Reconhecimento de Padrões
(Pattern
Recognition), William Gibson. Tradução de Fábio Fernandes. 409 páginas. São
Paulo: Editora Aleph, 2004.
William Gibson foi,
sabidamente, um dos principais líderes do extinto movimento cyberpunk, e
sua figura pública é conhecida para além das fronteiras da ficção científica.
Assim, a editora Aleph acerta em cheio nos brindando com mais uma obra deste
autor importante, tanto para a ficção científica, como para o que poderíamos
chamar de uma literatura voltada a estudos contemporâneos da cultura.
O livro vem bem
recomendado do exterior, pois foi finalista do prestigioso Arthur C. Clarke
Award 2004 e esteve na lista dos “livros notáveis” em 2003, pela revista
americana Locus. Além disso, vale destacar a edição brasileira, bem
cuidada do ponto de vista editorial. Com uma bela ilustração de capa de Thiago
Ventura e uma tradução competente, por um especialista no gênero, o Fábio
Fernandes. Ele tem a sensibilidade certa em perceber quais neologismos
estrangeiros devem ou não ser vertidos para a língua portuguesa, conectado que
está com a rede mundial de computadores e sua já vasta e internacionalizada
sub-cultura.
Isso porque Reconhecimento
de Padrões, embora não se assuma como um romance de ficção científica tem
toda uma ambientação que muito o lembra. Gibson se propôs a um desafio difícil,
percebe-se na leitura de sua obra: como escrever uma história situada em nosso
presente e que, ao mesmo tempo, procure especular sobre as perspectivas deste
mundo nascente e incerto do início de século.[1]
Já se disse que escrever
FC near-future é mais difícil que a far-future. As mudanças
políticas, culturais e tecnológicas acontecem o tempo todo e num ritmo difícil
de apreender enquanto vivemos o processo. Corre-se o risco de trocar a
especulação, pela antecipação. Ou pior, ser taxado com a pecha de
futurologista, o que em 99% dos casos soa como algo pejorativo. Mais fácil ou
prudente, então, realizar uma tentativa de extrapolação distante, fora das
paixões e do alcance dos que, de alguma forma, irão testemunhar as mudanças
propostas em uma história de futuro próximo.
Mas se o desafio é maior
por causa da história se ambientar em cenários próximos, o prazer pela leitura
de uma obra que — a despeito desta dificuldade — consiga ser robusta e bem
realizada é tanto maior. E este é o caso de Reconhecimento de Padrões.
Em uma passagem
particularmente luminosa, um diálogo entre dois personagens situa os objetivos
de Gibson ao conceber esta obra — inclusive com relação à ficção científica —,
bem como suas expectativas do mundo que se avizinha:
Não temos idéia, agora,
de quem ou o quê poderão ser os habitantes do nosso futuro. Nesse sentido, não
temos futuro. Não no sentido do futuro que os nossos avós tinham, ou achavam
que tinham. Futuros culturais completamente imaginários eram o luxo de outra
época, na qual o “agora” tinha uma duração maior. Para nós, claro, as coisas
podem mudar de modo tão abrupto, tão violento, tão profundo, que futuros como o
dos nossos avós possuem um “agora” insuficiente para se manter de pé. Não temos
futuro porque o nosso presente é volátil demais. (...). Temos apenas
gerenciamento de riscos. O desdobramento dos cenários de um momento determinado.
Reconhecimento de padrões.
O futuro está lá olhando
para nós. Tentando entender a ficção em que teremos nos tornado. E de onde eles
estão, o passado atrás de nós não parecerá nem um pouco com o passado que
imaginamos atrás de nós agora. (págs.
70-71).
O livro foi escrito em
2002, e a história se passa neste ano. Isso não lembra algo? Sim, apenas um ano
após o 11 de Setembro, seus ecos são corajosamente abordados no interior da
trama, um dos pontos fortes do livro como um todo, inclusive, com a própria cena
da queda das torres sendo narradas em flash-back por um dos personagens.
De arrepiar, pois me fez lembrar de mim mesmo, perplexo como os personagens, à
frente da TV de minha casa, tomando café e não querendo acreditar em ver o
segundo avião se chocando com a segunda torre do World Trade Center. E Gibson
vinculou este evento traumático da vida americana — e mundial — recente dentro
da própria história que conta, o que a traz ainda mais próxima da realidade. O
pai da protagonista Cayce Pollard desaparece misteriosamente na manhã fatídica
dos ataques. Ele estava hospedado num hotel da cidade e simplesmente não deixa
rastro depois dos atentados.
A Cayce em questão é uma
publicitária americana free-lancer, especializada na procura de novas
tendências de comportamento em grupos específicos da sociedade globalizada,
sub-culturas, manifestações underground, para resumir. Identificando
estas tendências, em modos de se vestir, gírias, consumo de certo tipo de
alimento ou audição de uma música específica, ela faz um relatório para uma
empresa, com o objetivo de tornar a tendência comercialmente interessante. Ou
seja, ela faz “reconhecimento de padrões” culturais, potencialmente
aproveitáveis do ponto de vista econômico. E ela também trabalha com a
identificação de logotipos, marcas registradas de empresas, aprovando ou não
sua viabilidade comercial. Contudo, contraditoriamente, ela tem uma fobia
patológica contra logotipos de multinacionais, como o boneco da Michellin, o
símbolo da Coca-Cola, ou o selo de uma bolsa Louis Vuitton, por exemplo.
Inicialmente contratada
pela agência de publicidade Blue Ant em Londres para aprovar alguns logotipos,
ela depois é contactada pelo dono para outro serviço, ainda menos convencional.
Procurar o criador de um filme que tem sido divulgado na internet, quadro a
quadro, de tempos em tempos. E isso vem de encontro a uma curiosidade pessoal
de Cayce, pois ela é uma ativa participante de uma lista de discussão na
internet, por meio do website Fetiche:Filme:Forum, onde as pessoas
acompanham as últimas novidades sobre o filme, bem como trocam e-mails
sobre o tema. Tudo muito parecido com o que nós, leitores de ficção científica,
estamos habituados já há alguns anos em torno do nosso assunto de preferência.
A partir deste ponto a
história segue os passos tortuosos e surpreendentes de Cayce, coadjuvada por
uma série de personagens muito vivos e interessantes, que lhe dá suporte: de
ex-agentes de centrais de inteligência de países extintos a hakers ou
ainda espiões industriais insuspeitos. Além do seu amigo cineasta Damien, que
lhe manda e-mails de suas filmagens em São Petersburgo, Rússia. Dois
irmãos poloneses que vivem sem grandes recursos em Londres, envolvidos de
alguma forma com o manuseio e venda de novas tecnologias. Seus próprios correspondentes
do Fetiche:Filme:Forum, especialmente um sujeito com o misterioso nick name
de Parkaboy, que lhe será uma figura importante na tentativa de decifração
final do criador.
Mas o que Cayce vai só
aos poucos descobrindo é a teia paralela de poderosos interesses econômicos
envolvidos em torno da produção deste filme, e as pessoas perigosas e não
confiáveis com as quais ela têm de lidar para chegar até o criador. Com isso
ela sai de Londres para uma viagem a Tóquio. E depois do retorno a Londres
parte para Moscou, onde tudo se esclarece.
Não é por acaso que
Gibson situa sua história nestas três metrópoles do mundo globalizado. Londres
com seu charme decadente, pátria-mãe do capitalismo, hoje transformada em um
vigoroso centro de negócios e serviços, além de ser um influente centro de
novas experimentações culturais, por sua herança também estratégica de sede de
um antigo império. Ou seja, cidade cosmopolita por natureza, local por onde
tudo passa, embora não seja ela mesma o local onde as decisões mais importantes
sejam tomadas. De Tóquio, Gibson nos situa na, talvez, megalópole de maior
contraste no mundo contemporâneo. A cidade mais populosa do planeta, com o uso
cotidiano da vanguarda tecnológica, mesclada por uma tradição cultural antiga e
muito arraigada nos costumes, ainda que superficialmente transpareça uma
‘ocidentalidade’ que impressiona à primeira-vista.
Finalmente, a escolha de
Moscou é a mais feliz, pois representa em estado puro, o tal capitalismo
selvagem, tão denunciado na boca de antigos membros de partidões comunistas e
socialistas. Gibson é perspicaz em uma passagem, quando um de seus personagens
diz sobre a cidade e sobre o que é esta nova Rússia pós-socialista: “Agora nós
dizemos que tudo o que Lenin nos ensinou sobre o comunismo era falso, e tudo o
que ele nos ensinou sobre capitalismo, verdadeiro.” Síntese brilhante e
sombria, ao mesmo tempo. E o que dizer de Nova York? O centro do mundo se faz
presente por sua ausência, embora quase todos os personagens dela tenha alguma
referência particular. Como se fosse o local de quem se quer afastar, por causa
do choque recente. Ainda que, em termos concretos, os personagens saibam não
ser possível, por causa de sua liderança evidente no mundo contemporâneo.
Reconhecimento de Padrões é um livro tão inteligente
quanto difícil para um leitor não acostumado com determinadas palavras e
conceitos. Assim, diria que não é um livro para qualquer público. Uma pessoa
não afeiçoada com alguns avanços tecnológicos ou com um estilo de vida
específico, embora emergente, pode se desinteressar em prosseguir a leitura.
Meio hermético, cifrado, lento, mas dentro do contexto da história que se quer
contar e, claro, sem exageros. E esta aparente estranheza de vocábulos e
conceitos não se dá tanto em eventuais inovações tecnológicas, embora exista
também, afinal o livro se passa entre gente que lida com internet e suas
derivações o tempo todo. Importa mais o detalhamento que Gibson faz de uma
espécie de ‘sociologia do mercado global’, com suas marcas e logotipos, roupas,
acessórios diversos de uso pessoal, comunicação instantânea via satélite,
celular e internet, num verdadeiro e contundente painel da internacionalização
inevitável da expansão capitalista, como já pregava há 150 anos um certo
filósofo e economista alemão, radicado na Inglaterra. Mas a abordagem de Gibson
não parte de uma ótica econômica, mas sim sociológica, mostrando como marcas,
empresas, produtos de uso internacional, sinalizam a ascensão de uma cultura
globalizada, ‘mundializada’, no sentido de gostos e comportamentos partilhados
de modo semelhante e com uma mesma identidade por todo o planeta. O que
configuraria uma das características mais presentes do mundo contemporâneo (ou
pós-contemporâneo): uma sociedade civil internacional, de caráter transnacional,
que aos poucos se desvincula das fronteiras nacionais, um dos bastiões de
identidade política e cultural mais fortes dos séculos XIX e XX.
Em sua busca obsessiva
pela fonte de criação do filme, Cayce Pollard se envolve com figurões pesados
do capitalismo criminoso da caótica nova Rússia. Tem um alento sobre o
paradeiro do seu pai que — é importante dizer —, era um agente do governo
americano aposentado que havia experimentado o ápice de sua carreira nos tempos
novecentistas da Guerra Fria, coisa que já soa como obsoleta aos nossos
ouvidos.
O livro é longo em suas
400 e tantas páginas, a narrativa é linear, e não há grandes momentos de ação
ou clímax, aos quais os leitores de ficção científica estão habituados. Mas
Gibson tem uma prosa direta, com uma grande capacidade de explicar de maneira
coerente assuntos de abordagem não muito fácil, além de revestir o livro de um
painel, de um mosaico rico e instigante dos costumes e comportamentos de um
segmento social internacionalizado e de contato cotidiano com tecnologia,
pessoas que, aos poucos, vão se tornando mais comuns neste mundo atual.
E se o enredo em si não
alcança picos de emoção, se fortalece em seu conjunto e pelos tipos de
personagens elaborados, em especial a figura cativante de Cayce Pollard. Uma personagem
ilustrativa dos tempos confusos que vivemos, ela também à procura de
‘reconhecimento de padrões’ em seu nível pessoal, para se situar neste mundo
globalizado e de costumes cruzados, tão característico deste início de século
XXI.
—
Marcello Simão Branco
[1] A editora Aleph republicou Reconhecimento de
Padrões em 2013 e a continuação Território Fantasma (Spoock
Country), em 2013. É uma trilogia de temas contemporâneos que inclui ainda
o romance Zero History (2010).
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