Páginas do Futuro: Contos Brasileiros de Ficção
Científica, Braulio Tavares, organização e apresentação. 156 páginas. Capa
e ilustrações de Romero Cavalcanti. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2011.
Esta antologia era aguardada há
alguns anos, mas não deixou de surpreender ao ser lançada na virada de 2011
para 2012. O escritor Braulio Tavares, um dos nomes mais importantes da ficção
científica brasileira, tem consolidado uma carreira de antologista tão notável
quando a do escritor talentoso que despontou no fim da década de 1980, ainda no
ambiente do fandom.
Nestes primeiros anos do século xxi, Tavares tem coordenado a coleção
“Contos Fantásticos”, pela editora carioca Casa da Palavra. Em 2003, lançou Páginas
de Sombra Contos Fantásticos Brasileiros, e em 2005 e 2007, organizou
respectivamente duas ótimas antologias internacionais voltadas a duas
personalidades próximas ao fantástico: Contos Fantásticos no Labirinto de
Borges e Freud e o Estranho: Contos Fantásticos do Inconsciente.
Já em 2009, no contexto comemorativo do bicentenário de nascimento do mestre
americano do horror, apresentou a antologia Contos Obscuros de Edgar Allan
Poe.
Páginas do Futuro: Contos
Brasileiros de Ficção Científica é, portanto, a sexta antologia da série e
demarca uma proposta formativa dentro da literatura brasileira que procura o
diálogo entre a literatura de gênero e o chamado mainstream literário.
Como disse, era aguardada há anos pelos fãs e críticos da fc brasileira. Mas, ao que parece,
chegou no melhor momento, depois de uma certa maturação dentro da própria
coleção e no contexto intelectual do mainstream, mais favorável nestes
anos recentes a uma maior abertura para a ficção científica e gêneros afins.
Tanto é assim que a esta
antologia somam-se outras que vem sendo organizadas com perfil de informação e
formação semelhante, a série “Melhores Contos Brasileiros de Ficção
Científica”, iniciativa do escritor Roberto de Sousa Causo junto a Devir
Livraria.[1] Mas se em Causo o aspecto histórico e mais
próximo aos temas tradicionais da fc,
em Tavares a proposta segue uma linha mais conceitual em termos de definição e
panorama, ao apresentar para os não aficcionados uma espécie de arco de
possibilidades, tanto em termos temáticos, como de estilo.
Nesse sentido, Páginas do
Futuro apresenta uma sucinta mas robusta apresentação em que Tavares situa
o gênero nos seus termos mais gerais, para em seguida voltar-se a uma profícua
reflexão sobre as suas características no Brasil, além de suas possibilidades
enquanto literatura que acrescente alguma coisa para além do ambiente restrito
do fandom, como quando afirma:
[...]
a fc brasileira não pode abrir mão
de um conhecimento da fc
internacional, sob o risco de deixar de ser fc,
e não pode abrir mão de um conhecimento equivalente da literatura brasileira do
nosso país, sob o risco de deixar de ser brasileira. (pág. 16).
Esta posição apresenta novidade
em relação ao pensamento do autor em anos anteriores — quando ele era mais
voltado à valorização literária do gênero, se posso colocar assim —, e chega
num momento especialmente sensível da produção de fc no país, marcado por resultados ainda incertos de uma
nova geração de autores surgidos neste início de século xxi. Um cenário com muitos títulos publicados por autores
novos sem grande experiência e conhecimento literário, principalmente em termos
de fc. É certo que o chamado à
responsabilidade se dirige aos autores contemporâneos de Tavares, dos anos 1980
em diante, mas olhando o cenário de maneira geral, é mais do que necessário que
os autores novos sejam incluídos dentro dessa perspectiva que dialoga tanto com
os temas de fronteira da fc
internacional, como com as tradições mais concretas da literatura nacional.
Coerente com essa proposta, a
antologia apresenta uma dúzia de histórias bastante diversificadas, em termos
históricos, temáticos e de estilo. Difícil mesmo puxar na memória uma antologia
de alcance tão abrangente quanto esta, nesses três quesitos. Em certo sentido, Páginas
do Futuro é quase que uma antologia de intervenção, ao conceituar, refletir
e apresentar um leque de histórias que objetiva formar um debate sobre a ficção
científica praticada no Brasil.
Não há, porém, um caráter
didático ou prescritivo: o tom é leve e descontraído, com textos que antes de
mais nada primam pelo bom gosto e pelo entretenimento provocativo, que procuram
tirar o leitor do convencional, do lugar comum. Pode parecer óbvio esperar isso
de uma antologia de ficção científica, mas nem sempre o processo de seleção
realizado em antologias reflete plenamente este objetivo. O projeto gráfico já
consagrado também contribui para o êxito final, com ótimas ilustrações de
Romero Cavalcanti.
O leitor brasileiro sem grande
intimidade com a fc, mas também o
leitor assíduo que nem sempre olha com atenção para o gênero de próprio país, é
apresentado a nomes que surpreendem, como Joaquim Manuel de Macedo e Rachel de
Queiroz — esta com “Ma-Hôre” (1961), uma pequena joia de encontro com
alienígena, de perspectiva tipicamente brasileira —, ou nomes conhecidos apenas
no ambiente do fandom, como os contemporâneos Ataíde Tartari, Finisia
Fideli e Fábio Fernandes; ou ainda nomes que se consagraram nos anos 1960 e
servem de norte à evolução do gênero no país, como André Carneiro e Jerônymo
Monteiro.
O livro inclui um conjunto de
temas que explora concepções que, em certo sentido, contemplam uma visão do
gênero em cada época. Por exemplo, no caso de uma abordagem mais ligeira ou
irônica da ciência típica do início do início do século xx — como no divertido “O Inimigo Gaseificado, ou a Vingança
do Sr. Concreto” (1923), de Oswald Beresford —, ou mais socialmente
contestadoras e literariamente arrojadas, como no surpreendente (mas falho)
texto de Ruben Fonseca, “O Quarto Selo (Fragmento)” (1967), ou no delirante
“Vanessa von Chrysler” (1992), de Fausto Fawcett, um autor caótico que parece
querer brigar sonoramente com as palavras.
Há também narrativas que
apresentam prosas mais convencionais, mas com uma especulação mais segura e
informada sobre a ficção científica em si, como no clássico “Exercícios de
Silêncio” (1983), de Fideli, talvez a única história à lá Golden Age do
livro, ou ainda no humanista “O Copo de Cristal” (1969), de Monteiro. Por outro
lado, inversões da noção de realidade e exercícios temáticos que utilizam a
própria estrutura narrativa estão bem representados no conto de André Carneiro
e na obra-prima de Luiz Bras, “Déjà-vu” (2010), uma história candidata a
clássica da nossa fc.
Mesmo bem amarrada em termos de
proposta, a antologia entretanto, apresenta uma certa irregularidade,
principalmente em termos de preferências temáticas. Poder-se-ia escolher outras
histórias de perfis um pouco diferentes, mas isso depende do critério crítico
de cada organizador e não tira o mérito destas escolhas específicas, pois para
além da mera seleção em si, joga a favor esta proposta que procura formar e
aproximar dois círculos literários ainda estranhos um ao outro: o do fandom
de fc e o do mainstream
literário. Não é apenas com Páginas do Futuro que este hiato será
preenchido, mas trata-se sem dúvida uma das mais relevantes contribuições que
poderiam ser realizadas. Que a sequência do trabalho de antologista de Braulio
Tavares possa consolidar a aproximação destes dois mundos menos distantes do
que parecem.
– Marcello Simão
Branco
[1]
São elas: Os Melhores Contos Brasileiros de Ficção Científica (2007), Os Melhores Contos Brasileiros de
Ficção Científica: Fronteiras (2009) e As Melhores Novelas Brasileiras
de Ficção Científica (2011).
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