segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Reconhecimento de Padrões, William Gibson


Reconhecimento de Padrões (Pattern Recognition), William Gibson. Tradução de Fábio Fernandes. 409 páginas. São Paulo: Editora Aleph, 2004.


William Gibson foi, sabidamente, um dos principais líderes do extinto movimento cyberpunk, e sua figura pública é conhecida para além das fronteiras da ficção científica. Assim, a editora Aleph acerta em cheio nos brindando com mais uma obra deste autor importante, tanto para a ficção científica, como para o que poderíamos chamar de uma literatura voltada a estudos contemporâneos da cultura.

O livro vem bem recomendado do exterior, pois foi finalista do prestigioso Arthur C. Clarke Award 2004 e esteve na lista dos “livros notáveis” em 2003, pela revista americana Locus. Além disso, vale destacar a edição brasileira, bem cuidada do ponto de vista editorial. Com uma bela ilustração de capa de Thiago Ventura e uma tradução competente, por um especialista no gênero, o Fábio Fernandes. Ele tem a sensibilidade certa em perceber quais neologismos estrangeiros devem ou não ser vertidos para a língua portuguesa, conectado que está com a rede mundial de computadores e sua já vasta e internacionalizada sub-cultura.
Isso porque Reconhecimento de Padrões, embora não se assuma como um romance de ficção científica tem toda uma ambientação que muito o lembra. Gibson se propôs a um desafio difícil, percebe-se na leitura de sua obra: como escrever uma história situada em nosso presente e que, ao mesmo tempo, procure especular sobre as perspectivas deste mundo nascente e incerto do início de século.[1]
Já se disse que escrever FC near-future é mais difícil que a far-future. As mudanças políticas, culturais e tecnológicas acontecem o tempo todo e num ritmo difícil de apreender enquanto vivemos o processo. Corre-se o risco de trocar a especulação, pela antecipação. Ou pior, ser taxado com a pecha de futurologista, o que em 99% dos casos soa como algo pejorativo. Mais fácil ou prudente, então, realizar uma tentativa de extrapolação distante, fora das paixões e do alcance dos que, de alguma forma, irão testemunhar as mudanças propostas em uma história de futuro próximo.
Mas se o desafio é maior por causa da história se ambientar em cenários próximos, o prazer pela leitura de uma obra que — a despeito desta dificuldade — consiga ser robusta e bem realizada é tanto maior. E este é o caso de Reconhecimento de Padrões.
Em uma passagem particularmente luminosa, um diálogo entre dois personagens situa os objetivos de Gibson ao conceber esta obra — inclusive com relação à ficção científica —, bem como suas expectativas do mundo que se avizinha:

Não temos idéia, agora, de quem ou o quê poderão ser os habitantes do nosso futuro. Nesse sentido, não temos futuro. Não no sentido do futuro que os nossos avós tinham, ou achavam que tinham. Futuros culturais completamente imaginários eram o luxo de outra época, na qual o “agora” tinha uma duração maior. Para nós, claro, as coisas podem mudar de modo tão abrupto, tão violento, tão profundo, que futuros como o dos nossos avós possuem um “agora” insuficiente para se manter de pé. Não temos futuro porque o nosso presente é volátil demais. (...). Temos apenas gerenciamento de riscos. O desdobramento dos cenários de um momento determinado. Reconhecimento de padrões.
O futuro está lá olhando para nós. Tentando entender a ficção em que teremos nos tornado. E de onde eles estão, o passado atrás de nós não parecerá nem um pouco com o passado que imaginamos atrás de nós agora.  (págs. 70-71).

O livro foi escrito em 2002, e a história se passa neste ano. Isso não lembra algo? Sim, apenas um ano após o 11 de Setembro, seus ecos são corajosamente abordados no interior da trama, um dos pontos fortes do livro como um todo, inclusive, com a própria cena da queda das torres sendo narradas em flash-back por um dos personagens. De arrepiar, pois me fez lembrar de mim mesmo, perplexo como os personagens, à frente da TV de minha casa, tomando café e não querendo acreditar em ver o segundo avião se chocando com a segunda torre do World Trade Center. E Gibson vinculou este evento traumático da vida americana — e mundial — recente dentro da própria história que conta, o que a traz ainda mais próxima da realidade. O pai da protagonista Cayce Pollard desaparece misteriosamente na manhã fatídica dos ataques. Ele estava hospedado num hotel da cidade e simplesmente não deixa rastro depois dos atentados.
A Cayce em questão é uma publicitária americana free-lancer, especializada na procura de novas tendências de comportamento em grupos específicos da sociedade globalizada, sub-culturas, manifestações underground, para resumir. Identificando estas tendências, em modos de se vestir, gírias, consumo de certo tipo de alimento ou audição de uma música específica, ela faz um relatório para uma empresa, com o objetivo de tornar a tendência comercialmente interessante. Ou seja, ela faz “reconhecimento de padrões” culturais, potencialmente aproveitáveis do ponto de vista econômico. E ela também trabalha com a identificação de logotipos, marcas registradas de empresas, aprovando ou não sua viabilidade comercial. Contudo, contraditoriamente, ela tem uma fobia patológica contra logotipos de multinacionais, como o boneco da Michellin, o símbolo da Coca-Cola, ou o selo de uma bolsa Louis Vuitton, por exemplo.
Inicialmente contratada pela agência de publicidade Blue Ant em Londres para aprovar alguns logotipos, ela depois é contactada pelo dono para outro serviço, ainda menos convencional. Procurar o criador de um filme que tem sido divulgado na internet, quadro a quadro, de tempos em tempos. E isso vem de encontro a uma curiosidade pessoal de Cayce, pois ela é uma ativa participante de uma lista de discussão na internet, por meio do website Fetiche:Filme:Forum, onde as pessoas acompanham as últimas novidades sobre o filme, bem como trocam e-mails sobre o tema. Tudo muito parecido com o que nós, leitores de ficção científica, estamos habituados já há alguns anos em torno do nosso assunto de preferência.
A partir deste ponto a história segue os passos tortuosos e surpreendentes de Cayce, coadjuvada por uma série de personagens muito vivos e interessantes, que lhe dá suporte: de ex-agentes de centrais de inteligência de países extintos a hakers ou ainda espiões industriais insuspeitos. Além do seu amigo cineasta Damien, que lhe manda e-mails de suas filmagens em São Petersburgo, Rússia. Dois irmãos poloneses que vivem sem grandes recursos em Londres, envolvidos de alguma forma com o manuseio e venda de novas tecnologias. Seus próprios correspondentes do Fetiche:Filme:Forum, especialmente um sujeito com o misterioso nick name de Parkaboy, que lhe será uma figura importante na tentativa de decifração final do criador.
Mas o que Cayce vai só aos poucos descobrindo é a teia paralela de poderosos interesses econômicos envolvidos em torno da produção deste filme, e as pessoas perigosas e não confiáveis com as quais ela têm de lidar para chegar até o criador. Com isso ela sai de Londres para uma viagem a Tóquio. E depois do retorno a Londres parte para Moscou, onde tudo se esclarece.
Não é por acaso que Gibson situa sua história nestas três metrópoles do mundo globalizado. Londres com seu charme decadente, pátria-mãe do capitalismo, hoje transformada em um vigoroso centro de negócios e serviços, além de ser um influente centro de novas experimentações culturais, por sua herança também estratégica de sede de um antigo império. Ou seja, cidade cosmopolita por natureza, local por onde tudo passa, embora não seja ela mesma o local onde as decisões mais importantes sejam tomadas. De Tóquio, Gibson nos situa na, talvez, megalópole de maior contraste no mundo contemporâneo. A cidade mais populosa do planeta, com o uso cotidiano da vanguarda tecnológica, mesclada por uma tradição cultural antiga e muito arraigada nos costumes, ainda que superficialmente transpareça uma ‘ocidentalidade’ que impressiona à primeira-vista.
Finalmente, a escolha de Moscou é a mais feliz, pois representa em estado puro, o tal capitalismo selvagem, tão denunciado na boca de antigos membros de partidões comunistas e socialistas. Gibson é perspicaz em uma passagem, quando um de seus personagens diz sobre a cidade e sobre o que é esta nova Rússia pós-socialista: “Agora nós dizemos que tudo o que Lenin nos ensinou sobre o comunismo era falso, e tudo o que ele nos ensinou sobre capitalismo, verdadeiro.” Síntese brilhante e sombria, ao mesmo tempo. E o que dizer de Nova York? O centro do mundo se faz presente por sua ausência, embora quase todos os personagens dela tenha alguma referência particular. Como se fosse o local de quem se quer afastar, por causa do choque recente. Ainda que, em termos concretos, os personagens saibam não ser possível, por causa de sua liderança evidente no mundo contemporâneo.
Reconhecimento de Padrões é um livro tão inteligente quanto difícil para um leitor não acostumado com determinadas palavras e conceitos. Assim, diria que não é um livro para qualquer público. Uma pessoa não afeiçoada com alguns avanços tecnológicos ou com um estilo de vida específico, embora emergente, pode se desinteressar em prosseguir a leitura. Meio hermético, cifrado, lento, mas dentro do contexto da história que se quer contar e, claro, sem exageros. E esta aparente estranheza de vocábulos e conceitos não se dá tanto em eventuais inovações tecnológicas, embora exista também, afinal o livro se passa entre gente que lida com internet e suas derivações o tempo todo. Importa mais o detalhamento que Gibson faz de uma espécie de ‘sociologia do mercado global’, com suas marcas e logotipos, roupas, acessórios diversos de uso pessoal, comunicação instantânea via satélite, celular e internet, num verdadeiro e contundente painel da internacionalização inevitável da expansão capitalista, como já pregava há 150 anos um certo filósofo e economista alemão, radicado na Inglaterra. Mas a abordagem de Gibson não parte de uma ótica econômica, mas sim sociológica, mostrando como marcas, empresas, produtos de uso internacional, sinalizam a ascensão de uma cultura globalizada, ‘mundializada’, no sentido de gostos e comportamentos partilhados de modo semelhante e com uma mesma identidade por todo o planeta. O que configuraria uma das características mais presentes do mundo contemporâneo (ou pós-contemporâneo): uma sociedade civil internacional, de caráter transnacional, que aos poucos se desvincula das fronteiras nacionais, um dos bastiões de identidade política e cultural mais fortes dos séculos XIX e XX.
Em sua busca obsessiva pela fonte de criação do filme, Cayce Pollard se envolve com figurões pesados do capitalismo criminoso da caótica nova Rússia. Tem um alento sobre o paradeiro do seu pai que — é importante dizer —, era um agente do governo americano aposentado que havia experimentado o ápice de sua carreira nos tempos novecentistas da Guerra Fria, coisa que já soa como obsoleta aos nossos ouvidos.
O livro é longo em suas 400 e tantas páginas, a narrativa é linear, e não há grandes momentos de ação ou clímax, aos quais os leitores de ficção científica estão habituados. Mas Gibson tem uma prosa direta, com uma grande capacidade de explicar de maneira coerente assuntos de abordagem não muito fácil, além de revestir o livro de um painel, de um mosaico rico e instigante dos costumes e comportamentos de um segmento social internacionalizado e de contato cotidiano com tecnologia, pessoas que, aos poucos, vão se tornando mais comuns neste mundo atual.
E se o enredo em si não alcança picos de emoção, se fortalece em seu conjunto e pelos tipos de personagens elaborados, em especial a figura cativante de Cayce Pollard. Uma personagem ilustrativa dos tempos confusos que vivemos, ela também à procura de ‘reconhecimento de padrões’ em seu nível pessoal, para se situar neste mundo globalizado e de costumes cruzados, tão característico deste início de século XXI.

— Marcello Simão Branco


[1] A editora Aleph republicou Reconhecimento de Padrões em 2013 e a continuação Território Fantasma (Spoock Country), em 2013. É uma trilogia de temas contemporâneos que inclui ainda o romance Zero History (2010).

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