Primeiro romance de Ivan Hegenberg, escritor paulista formado em Artes Plásticas pela ECA-USP que, em 2005, teve publicada a coletânea A grande incógnita, pela Editora Annablume. Desta vez, o autor envereda pelo fantástico e experimenta a ficção científica, inspirado em livros como 1984 de George Orwell, Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, conforme evoca o texto da orelha do livro. Porém, no que se refere à estrutura, este romance tem mesmo é a aparência de uma coletânea, sendo formado pelo encadeamento de narrativas independentes e não contínuas, situadas no mesmo universo. São elas:
“História do mundo”: Um homem desiludido com a vida dialoga com um robô sem emoções, enquanto viaja pelo tempo e pelo espaço através de um programa simulador. O conto contextualiza o ambiente de um futuro superpopuloso controlado política e socialmente por programas de computador, no qual as pessoas aprenderam a dominar a telepatia, e a carência de água e comida é o problema principal.
“Água”: Membros de uma equipe de assassinos do estado, chamado Comando da água, torturam e matam civis inocentes apenas porque eles são infelizes, como forma de reduzir a tensão social pela falta de água. Um deles, entretanto, depois de uma vida de assassinatos, decide dar baixa do pelotão.
“Dia qualquer”: Um homem virtual vive insipidamente num programa simulador. Obcecada por ele, uma mulher morre de inanição depois de passar vários dias ligadas ao computador.
“Passagem”: Uma menina de oito anos aprende, precocemente, como se comunicar por telepatia e passa por problemas de relacionamento com seus amigos da escola e com a sua mãe, ao tomar contato com a alma das pessoas. Sua professora, uma mulher madura e infeliz, torna-se sua principal vinculação emocional com a realidade.
“Zeitgeist”: O capítulo mais longo do romance. O maior telepata do mundo invade a mente das pessoas e constrói um mosaico insano da sociedade do futuro.
“O supremo esteta”: Grafado em corpo diferenciado, este conto simula um texto de divulgação de uma espécie de religião do futuro.
“Encanto”: Um homem cético fica com dúvidas sobre a validade de seu ceticismo depois de participar de um ritual místico religioso em que os participantes, que têm todo o tipo de implantes e reconstruções físicas, tomam um chá alucinógeno que induz um estado de êxtase.
“A aldeia dos índios Tympi”: Jovens intelectuais reúnem-se para um sarau poético. Suas poesias são compostas por computadores, a partir de suas próprias moléculas de sangue. Depois do sarau, um casal tem sua primeira experiência sexual num inferninho.
“Explorações”: Três narrativas se intercalam neste trecho, sendo uma sobre um diretor de cinema que tem problemas conjugais e está produzindo um filme pornô. O segundo é sobre a trágica viagem de um grupo de cientistas ao interior de uma célula e, na terceira, um solilóquio do maior filósofo do mundo concluindo alguma coisa insondável sobre existência de Deus.
“Festa do Último Grito”: Alguns dos personagens do livro se encontram em Praga, uma das poucas cidades do mundo que não é monitorada pelos computadores, para participar de uma cerimônia de suicídio coletivo. O evento é realizado durante uma noite e apenas uma vez ao ano. Geralmente, metade dos participantes consegue morrer. Os restantes ou sobrevivem da tentativa ou desistem, embora seja perigoso mesmo assim: os habitantes da cidade atuam como assassinos, matando todos os que encontram pela frente. Ali estão, por exemplo, a menina precoce, o ex-assassino do Comando Água, o homem cético, e muitos outros apenas citados ao longo dos inúmeros segmentos narrativos. Para cada um deles, a Festa do Último Grito é o um apocalipse. Sobrevivendo, terão enfim esperança suficiente para recomeçar.
“Epílogo: atração”: Um casal – visto no conto “A aldeia dos índios Tympi” – colhe argila num barranco enquanto discute sua relação.
O final anti-climático, depois das emoções sangrentas do conto anterior, dá o exemplo para análise do livro todo: uma antologia de textos pós-modernos, sem princípio e sem final, com trechos de interesse intercalados com solilóquios que pouco contribuem com a narrativa. Em alguns casos, a intercalação dos períodos é tão arbitrária que o contexto se perde completamente. Os trechos filosóficos não são convincentes e mais contornam do que abordam os temas que sugerem, dando a impressão que o autor não os domina com profundidade suficiente.
Apesar da premissa base do universo de Será estabelecer que se trata de um mundo superpovoado com problemas de abastecimento gravíssimos, isso parece ter um significado quase desprezível na vidas das personagens, mais preocupadas com seus relacionamentos pessoais do que com água e comida. Tanto que, na maior parte do tempo, suas vidas parecem tão normais que soam até sem graça.
Um pouco melhor é tratada a questão da telepatia, que ensaia ser um detalhe importante nos primeiros contos, mas vai perdendo consistência ao longo do livro até ficar insignificante nos últimos textos.
Dessa forma, Hegenberg desperdiçou dois dos principais temas que caracterizariam o seu mundo do futuro, escrevendo histórias que ficariam bem melhores se ambientadas nos dias de hoje. Sem a devida consistência ambiental, a história se tornou frágil, presa fácil à incredulidade e ao desinteresse do leitor, o que é agravado pela falta de um personagem principal com o qual o leitor se identifique. Nem mesmo as cenas de sexo explícito narradas em “Explorações” causa algum impacto.
Quando tudo parece perdido, vem o melhor texto do livro, o capítulo intitulado “Festa do último grito”, com niilismo suficiente para levantar o interesse do leitor, embalando-o até as páginas finais do volume. Este conto, se descolado do livro, pode figurar com louvor em qualquer antologia literária e deixa claro que, bem orientado, Ivan Hegenberg tem talento suficiente para escrever obras de impacto e interesse.
— Cesar Silva
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