilo era um pesadelo como é que ele não conseguia acordar, por mais que se agitasse? Debateu-se, gritou, esgoelou: em vão.
            Fizeram-no abrir a boca. O alicate pinçou um dente canino e puxou com força.
            Dantas urrou de dor.
            — Grita, carrasco! — disseram em uníssono as vozes dos antropoides.
            Arrancaram-lhe dente após dente. O sangue jorrava de sua boca. A fêmea aproximou-se então com o escalpelo:
            — Chega de gritos. Perturbam a nossa concentração. Temos de fazer observações cuidadosas.
            Aproximou o escalpelo da boca do médico.
            — Não, a língua não!!! — gritou Dantas, louco de dor e terror.
            — Vemos primeiro abrir a barriga e puxar os intestinos para fora, como ele fez comigo — disse outro macaco. — Deixe-o gritar mais um pouco, Chica.
            — Mas ele não deixou você gritar, Boris. Lembra-se de cono ele mutilou suas cordas vocais?
            — Isso é verdade. Mas assim mesmo... como é bom ouvi-lo gritar!
            — Monstros! — berrou dantas, em desespêro. — Como podem torturar assim um ser humano?
            Boris encarou-o.
            — Ah, é? Então como você pôde torturar tantos animais, sabendo que nem utilidade existe nisso... que a sua Medicina não precisa de torturas? Estrebucha, desgraçado! Que isso ainda é pouco...
            A faca penetrou no ventre de Gumercindo. Incrédulo, perplexo, ele assistiu o seu intestino ser desenrolado para fora como a estopa que um mágico puxasse da cartola.
            Dantas pôs-se a gritar como um possesso, como se nada mais lhe restasse fazer na vida.
            Chica adiantou-se.
            — Pois bem, Dantas: vou amputar sua língua, e depois estaremos prontos para experimentar o LD.50 em você.
            Pela mente atormentada d eDantas passou a imagem do LD-50: a “Dose Letal 50%”, isto é, a administração, por todos os meios possíveis (bucal, nasal, anal, dérmico, intravenoso, subcutâneo e ocular) de remédios, pesticidas e cosméticos... para testar sua toxidade.
            Algo que normalemente se faz com animais.
            — Não! Não, pelo amor de Deus! Não me façam essa infâmia!
            — Falou em Deus, doutor? Para que esse fingimento? Desde a faculdade você perdeu a fé em Deus. Você não acredita n’Ele!
            E aproximou o escalpêlo da boca de Dantas. Este prosseguia:
            — Não! Não! Nããão.....
.............................

            — Acorde, homem!
            — Para que tanto espetáculo?
            — Puxa, deve estar maluco!
            Gumercindo abriu os olhos, em sobressalto. Quase pulou da cama, porém foi contido. Lá estavam vários vizinhos seus, alguns de pijama.
            O Afonsino resumiu tudo:
            — Quase chamamos a polícia. Você estava gritando tanto que parecia possuído por mil diabos. Que foi que houve, homem? Encheu a cara ou o que?
            Rostos, rostos. Todos aborrecidos, incomodados pelo sono perturbado.
            Uma mulher observou:
            — Foi preciso arrombar a sua porta. Nunca vi um pesadelo tão forte! O senhor deve andar muito nervoso...
            — Puxa, desculpem-me... foi de fato horrível...
            — Mas afinal, homem, que foi que você sonhou de tão horrível? No fim você gritava: “Não me façam essa infâmia!”
            Dantas ia responder ao Afonsino mas um pensamento cruzou sua mente: dizer o que? Que no sonho estava sendo torturado pelos animais que normalmente ele torturava? Coisa que ninguém sabia em detalhes fora do laboratório?
            — Eu... eu... sonhei que estava nas mãos de assaltantes. Desses que fazem crueldades. Foi terrível, mas felizmente foi só um sonho!
            Não se atreveu a dizer: “Graças a Deus, foi só um sonho!”
            No dia seguinte, para espanto geral, o Dr. Dantas pediu demissão no hospital e, torturado pelos remorsos, abandonou a Medicina.
            Meses depois, com as ecvonomias que tinha, abriu uma sorveteria.


(27/9 a 20/10/1988)
           
           


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