sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Páginas do Futuro, Braulio Tavares

Páginas do Futuro: Contos Brasileiros de Ficção Científica, Braulio Tavares, organização e apresentação. 156 páginas. Capa e ilustrações de Romero Cavalcanti. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011.

Esta antologia era aguardada há alguns anos, mas não deixou de surpreender ao ser lançada na virada de 2011 para 2012. O escritor Braulio Tavares, um dos nomes mais importantes da ficção científica brasileira, tem consolidado uma carreira de antologista tão notável quando a do escritor talentoso que despontou no fim da década de 1980, ainda no ambiente do fandom.
Nestes primeiros anos do século xxi, Tavares tem coordenado a coleção “Contos Fantásticos”, pela editora carioca Casa da Palavra. Em 2003, lançou Páginas de Sombra Contos Fantásticos Brasileiros, e em 2005 e 2007, organizou respectivamente duas ótimas antologias internacionais voltadas a duas personalidades próximas ao fantástico: Contos Fantásticos no Labirinto de Borges e Freud e o Estranho: Contos Fantásticos do Inconsciente. Já em 2009, no contexto comemorativo do bicentenário de nascimento do mestre americano do horror, apresentou a antologia Contos Obscuros de Edgar Allan Poe.
Páginas do Futuro: Contos Brasileiros de Ficção Científica é, portanto, a sexta antologia da série e demarca uma proposta formativa dentro da literatura brasileira que procura o diálogo entre a literatura de gênero e o chamado mainstream literário. Como disse, era aguardada há anos pelos fãs e críticos da fc brasileira. Mas, ao que parece, chegou no melhor momento, depois de uma certa maturação dentro da própria coleção e no contexto intelectual do mainstream, mais favorável nestes anos recentes a uma maior abertura para a ficção científica e gêneros afins.
Tanto é assim que a esta antologia somam-se outras que vem sendo organizadas com perfil de informação e formação semelhante, a série “Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica”, iniciativa do escritor Roberto de Sousa Causo junto a Devir Livraria.[1]  Mas se em Causo o aspecto histórico e mais próximo aos temas tradicionais da fc, em Tavares a proposta segue uma linha mais conceitual em termos de definição e panorama, ao apresentar para os não aficcionados uma espécie de arco de possibilidades, tanto em termos temáticos, como de estilo.
Nesse sentido, Páginas do Futuro apresenta uma sucinta mas robusta apresentação em que Tavares situa o gênero nos seus termos mais gerais, para em seguida voltar-se a uma profícua reflexão sobre as suas características no Brasil, além de suas possibilidades enquanto literatura que acrescente alguma coisa para além do ambiente restrito do fandom, como quando afirma:

[...] a fc brasileira não pode abrir mão de um conhecimento da fc internacional, sob o risco de deixar de ser fc, e não pode abrir mão de um conhecimento equivalente da literatura brasileira do nosso país, sob o risco de deixar de ser brasileira. (pág. 16).

Esta posição apresenta novidade em relação ao pensamento do autor em anos anteriores — quando ele era mais voltado à valorização literária do gênero, se posso colocar assim —, e chega num momento especialmente sensível da produção de fc no país, marcado por resultados ainda incertos de uma nova geração de autores surgidos neste início de século xxi. Um cenário com muitos títulos publicados por autores novos sem grande experiência e conhecimento literário, principalmente em termos de fc. É certo que o chamado à responsabilidade se dirige aos autores contemporâneos de Tavares, dos anos 1980 em diante, mas olhando o cenário de maneira geral, é mais do que necessário que os autores novos sejam incluídos dentro dessa perspectiva que dialoga tanto com os temas de fronteira da fc internacional, como com as tradições mais concretas da literatura nacional.
Coerente com essa proposta, a antologia apresenta uma dúzia de histórias bastante diversificadas, em termos históricos, temáticos e de estilo. Difícil mesmo puxar na memória uma antologia de alcance tão abrangente quanto esta, nesses três quesitos. Em certo sentido, Páginas do Futuro é quase que uma antologia de intervenção, ao conceituar, refletir e apresentar um leque de histórias que objetiva formar um debate sobre a ficção científica praticada no Brasil.
Não há, porém, um caráter didático ou prescritivo: o tom é leve e descontraído, com textos que antes de mais nada primam pelo bom gosto e pelo entretenimento provocativo, que procuram tirar o leitor do convencional, do lugar comum. Pode parecer óbvio esperar isso de uma antologia de ficção científica, mas nem sempre o processo de seleção realizado em antologias reflete plenamente este objetivo. O projeto gráfico já consagrado também contribui para o êxito final, com ótimas ilustrações de Romero Cavalcanti.
O leitor brasileiro sem grande intimidade com a fc, mas também o leitor assíduo que nem sempre olha com atenção para o gênero de próprio país, é apresentado a nomes que surpreendem, como Joaquim Manuel de Macedo e Rachel de Queiroz — esta com “Ma-Hôre” (1961), uma pequena joia de encontro com alienígena, de perspectiva tipicamente brasileira —, ou nomes conhecidos apenas no ambiente do fandom, como os contemporâneos Ataíde Tartari, Finisia Fideli e Fábio Fernandes; ou ainda nomes que se consagraram nos anos 1960 e servem de norte à evolução do gênero no país, como André Carneiro e Jerônymo Monteiro.
O livro inclui um conjunto de temas que explora concepções que, em certo sentido, contemplam uma visão do gênero em cada época. Por exemplo, no caso de uma abordagem mais ligeira ou irônica da ciência típica do início do início do século xx — como no divertido “O Inimigo Gaseificado, ou a Vingança do Sr. Concreto” (1923), de Oswald Beresford —, ou mais socialmente contestadoras e literariamente arrojadas, como no surpreendente (mas falho) texto de Ruben Fonseca, “O Quarto Selo (Fragmento)” (1967), ou no delirante “Vanessa von Chrysler” (1992), de Fausto Fawcett, um autor caótico que parece querer brigar sonoramente com as palavras.
Há também narrativas que apresentam prosas mais convencionais, mas com uma especulação mais segura e informada sobre a ficção científica em si, como no clássico “Exercícios de Silêncio” (1983), de Fideli, talvez a única história à lá Golden Age do livro, ou ainda no humanista “O Copo de Cristal” (1969), de Monteiro. Por outro lado, inversões da noção de realidade e exercícios temáticos que utilizam a própria estrutura narrativa estão bem representados no conto de André Carneiro e na obra-prima de Luiz Bras, “Déjà-vu” (2010), uma história candidata a clássica da nossa fc.
Mesmo bem amarrada em termos de proposta, a antologia entretanto, apresenta uma certa irregularidade, principalmente em termos de preferências temáticas. Poder-se-ia escolher outras histórias de perfis um pouco diferentes, mas isso depende do critério crítico de cada organizador e não tira o mérito destas escolhas específicas, pois para além da mera seleção em si, joga a favor esta proposta que procura formar e aproximar dois círculos literários ainda estranhos um ao outro: o do fandom de fc e o do mainstream literário. Não é apenas com Páginas do Futuro que este hiato será preenchido, mas trata-se sem dúvida uma das mais relevantes contribuições que poderiam ser realizadas. Que a sequência do trabalho de antologista de Braulio Tavares possa consolidar a aproximação destes dois mundos menos distantes do que parecem.

– Marcello Simão Branco



[1] São elas: Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica (2007), Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica: Fronteiras (2009) e As Melhores Novelas Brasileiras de Ficção Científica (2011).

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