quarta-feira, 20 de abril de 2022

Repique Macabro e Outras Histórias Estranhas

 

Repique Macabro e Outras Histórias Estranhas, de Robert Aickman. Traduções: Alcebiades Diniz, Bruno Costa, Oscar Nestarez e Ronaldo Gomes. Capa: Casa Rex/Tulio Caetano. Artigo: Cid Vale Ferreira. Posfácio: Philip Challinor. 286 páginas. São Paulo: Ex Machina/Sebo Clepsidra, 2021.

 


Em sua primeira publicação no Brasil, o britânico Robert Aickman (1914-1981) se diferencia enormemente do padrão médio das histórias sobrenaturais e fantásticas. Pode parecer um exagero, mas estamos diante de um autor que faz de suas histórias uma experiência para além de um bom entretenimento. E talvez por isso não tenha constituído uma carreira popular, mesmo em sua terra, que dirá de outras paragens mais distantes. Aickman tem um texto direto e fluente, mas, ao mesmo tempo, intrigante e desconcertante.

Autor de prestígio inegável e algumas obras-primas, selecionadas neste volume especial que ora tenho em mãos, é, também, um autor fora dos padrões convencionais. Suas histórias de horror têm componentes sobrenaturais, mas nada é óbvio. Pelo contrário, o leitor está sujeito a surpresas e momentos de puro desconcerto sobre o que acontece com o personagem e com si mesmo. Ao invés da construção de narrativas mais explícitas ou referentes aos padrões do gênero, Aickman os subverte. Estamos diante de um autor que faz da imbricação entre a riqueza de ambientação de cenários e o desenvolvimento de personagens complexos, o contexto para sugerir sensações, que podem ser de surpresa, medo, inquietação ou desconcerto total sobre as implicações. Talvez por isso e, ao que parece, sem querer parecer pedante, Aickman se definia como um autor de strange tales, em vez de simplesmente como de horror, ou ghost stories, como alguns críticos o definem. A sensação de estranhamento faz parte do seu ethos, presente em todas as histórias desta coletânea, com diferentes tons e desdobramentos.

Este volume contém nove de suas 48 histórias curtas publicadas em sua carreira, entre as décadas de 1950 e 1980. Não é informado, contudo, se elas foram selecionadas entre suas coletâneas originais, embora seja o mais provável, pois não achei nenhuma delas com o mesmo conteúdo da que foi traduzida para a língua portuguesa. Em todo caso, a seleção é de altíssimo nível. Uma amostra relevante do que de melhor escreveu Robert Aickman e do trabalho competente de escolha das histórias.

“The Hospice” (1975) abre o livro. É a história de um homem que, ao pegar um atalho para voltar para casa, se perde. Já no início da noite, se depara com uma espécie de pousada. Pretende apenas fazer uma refeição rápida e seguir seu rumo. Mas, ao entrar no local, o que parecia banal vai ganhando contornos cada vez mais estranhos. Um animal o morde e some; ao pedir um jantar frugal, lhe é servido um banquete; uma mulher bonita se oferece a ele; não há telefone e, sem gasolina no carro, é obrigado a passar a noite e dividir um quarto com um sujeito muito estranho, que sugere que a hospedaria é, na verdade, uma espécie de asilo. Ao amanhecer procura se esvair do local e, mais que isso, de uma experiência tão inusitada como perturbadora.

Se a primeira história fala de um sujeito que adentra numa realidade oculta, em “As Espadas” (“The Swords”; 1975) estamos diante de um jovem que vivencia sua primeira experiência sexual. Sem dúvida, uma situação no qual paira tanto a insegurança quanto o desejo. Mas esta tensão é levada ao paroxismo. Numa viagem de negócios por uma cidadezinha do interior, um jovem encontra um decadente parque de diversões. Entra numa tenda e se depara com um show no qual uma mulher é repetidamente trespassada por espadas. Confuso, deixa o local por receio de que possa chegar a sua vez de participar do espetáculo. Mas, ao reencontrá-la no dia seguinte, é tomado por um desejo incontrolável, que o fará levá-la ao seu quarto de hotel. Narrada em primeira pessoa, o que acentua o caráter confessional, pode parecer convencional, mas em se tratando de Aickman, o desfecho é não menos que intrigante.

Em “Repique Macabro” (“Ringing the Changes”; 1964), a história que serve de título ao livro, um jovem casal recém-casado decide passar a lua-de-mel numa pequena e desconhecida cidade litorânea da Inglaterra. Mas ao chegar ouvem o badalo incessante de sinos, além da total ausência de pessoas na rua. No hotelzinho que reservaram estranham ao saber que só uma pessoa está hospedada – e há muito tempo. E os sinos aumentam em quantidade e volume. Chega a noite sem luar e as coisas ficam cada vez mais obscuras. Sem aguentar mais os sinos e o comportamento estranho da dona do hotel e seu filho, eles resolvem ir embora. Mas não há ninguém para conduzi-los a lugar algum. Em certo momento da noite, os sinos silenciam, mas começa então uma procissão de pessoas gritando, cantando e dançando nas ruas, até invadirem o hotel. Um verdadeiro pesadelo de medo se estabelece, numa situação tão surpreendente quanto aterradora, que pegou de surpresa um casal convencional que só queria um lugar tranquilo para se amar. Há muito tempo que não ficava tão envolvido com uma história de horror. Como se fosse próxima, fiquei apreensivo ao virar mais uma página, num drama que envolve o despertar dos mortos. Obra-prima.

O tom de estranheza se acentua ainda mais em “Ravissante” (1968). Anos após fazer amizade com um pintor fracassado, um sujeito recebe uma carta informado a morte do artista e de que ele era um dos beneficiários do testamento. Além do valor de 100 libras – relevante na época –, ele levou também um quadro e uma maleta com seus escritos, cedidos por sua esposa. Ela sempre ausente e antipática à época em que ele conviveu com o casal. Ao abrir a maleta, o sujeito encontra um relato de viagem feita pelo pintor à Bélgica, onde conheceu a enigmática Madame A., viúva de um pintor que ele admirava. Pois ela, mesmo idosa, acabou por envolvê-lo num jogo de sensualidade assustador, por meio do contato com as roupas íntimas de sua filha adotiva. É uma história dentro de uma história que aborda os meandros do fazer artístico e suas motivações, muitas vezes incompreensíveis ao próprio artista. Além de um estranho jogo de poder e erotismo entre uma mulher que se revela poderosa – como uma bruxa? – ante um sujeito que se submete de forma desconcertada e inexorável.

A noveleta seguinte, “Niemandswasser” (1975), acentua o aspecto sobrenatural. Um príncipe tem uma desilusão amorosa, vê seu amigo sofrer um acidente que lhe decepa uma das mãos e, deprimido, se isola da sociedade à espera de seu fim. Neste contexto mórbido, ele descobre que o acidente com seu amigo foi provocado por uma mulher tão linda quanto terrível, que saiu de dentro de um lago, onde, eventualmente, ele também terá de encarar seu destino. Estamos diante de um conto sobre a lenda de uma sereia, e o aspecto fatalista torna a leitura um pouco sufocante.

O que não é o caso de “Páginas do Diário de uma Menina” (“Pages from a Young Girl´s Journal”; 1975), primeiramente publicada em The Magazine of Fantasy & Science Fiction, em 1973 e vencedora do World Fantasy Award em 1975, quando da publicação na coletânea Cold Hand in Mine. Segue a linha das duas histórias anteriores, com mulheres poderosas, ainda que no caso desta o desenvolvimento seja progressivo e não aparente. Em viagem pelo interior da Itália com seus pais, no início do século XIX, uma menina pré-adolescente inglesa registra os fatos e sentimentos em seu diário. Após eles chegarem à cidade de Ravena, são hospedados num casarão por uma condessa, e depois de uma festa, a jovem sofre uma transformação brutal ao conhecer um cavalheiro estranho que lá compareceu. De uma garota tímida e sensível, se transforma numa predadora movida a sangue e desejo. De maneira muito hábil somos expostos à construção de uma vampira, mas o que mais chama a atenção é a completa mudança de personalidade da protagonista. A ponto de não mais ser reconhecida por seus próprios pais. Excelente narrativa de horror vampírico, ao mostrar o ponto de vista de alguém que passa de vítima a algoz. Esta história é complementada no livro pelo bom ensaio “Páginas de uma Iniciação pelo Sangue”, de Cid Vale Ferreira.

A novela a seguir é “O Quarto Interior” (“The Inner Room”; 1966), das mais fascinantes do livro. Lene – novamente uma menina –, ganha uma casa de bonecas no seu aniversário. Comprada numa loja de antiguidades, não é propriamente um brinquedo, mas uma espécie de maquete. De estilo gótico e assustador era mobiliada e habitada por várias bonecas. De tão grande, teve de ser transportada por uma perua. A história se passa no período entre guerras e, por meio da casa, a vida de Lene e sua família é contada, com diferentes destinos para cada um, a maioria estranhos e nada felizes. Já adulta e viúva, num certo dia Lene se perde em um bosque ao tentar pegar um atalho para chegar numa vila. E, em meio à chuva, relâmpagos e trovões, se depara com a casa. Mas não é tudo. O que é realmente incrível é quem ela encontrará em seu interior, e que consequência poderá trazer para a ela. Pois através da casa, no qual a realidade e o sobrenatural se sobrepõe, Lene vive uma revelação sobre suas culpas e terrores, que, aparentemente, estavam controlados.

 Sensação semelhante é mostrada na novela “Bosque Adentro” (In the Wood; 1968). O casal Harry e Margareth Sawyer viaja para a Suécia, onde ele trabalha na construção de uma estrada. Após passar alguns dias em Sovastad, ele tem de ir a Estocolmo, e ela pede para ficar hospedada num lugar que havia visto num dos passeios com os casais colegas de trabalho. Margareth ficara encantada com Kurhus, uma hospedaria localizada próximo ao topo de uma montanha e rodeada por bosques. De início tudo parecia belo, mas a estranheza só fez crescer à medida que ela adentrou no recinto. Não há serviços adequados e o lugar fica vazio a maior parte do tempo. Mesmo assim, ela conhece outra hóspede inglesa, e fica a saber que em Kurhus ninguém dorme. Nunca. Era um lugar habitado por insones. Sem esperança de cura, para o que era, de fato, uma doença.

Menos que alarmada, Margareth ficou intrigada, ainda mais com o estranho bosque, onde os insones vagavam feito zumbis. Incomodada e, aos poucos, assustada, ela foi embora no dia seguinte para Sovastad, onde aguardaria o retorno do marido. Mas, tão estranho ao que ela experimentou na hospedaria, foi a reação das pessoas à sua presença, de volta ao mundo dos normais. Tratada de forma seca, rude e com certa pena, como se ela fosse uma condenada, tal qual os perdidos da hospedaria. Novela perturbadora, no qual o horror se apresenta de forma singular, numa situação limítrofe entre o psicológico e o sobrenatural, ou melhor, estranho, e se acentua de forma desestabilizadora. Tanto para os personagens, como para o leitor. O melhor texto da coletânea, ao lado de “Repique Macabro”. E, que me deixou perplexo, ao reverberar pelo resto do dia as implicações sobre a transformação de Margareth.

A coletânea é concluída com “O Mar Cor de Vinho” (The Wine-Dark Sea; 1966). Em mais uma das quatro histórias com viajantes, somos apresentados a Grigg, um turista inglês em viagem pelas ilhas gregas. Apesar dos cenários paradisíacos, ele estava entediado, até que, ao ver um barco chegar a uma pequena ilha, ficou interessado em conhecê-la. Principalmente depois das seguidas negativas das pessoas, dizendo que seria impossível ir até lá, pois ninguém teria interesse no lugar. Ele acaba por furtar uma lancha sem dono e vai para a ilha. Mas o que ele encontra no lugar está além de qualquer experiência de viagem – ou mesmo de vida – que ele jamais poderia imaginar. A ilha é uma antiga cidadela de origem antiga e desconhecida, habitada por três mulheres lindas que se identificam como feiticeiras, pois assim são chamadas pelas pessoas do lugar onde Grigg havia viajado. Elas não são gregas – os abominam como “estúpidos” –, mas tampouco turcas ou albanesas. Vivem de forma despojada e em contato íntimo com a natureza, desprovidas de luxo e de desejos materiais. Até que um evento terrível e decisivo mudará o destino de todos eles. Mais uma história intrigante, cheia de significados e abertas a muitas interpretações. Grande desfecho para o livro.

Podemos dizer que o que mais caracteriza as ficções de Aickman mostradas nesta coletânea, é tanto o estranhamento em si, quanto a inadequação entre a vida moderna, e algumas coisas que existiam e meio que ficaram para trás, ou à margem. Mas que, contudo, continuam presentes como uma espécie de passivo e se revelam em toda a sua força e desestabilidade quando descobertas por pessoas com alguma sensibilidade para além do lugar-comum da mediocridade cotidiana. Mas, infelizmente para elas, pagam um preço alto demais para suas crenças, identidade e, em alguns casos, suas próprias vidas.

As editoras Ex Machina e Sebo Clepsidra fizeram uma grande contribuição ao conhecimento literário do fantástico e sobrenatural ao lançarem Robert Aickman no Brasil. É um bom exemplo de que há autores importantes, com algo realmente valioso a mostrar a serem lançados no mercado editorial brasileiro. E o fato de serem editoras de nicho, com um trabalho editorial de alta qualidade, só vai de encontro ao perfil literário do próprio autor. Ele mesmo um escritor influente entre uma pequena elite literária em língua inglesa, conhecido ainda por poucos, mas que merece sair de certo ostracismo. Como salienta o verbete sobre ele em The Encyclopedia of Fantasy (1997): “… Aickman é de interesse absorvente em nosso contexto porque demonstra a gama de significados que podem ser extraídos de dispositivos de qualquer forma de literatura fantástica, quando esses dispositivos são tratados com seriedade por um escritor de alta qualidade.” Assim, se sua ficção estranha, de fato, pode provocar ou consternar leitores mais comuns, ele merece ser lido e apreciado por aqueles que buscam, justamente, uma literatura que tem uma prosa refinada, mas ainda mais, encaminha o leitor para lugares e situações absolutamente desconcertantes. Ninguém que leu este livro será o mesmo depois de terminá-lo.

 Marcello Simão Branco

 

terça-feira, 5 de abril de 2022

Uma Breve História do Somnium

 

Marcello Simão Branco[1]

 

Capa do número 58, dezembro de 1992.


Quando o Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC) foi criado, em dezembro de 1985, uma de suas principais molas mestras foi uma publicação que divulgasse as atividades da entidade, dos sócios e a própria ficção científica.

Assim, rapidamente, cerca de um mês depois, em janeiro de 1986 foi lançado o Boletim do Clube de Leitores de Ficção Científica. Nesta edição não havia um logotipo para a publicação e o editorial do fundador do clube, R.C. Nascimento (1943-2013), anunciava dois concursos: 1) para a escolha do nome definitivo do boletim e 2) para a criação de um logotipo oficial para o clube.

Assim, até o número seis, a publicação não teve um nome definido, até que o número sete estampava no alto da capa: Somnium. Belo nome que se refere ao conto de mesmo nome do astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), responsável também pelas leis fundamentais da mecânica celeste, que recebem, justamente o seu nome. O conto é importante para o desenvolvimento histórico da ficção científica, ao imaginar, por meio de sonhos, a chegada humana à Lua.

A sugestão do nome foi do sócio carioca José dos Santos Fernandes e venceu com quatro votos, entre os 20 sócios que votaram. Isso porque houve uma dispersão entre os nomes votados: FC Boletim 3 votos; Jornal dos Aficcionados, Andarilhos do Amanhã e Terceiro Planeta, todos com dois e Orbit News, Panfletária, FC em Notícias e Science Fiction Explorer com um, além de uma abstenção.[2] Observando os nomes, ao meu ver, é até de espantar que “Somnium” tenha vencido de forma tão apertada, pois é, de longe, o nome mais bonito e representativo do que é ser um fã do gênero.

Embora seja um fanzine, em termos técnicos, digamos assim, o Somnium é um clubzine. Ou seja, uma revista de clube. Na prática apenas diferencia um fanzine que é produzido por uma associação de fãs, de outro que é fruto da iniciativa de um ou mais sócios de maneira independente. A maioria doa fanzines editados teve esta característica mundo afora, e também no Brasil. Neste sentido, o Somnium pode ser identificado, em termos históricos, como o quarto clubzine da história da ficção científica brasileira (FCB). O primeiro foi o O Cobra, da Associação Brasileira de Ficção Científica (ABFC), de meados dos anos 1960, de São Paulo; o segundo o Boletim Antares, do Clube de Ficção Científica Antares, do início dos anos 1980, de Porto Alegre (RS) e o terceiro, praticamente junto com o gaúcho, o Star News, da Sociedade Astronômica Star Trek (SAST), também de São Paulo, que existiu por cerca de dez anos. Mas nenhum deles teve a relevância e longevidade do Somnium, que extrapolou sua condição de clubzine para se tornar uma publicação de referência para toda a FCB.

Mas antes disto se tornar realidade, em suas primeiras edições, o Somnium tinha o perfil mais interno de uma publicação corporativa, ao divulgar basicamente os comunicados da diretoria, lançamentos de livros, cartas dos sócios e os novos membros que adentravam à associação a cada edição. Mas, não demorou muito para que passasse a publicar em suas páginas material inédito produzido pelos sócios, principalmente artigos e contos. Pois foi quando este conteúdo passou a fazer parte do principal das páginas do Somnium, é que ele começou a adquirir sua identidade e importância, primeiramente para a valorização do CLFC e seus sócios, e depois para o gênero como um todo no país.

Desde os primórdios, uma característica editorial se impôs: a de publicar somente colaborações inéditas e se de estrangeiros, com a devida autorização. Desta forma, o Somnium começou a adotar uma linha editorial de aspecto profissional e de busca pelo ineditismo e qualidade em suas páginas. Pode-se dizer que esta decisão influenciou a maioria dos fanzines que surgiram depois, inclusive o meu próprio, o Megalon.[3]

Desta forma, incentivou-se o envio de colaboração para as páginas do Somnium, principalmente artigos e contos, mas também resenhas e ilustrações. A iniciativa deu certo, pois em pouco tempo, a publicação era menos um clubzine do que um fanzine na prática. Ou seja, a divulgação institucional diminuiu em prol de uma vívida e volumosa quantidade de material produzido pelos sócios. Nascimento, que no início acumulava as funções de presidente e editor do Somnium, também inovou ao criar colunas e seções fixas dentro do fanzine. Por um lado, uma decisão pragmática, já que garantia a cada edição um espaço definido, sem correr o risco de faltar material devido ao não envio dos sócios, e de outro, definir espaços de crítica e reflexão em cada seção ou coluna definida. Esta característica também se espraiou por outros fanzines, cada um com seu perfil e linha editorial específica.

Assim, ao longo da primeira década, colunas importantes surgiram, como a de resenhas de Gilberto Schoereder – credenciado por seu importante estudo Ficção Científica (Francisco Alves Editora, 1986) –, outra de crítica aos contos publicados no próprio Somnium, ocupada na maior parte do tempo por Fábio Fernandes, que também se ocupou de outra coluna com análise dos livros traduzidos no Brasil; outra sobre livros, “Colecionando”, de Caio Luiz Cardoso Sampaio, a respeito das coleções publicadas no Brasil e em Portugal, uma fonte de informação preciosa e útil ainda hoje; uma com a análise sobre um escritor, o “Autor do Mês”, revezada entre alguns sócios, mas escrita principalmente por Kleverson Bicalho Neves; e a mais esperada de todas, “As Crônicas do André”, com comentários, causos e anedotas do mais celebrado escritor brasileiro de FC André Carneiro (1922-2014), que estreou em abril de 1987. Outras vieram posteriormente, mas pode-se dizer que estas estabeleceram a estrutura editorial que alicerçou o fanzine.

Também ajudou na rápida consolidação destas características editoriais a regularidade, pois em pelo menos os quatro primeiros anos, o Somnium foi mensal. Até onde sei este foi o único fanzine brasileiro de FC, com tal abrangência de assuntos e seções, a estabelecer esta marca. Não falhava: sempre na terceira semana de cada mês chegava em casa pelo correio o envelope pardo com o Somnium! Imagine o que era isso na segunda metade dos anos 1980, quando o intercâmbio com as notícias sobre o gênero quase não existia fora do ambiente restrito do fandom, e não havia a internet. Eu pessoalmente vibrava quando o Somnium chegava em casa, ávido para ler as novidades e os artigos, contos, ilustrações e os textos dos colunistas. E a chegada na terceira semana do mês não era casual, pois acontecia uma semana antes do último sábado do mês, quando ocorria a reunião mensal do clube. Assim, parte da reunião era dedicada, justamente, a repercutir o conteúdo publicado.


Capa do número 65, dezembro de 1996.


O Somnium e outros fanzines eram muito procurados por colaboradores nos primeiros dez anos da Segunda Onda da FCB, pois eram raros os espaços de publicação profissional, especialmente em editoras. Assim, uma nova geração de jovens escritores e críticos se exercitou regularmente nas páginas do Somnium, nomes que se tornariam destaques e a maioria com carreiras posteriores como, por exemplo, Ataíde Tartari, Braulio Tavares, Carlos Orsi Martinho, Cesar Silva, Fábio Fernandes, Finísia Fideli, Gilberto Schoereder, Gerson Lodi-Ribeiro, Ivan Carlos Regina, José Carlos Neves, José dos Santos Fernandes, Lúcio Manfredi, Martha Argel, Miguel Carqueija, Roberto de Sousa Causo, Roberto Schima, Sylvio Gonçalves e outros.

Tal profusão de talentos em suas páginas deu frutos rapidamente, pois já em 1987, na primeira edição do Prêmio Nova de Ficção Científica, criado por Roberto de Sousa Causo, o Somnium venceu na categoria “Melhor Fanzine”. Tal feito se repetiria mais três vezes: em 1989 – empatado com o Megalon –, 1991 e 1994 – aqui não como fanzine, mas como “Melhor Publicação Semi-Profissional”. O Nova existiu até 1996, por dez edições, portanto, e talvez a irregularidade verificada a partir do início dos anos 1990 tenha prejudicado a chance de vencer por mais vezes, mas também porque a concorrência com outros fanzines da época era forte, principalmente com o Megalon, que também por sempre se manter regular, de certa forma ocupou a ausência do Somnium, e levou o prêmio por sete vezes.

Mas em termos de ficção o Somnium foi o maior vencedor. Foram oito, das dez edições. Entre os principais trabalhos, alguns se tornaram clássicos como, por exemplo: “Pela Valorização da Vida”, (1987) e “A Derradeira Publicidade do Hebefrênico Alfredo” (1988), ambos de Ivan Carlos Regina, “Sympathy for the Devil”, de Braulio Tavares (1989), “Tocar os Anjos”, de Roberto de Sousa Causo (1991) – que também venceu o Prêmio Tapìrài 1992 –, e “O Vampiro de Nova Holanda”, de Gerson Lodi-Ribeiro (1996). A publicação levou ainda um Prêmio Argos em 2000 com o conto “Sete Vezes Besta, Sete Vezes Homem”, de Ivan Carlos Regina.

E ainda que não tenha vencido um prêmio – porque no ano em questão não havia a categoria para artigo – vale lembrar do “Movimento Supernova: Manifesto Antropofágico da Ficção Científica Brasileira”, escrito por Ivan Carlos Regina, publicado no número 30, em junho de 1988. Quase que instantaneamente se tornou a peça mais polêmica e influente da FCB, além da principal marca distintiva da Segunda Onda: a busca por uma ficção científica com características brasileiras, em termos de identidade e qualidade.

Além disso, para se ter uma noção de seu impacto no fandom, entre fins dos anos 1980 e início dos 1990, o Somnium tinha tal evidência, que chegou a ser parodiado, com outro fanzine chamado Zomnium, publicado por sócios do Rio de Janeiro. Assim, a publicação passou por fases diferentes, sendo esta primeira, de longe, a mais importante. Isso porque, como já indicado, a partir do momento que começou a ter dificuldades em manter-se regular, começou a perder relevância para outros fanzines. Contribuiu para isso também, um certo renascimento do espaço editorial para os autores, com a publicação da revista Isaac Asimov Magazine (IAM) – versão brasileira de sua homônima norte-americana – entre 1990 e 1993. Pois houve uma colaboração próxima e intensa de vários dos mais destacados sócios do clube com a publicação, com contos, artigos e traduções de histórias. Mas após o fim súbito e traumático da IAM, o fandom se desarticulou, pois voltou a ter menos espaço e com uma crise na sua principal associação e seu fanzine. Mesmo assim, o Somnium teve bons momentos nas mãos de outros editores, pois nunca abdicou de sua principal marca: a qualidade do conteúdo e a relevância de seus colaboradores.

Estes editores do que podemos chamar de uma segunda fase, pós-IAM foram: Carlos André Mores, Christiano de Melo Nunes, Luís Marcos da Fonseca, Marcello Simão Branco – editei três números: 63, 64 e 65, em 1996 –, Alfredo Keppler, Cesar Silva e Matias Perazoli, e ainda um período com vários editores em conjunto: Alfredo Keppler, Ataíde Tartari, Matias Perazoli, Roberto de Sousa Causo. Todos eles ainda proporcionaram números importantes, pelo menos até meados dos anos 2000, quando finalmente entrou no que poderíamos chamar de uma terceira fase, a digital, que se estende até os dias de hoje.[4]

Pois foi justamente após a histórica centésima edição, editada por Alfredo Kepler, que ocorreu a mudança para o formato digital, com a edição seguinte (101), editada por Ana Cristina Rodrigues, em 2008. Assim, o Somnium foi impresso até o número 100 (1986-2007) e tem sido digital, de 2008 em diante. Nesta nova fase, três características têm se destacado: a irregularidade, o grande número de páginas e um tema principal para cada edição. O número 103, por exemplo, homenageou Ray Bradbury (1920-2012) e o 110 Issac Asimov (1920-1992). Já o de 113, homenageou o escritor brasileiro Max Mallman (1968-2016), e o 114 foi dedicado ao criador do CLFC e o mais importante editor da história da publicação: R.C. Nascimento. Nesta fase do século XXI, houve também mais editores em menos edições, com nomes como Daniel Borba, Ricardo Guilherme dos Santos, Ricardo Herdy e Marcelo Biguetti, o mais recente. Uma característica de relevo que tem se mantido é o espaço aberto para os autores brasileiros – sócios ou não – publicarem e divulgarem seus trabalhos, principalmente os surgidos dos anos 2000 em diante.

Em suma, o Somnium é uma instituição histórica da Segunda Onda da Ficção Científica Brasileira, sendo o mais antigo fanzine brasileiro de FC publicado de forma ininterrupta, de 1986 até os dias de hoje, mesmo ressalvando a irregularidade que passou a fazer parte de sua trajetória, de meados dos anos 1990 em diante. Mas o mais significativo é a sua resiliência, ao manter viva uma linha de continuidade entre a Segunda e a Terceira Onda da FCB, e ilustrando neste aspecto, não só suas mudanças de forma e conteúdo, mas também de geração, com novos colaboradores e talentos que tem se firmado nestes anos recentes.

 

Referências:

Borba, Daniel, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 102, 2012.

Branco, Marcello Simão. “Nova: Uma História de Polêmicas e Realizações”, Prêmio Nova de Ficção Científica: Os Primeiros Dez Anos, Marcello Simão Branco, org. Biblioteca Essencial da Ficção Científica Brasileira, volume 3, 1998.

Branco, Marcello Simão. “Uma História dos Prêmios Brasileiros de Ficção Científica”, Silva Cesar; Branco, Marcello Simão, eds., Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica 2008. Tarja Editorial, 2009.

Branco, Marcello Simão. “30 Anos do Clube de Leitores de Ficção Científica”. In: Almanaque da Arte Fantástica Brasileira, 2015.

Herdy, Ricardo, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 113, 2017.

Keppler, Alfredo. Somnium: Índice Remissivo: Números 1 ao 78, Clube de Leitores de Ficção Científica, 2000.

Keppler, Alfredo, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 100, 2007.

Nascimento, R.C. Boletim do Clube de Leitores de Ficção Científica, números 0 a 6, Clube de Leitores de Ficção Cientitica, janeiro a maio, 1986.

Rodrigues, Ana Cristina, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 101, 2008.

Santos, Ricardo Guilherme, ed. Somnium, Clube de Leitores de Ficção Científica, número 110, 2014.

Silva, Cesar. “Somnium 114”. In: Mensagens do Hiperespaço, 2018.

 



[1]  Sócio número 83, entrou no CLFC em maio de 1987.

[2] Mais nomes foram sugeridos, mas sem votação. São eles: Albedum, Aldebaranis, Bofísica, Crepúsculo Estelar, Enfírio, Escalar Infinitus, Galaxian, Linha Base, Luzestrela, Pressão Braquial, Science Fiction Journal, Selenews, Sonda Planetária, Star´s Explorer e Vento Solar. Um total de 24 sugestões, num quadro associativo de 34 sócios.

[3] Criado em setembro de 1988 por mim e Renato Rosatti, e editado apenas por mim a partir de 1991, teve 71 edições regulares até maio de 2004, e mais uma edição extra (72), em dezembro de 2017. É o mais premiado fanzine da história da FCB, com 7 prêmios Nova, três prêmios Argos e um prêmio Tapìrài.

[4] Na segunda metade dos anos 1990, para suprir a irregularidade crônica do Somnium, que gerava muitas críticas e cobranças por parte dos sócios, foi criado o Informativo Mensal CLFC. Um segundo clubzine, de caráter mais noticioso, sobre as atividades do clube e dos sócios, além de lançamentos de livros e eventos. Eventualmente, também publicou contos. Manteve-se regular por cerca de cinco anos, sob a edição de nomes como Adriana Simon, Ataíde Tartari, Daniela Bittencourt, Fábio Barreto, Humberto Fimiani, Matias Perazoli e R.C. Nascimento, mas no início dos anos 2000 foi descontinuado.

sexta-feira, 18 de março de 2022

A Porta de Chifre

A Porta de Chifre, Herberto Sales. Capa: Victor Burton. 247 páginas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.



Escrito na fase madura do autor, A Porta de Chifre é um romance sobre o tema da terra devastada (wasteland), um segmento da FC que explora as consequências de catástrofes, talvez uma variação do tema do pós-holocausto, numa linha mais próxima de um colapso climático. O livro é também a segunda incursão de Herberto Sales (1917-1999) na FC, a primeira foi com seu romance O Fruto do Vosso Ventre (1976), uma crítica contundente à tecnocracia vicejada principalmente no período da ditadura militar.

Pois se neste o autor situou sua distopia num local que chamou de “ilha” – numa referência à Brasília –, voltado a problemas de superpopulação, que passam a ser rigidamente controladas por um Estado burocratizado e autoritário, em A Porta de Chifre – que retira o título de uma passagem da Odisseia, de Homero –, a reflexão ocorre sobre o destino do estilo de vida consumista e depredador da natureza, que encaminha o mundo para uma catástrofe ambiental. Os rios, mares e oceanos perdem toda a sua água. Secam. Além disso, a principal fonte de energia também acaba, o petróleo. Nesse sentido, se em O Fruto do Vosso Ventre a crítica é política, em A Porta de Chifre, a ênfase é a economia capitalista e seu estilo de vida.

Como é comum em autores reconhecidos pelo mainstream que escrevem sobre FC, o autor não se reconhece como tal, e explica, já na página de rosto: “Sucinto relato anticientífico, com ingredientes de ficção, que se faz de uma viagem, no ano de 2352, à maneira dos velhos romances, quando ainda se escreviam romances e havia quem por ler os lesse”. Mas isso, de fato, pouco importa, mas sim saber se estamos diante de uma obra que faz alguma contribuição interessante ao gênero.

A história se passa no século XXIV, e a Amazônia é um vasto deserto. Mas não se explica o que aconteceu. As principais fontes de energia esgotaram, restando apenas uma “lama aquática’, de onde se obtém água, através de perfurações profundas da superfície do planeta. Mas o que resta desta água serve apenas para manter minimamente a sociedade funcionando. Não há mais como manter a opulência e os excessos materiais e tecnológicos de outrora. O homem abandonou a exploração do espaço, a maioria vive em aldeias e a maior parte da alimentação é sintética. Não se comenta, mas é obvio que a boa parte da vida vegetal e animal foi extinta.

Na verdade, não haveria como manter a vida no planeta sem a água. Os animais, inclusive o homem –, morreriam sem hidratação, e toda a vegetação secaria, o que provocaria incêndios e aquecimento do planeta. Antes se secar por inteiro, a Terra ficaria muito quente. Mas o livro não se preocupa minimamente em especular sobre estas prováveis consequências e de como seria possível que a humanidade sobrevivesse num lugar completamente impróprio para a vida. Talvez parte da explicação esteja na declaração na folha de rosto. Mas, se assim for, revela uma preguiça que tornou a obra menos interessante.

Narrado em primeira pessoa por um dos personagens, ele e mais sete pesquisadores percorrem o Deserto Amazônico, com o objetivo de chegar até as Montanhas Negras, no extremo norte da América do Sul. Eles são conduzidos por uma limousine puxada por camelos. Uma imagem bizarra.

Os expedicionários passam por algumas estações de perfuração da lama aquática, chamadas de Perfurópolis, onde a empresa estatal Aguabrás faz sua tarefa de extração da lama. Mas por mais de cem páginas (133 para ser preciso) nada relevante acontece na história. Temos uma sucessão de capítulos com diálogos sobre as preferências culinárias de cada um, como eles se sentiriam se vivessem num mundo com água, considerações comparativas as mais diversas entre o mundo deles e o de nossa época, ironizando vários aspectos do estilo de vida e os costumes dos anos 1980. Mas, ora, eles estão 400 anos adiante, qual a razão para comentarem justamente sobre uma época tão distante? Claro, o autor uso do recurso manjado de criticar os costumes do presente com as lentes do futuro. Mas não há explicação sobre a razão específica das críticas serem feitas ao mundo dos anos 1980. Talvez o autor pudesse explorar a ideia de que o colapso teve início ou ocorreu no fim do século XX. Mas não se percebe isso da leitura. Ficou deslocado e sem sentido.

Assim, é apenas quando eles chegam nas Montanhas Negras que o romance passa a ter algum drama. Uma das pesquisadoras desaparece, e depois que é reencontrada, ela diz que foi raptada por um homem-formiga. Corpo de homem e cabeça de formiga. Então, eles se mobilizam para descobrir se existe mesmo uma nova espécie mutante, talvez derivada da transformação radical do planeta.

Nesta busca eles acabam tendo outra surpresa. Ao percorrer as cavernas do interior da cadeia de montanhas, descobrem um lugar em que a antiga natureza está preservada. Existe água em abundância e uma vegetação deslumbrante. Mais que isso, é habitado por um povo desprendido de bens materiais, numa vida de hábitos coletivos e em comunhão com o ambiente. O lugar se chama Aanac, um palíndromo de Canaã, a terra prometida dos judeus.

Sales termina por se juntar à tradição de que existiria na Amazônia uma civilização perdida, que viveria de forma autossuficiente, em harmonia com a natureza e protetora de possíveis riquezas. Um Eldorado. Mas a forma como a história é desenvolvida pouco acrescenta, pois tudo é mostrado de forma repetitiva e estereotipada. Os habitantes deste lugar idílico se mostram espiritualmente superiores, sábios em sua compreensão mais orgânica com o mundo natural. E, claro, não há nenhuma explicação de como este oásis é possível num mundo inteiramente seco e devastado.

A descoberta dos homens-formigas com a da nova civilização confluem numa ação violenta dos pesquisadores, depois que ficam sabendo que a colheita é regularmente saqueada, sem que haja meios de resistência de um povo tão pacífico. Da forma mais brutal possível, os homens-formigas são caçados pelos ‘civilizados’ com suas armas de raios laser. Exterminam uma nova espécie – e inteligente! – apenas pelo preconceito de sua aparência, e para ajudar os nativos. Ora, não convenceu e é especialmente chocante por se tratar de cientistas.

Em suma, se numa primeira impressão A Porta de Chifre é um romance que sugere prazer ao ser escrito – nos diálogos divertidos entre os personagens e o clima de amenidades –, e sem muito compromisso com a verossimilhança, por outro, na verdade, demonstra uma forte amargura sobre os rumos da civilização tecnológica e a condição humana. E a descoberta de uma nova sociedade é um indicativo de que a esperança para a humanidade possa estar na mudança radical dos seus valores, num sentido mais coletivizado e de respeito ao mundo que o cerca. Mas é pena que este conceito profundo tenha ficado diluído numa história mal desenvolvida, que não explora porque chegamos a isso e como, minimamente, teria sido possível sobreviver a este caos estabelecido.


Marcello Simão Branco


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Onde Ninguém Mais Esteve


Onde Ninguém Mais Esteve: O Legado de Jornada nas Estrelas para a Televisão, a Cultura Popular e o Mundo, Saulo Adami e Eduardo Torelli, organizadores. Capa: Pete Wallbank e ilustrações internas de Graham Hill. Prefácio: Sandro Moser. 230 páginas. Curitiba: Estrada de Papel, 2021.



A literatura de referência sobre a série Jornada nas Estrelas (Star Trek) com o qual o brasileiro teve contato ao longo de décadas era toda estrangeira, obras vindas dos Estados Unidos. Assim, embora não tenha sido o primeiro dos livros traduzidos no Brasil, lembro o espanto que foi quando o clássico Star Trek Compendium (1981), de Allan Asherman ganhou uma edição como Jornada nas Estrelas Compendium, em 1999. Alguns outros livros foram traduzidos desde então, mas nenhum com o impacto e importância deste no imaginário trekker. Em todo caso, a maior parte dos brasileiros nunca teve dificuldades em ler as edições originais em inglês. Menos pela dificuldade com o idioma, e mais pelo entusiasmo sobre o assunto. Posso dizer que no meu caso, inclusive, a leitura destes livros ajudou meu aprendizado com a língua.

Mas a boa novidade é que nesta última década, alguns dos maiores especialistas e fãs brasileiros da série começaram a publicar seus livros sobre Jornada. Entre outros, o pioneiro Almanaque Jornada nas Estrelas (2009), de Salvador Nogueira e Susana Alexandria ver a resenha aqui , e um estudo acadêmico interessante, Star Trek: Utopia e Crítica Social, do historiador Eduardo Pacheco Freitas (2019). Ao menos duas razões, talvez, possam explicar esta mudança. Primeiro, por causa do estágio da carreira dos autores – que publicaram antes outros livros ou alcançaram um título acadêmico reconhecido – mas também devido ao impacto do seriado em suas várias versões na cultura popular de uma maneira geral. E renovada com a comemoração dos 50 anos em 2016, a recriação com novos filmes no cinema e algumas novas séries em anos recentes.

Neste contexto, o livro Onde Ninguém Mais Esteve: O Legado de Jornada nas Estrelas para a Televisão, a Cultura Popular e o Mundo é o mais democrático e representativo, pois amplia esta abertura à publicação de escritos de brasileiros sobre a série. A começar pela organização da obra, a cargo de dois especialistas em cinema e TV. Saulo Adami é o mais conhecido fã e estudioso sobre a franquia Planeta dos Macacos (Planet of the Apes) – com dois livros sobre o assunto – e Eduardo Torelli escreveu, entre outros temas, um livro sobre a cinessérie James Bond. Além disso, como mostram em seus próprios capítulos, também cresceram vendo e apreciando as missões espaciais de Kirk, Spock e companhia.

Pois este volume é a primeira reunião de vários fãs e especialistas brasileiros e ilustra o esforço de admiração, reflexão e pesquisa sobre a criação de Gene Roddenberry (1921-1991). Isso porque o tom do livro é exatamente uma mistura de memórias pessoais, elogios sobre a série e muitos argumentos sobre os motivos que a tornaram tão especial na vida de cada um, na ficção científica e na cultura popular em geral.

Temos, assim, as presenças de nomes como Paulo Gustavo Pereira, Paulo Maffia, Maurício Muniz, Renato da Silva, Roberto de Sousa Causo, Ben Santana, Fábio Fernandes, Gilson Cunha, e eu mesmo. É um grupo heterogêneo, com jornalistas, professores, escritores e cientistas, mas que tem como ponto em comum a adoração à celebrada série de TV. Além disso, há um capítulo escrito pelo jornalista norte-americano Edward Gross. Ele é uma presença especialmente ilustre, pois talvez tenha sido quem assinou a maior parte das reportagens sobre a série, principalmente na saudosa revista Starlog que, nas décadas de 1970 a 1990, foi a principal referência de informações mensais sobre o universo da série. Além disso, Gross teve traduzido no Brasil Jornada nas Estrelas: A História Completa, Não Autorizada e Sem Censura – Volume 1 (2016), em coautoria com Marc A. Altman. Uma pesquisa de fôlego e reveladora sobre os bastidores e o universo de criação da série original.

E se ainda não ficou claro, esta antologia é sobre a série clássica, aliás como a própria bela ilustração de capa e as internas deixam transparecer. Isso torna o livro mais robusto do ponto de vista temático, reforçando as bases de compreensão sobre aspectos do desenvolvimento e estruturação das várias séries posteriores. Temos, assim, 16 capítulos, abordando de tudo um pouco: a vinculação de Star Trek com o subgênero da FC chamada de “space opera”, a criação e os bastidores da série, um sempre bem-vindo guia de episódios, com a ficha técnica e uma boa sinopse de cada um dos 79 episódios, um artigo sobre a série animada que sucedeu a clássica, entre 1973 e 1974, um capítulo sobre os filmes no cinema com os personagens da série original, um capítulo sobre as adaptações literárias e outro sobre as histórias em quadrinhos – em ambos aqui faltou uma pesquisa mais apurada sobre os títulos publicados no Brasil, listas das obras cairiam bem –, dois capítulos sobre a trajetória, as características e a presença dos fã-clubes brasileiros, mostrando que Jornada nas Estrelas é um fenômeno antigo e de alcance nacional, além de outros capítulos valiosos também por equilibrarem impressões pessoais com análises sobre algumas características temáticas que foram responsáveis pelo seu sucesso e influência perene. Tive a sorte de ser o autor com mais textos publicados, numa mostra do meu entusiasmo pelo projeto e amor ao seriado.

Onde Ninguém Mais Esteve não é apenas uma bonita seleta de homenagem mas, mais importante, uma amostra do vigor de reflexão e pesquisa, deixando claro que os fãs e especialistas brasileiros têm ainda muito o que dizer sobre a série, justificando assim, os livros nacionais que têm sido publicados nestes últimos anos. Que outros venham e consolidem uma literatura de referência com característica brasileira sobre a mais cultuada série de ficção científica.

Marcello Simão Branco


sábado, 22 de janeiro de 2022

O Império dos Mutantes

O Império dos Mutantes (La Mort Vivante), de Stefan Wul. Tradução: Amadeu Lopes Sabino. Capa: Lima de Freitas. 172 páginas. Lisboa: Editora Livros do Brasil, Coleção Argonauta, n. 107, 1966. Lançamento original de 1958.

 


Stefan Wul é um autor que pensa grande. Uma das qualidades de seus livros é a dimensão quase metafísica que confere à condição humana, sua evolução e destino, principalmente do ponto de vista biológico. E este romance é aquele em que vai mais longe na exploração desses conceitos.

Num futuro distante e indefinido a Terra está praticamente desabitada. Os mares tomaram toda a superfície, restando apenas túneis subterrâneos e castelos no alto de montanhas. O ar é irrespirável tomado por uma radioatividade mortal.

Mas a humanidade sobreviveu. A maioria partiu para as estrelas distantes, construindo o que chamam de ‘planetas paraíso’. Talvez emulações intencionais ou não da própria Terra? Mas há também os que colonizaram os vizinhos Vênus e Marte.

Pois é em Vênus que nos é apresentado Joaquim, um velho biólogo que luta para manter suas pesquisas científicas contra uma rígida censura religiosa. Sim, a sociedade humana em Vênus é governada por uma ditadura que subjuga todos os aspectos comportamentais à sua doutrina. Uma teocracia mergulhada na ignorância e barbárie, a despeito de defender os valores de Deus.

Todo este contexto é mostrado logo nas primeiras páginas, conferindo um efeito altamente impactante. Poderia mesmo servir como uma ótima vinheta ou miniconto, e já seria incrível. Wul mostra como, de saída, fisgar o leitor de maneira incontornável.

Após Joaquim comprar um livro proibido de medicina de um contrabandista, este o leva para a Terra, apesar dos protestos do cientista. Na verdade, reclamações hesitantes, pois lhe é oferecida a chance de pesquisar livremente, sem censuras e humilhações. Chegando à Terra, ele é conduzido a um castelo no alto dos Montes Pirineus – cadeia de montanhas que fica na fronteira entre a França e a Espanha –, onde é apresentado a Martha, uma linda e misteriosa mulher, que comanda uma rede de contrabandos entre os dois planetas.

Ela deseja que o biólogo cure sua filha gravemente doente. Mas durante a viagem a menina morre, e então a missão de Joaquim terá de ser mais complexa: trazer novamente Lisa à vida. Mas como assim? O próprio Joaquim se mostra incrédulo. Mas Martha lhe mostra uma biblioteca com livros antigos, no qual haveria o conhecimento para se trazer uma pessoa morta novamente à vida. Ressurreição? Não, na verdade a técnica é a da clonagem, mas é curioso que esta palavra não é usada no livro, dando uma ideia errada do que seja reviver uma pessoa. Mas, no fundo, a própria Martha compreende que não é exatamente a filha que perdeu que deseja de volta, mas sim uma cópia dela.

Mas não se quer apenas uma nova Lisa, mas sete! Sim, por receio de que a experiência não desse certo, a mãe desesperada replicou mais células que o necessário, e sem dizer nada a Joaquim. Contudo, rapidamente, os setes clones mostram um desenvolvimento incomum. Crescem rápido e falam após poucos meses de vida. Da felicidade se resvala para o desespero e o descontrole, quando as gêmeas passam a desafiar a autoridade de Martha e Joaquim.

Para além do exagero das sete crianças, um erro grave foi cometido na própria clonagem, pois Joaquim descobre que a Lisa original havia sido envenenada pela mordida de um lagarto. E o efeito do estranho veneno teria desencadeado este desenvolvimento físico e mental incomum dos clones que, passam a engravidar e gerar novas Lisas, num processo de partenogênese. Centenas delas agora tomam as dependências do castelo e seus túneis subterrâneos. E, ainda além, elas se unem num único organismo que de humano já não tem quase nada, adquirindo um apetite insaciável por alimentação animal e vegetal. Percebe o leitor que a partir da clonagem se desenvolve várias mutações que transformam inteiramente os seres vivos originais? Tal narrativa é mostrada pelos olhos surpresos e aterrorizados de Joaquim e Martha, que se tornam vítimas de um monstro incontrolável.

 


O Império dos Mutantes é uma história de extrapolação científica em estado puro, no qual Wul demonstra o seu conhecimento científico ligado às ciências biológicas – ele era dentista de profissão – e uma imaginação das mais delirantes. Neste caso específico de puro pesadelo e horror.

Este é o único livro de Wul publicado no Brasil, com o título de A Cadeia das Sete, pela Tecnoprint Editora, série Futurâmica, n. 4, em algum momento dos anos 1970. Tenho esta edição, mas para escrever esta resenha li a edição portuguesa mesmo, de forma a seguir o padrão de leitura dos outros livros dele publicados pela Argonauta. Em 2019, uma editora online chamada Ala dos Livros anunciou a publicação de uma adaptação em quadrinhos do livro, publicada originalmente na França em 2018, com texto de Olivier Vatine e desenhos de Alberto Varranda, mas, ao que parece, o projeto ainda não veio a lume.

Outra curiosidade é que esta FC de puro sense of wonder inspirou o nome do grupo de rock brasileiro Os Mutantes (1966-1978; 2006), de Arnaldo Baptista, Rita Lee e Sérgio Dias – além de participações de Liminha e Dinho Leme –, que marcou época na música popular brasileira. A sugestão do título da banda foi do cantor Ronnie Von, no seu programa de TV na Record, já que até então o nome era Os Bruxos. Talvez a feliz sugestão tenha se relacionado com o caráter ambíguo e em transformação dos temas e comportamento dos integrantes da banda, que transitavam entre a Jovem Guarda e a psicodelia da Tropicália, numa pioneira experimentação de um rock and roll à brasileira.

O Império dos Mutantes reflete sobre a relação problemática entre dogma e conhecimento, teocracia e ciência, mas, curiosamente, é como se a experiência tivesse dado alguma razão aos religiosos. Isso não fica explicitamente evidenciado na história – embora Joaquim se angustie muito com o resultado de seu experimento –, mas passa essa sensação. Um romance poderoso e que deixa um forte impacto no decorrer dos acontecimentos, como que se superando, um capítulo após o outro, até um desfecho não menos que incrível. Este é um dos melhores livros de Wul, com um pulp dos mais acentuados, embora numa chave inversa – não muito comum em livros deste tipo –, com o contexto mais pessimista e desdobramento mais sombrio de sua obra.

 

Marcello Simão Branco

 

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Chung Li: A Agonia do Verde

Chung-Li: A Agonia do Verde (The Death of Grass), John Christopher. Tradução: Luiz Horário da Mata. Capa: Raul Rangel. 199 páginas. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, Coleção Mundos da Ficção Científica n. 19, 1980. Lançamento original de 1956.



Desde 2020 estamos imersos na pandemia da covid-19, nome científico para um vírus gripal que já dizimou cerca de 5 milhões e 200 mil pessoas em todo o mundo, quando escrevo, em dezembro de 2021. Apesar do avanço da vacinação já ter produzido bons resultados, a desigualdade no acesso a elas e o surgimento de novas cepas tem ameaçado a retomada da vida, ao menos próxima, da que existia antes deste evento trágico.

Pois este romance também aborda a tragédia e as consequências do surgimento de um vírus. É Chung-Li, e recebeu este nome porque, justamente, surgiu na China. Mas, em vez de ameaçar a vida humana diretamente, ele é extremamente letal contra todas as formas de gramíneas, incluindo arroz e trigo, as mais consumidas.

A praga se espalha rapidamente no Sudeste Asiático provocando o colapso da economia e a fome generalizada. Os países desenvolvidos enviam ajuda, mas quando o vírus chega às suas fazendas e plantações, tudo muda. Chung-Li destrói todas as formas de grama e, rapidamente, falta alimentos de todos os tipos e a fome se torna crônica.

O romance é narrado a partir de John Custance, um engenheiro que, após ser informado que Londres seria bloqueada para a saída, foge com sua família, a de seu amigo Roger Buckley e, inesperadamente, do vendedor de armas Pirrie e sua esposa. O objetivo do grupo é chegar a Westmorland, onde está situada a fazenda do seu irmão David.

A história acompanha o drama do grupo e, no caminho, eles se dão conta de que terão de deixar de lado seus valores morais, lutando para sobreviver matando sempre que possível. Assim, John se torna o líder e não deixa de ser chocante constatar como ele se transforma de um cidadão responsável e de personalidade amigável, em um líder frio e resoluto, o que não deixa de espantar seu amigo Roger e, principalmente, sua esposa Ann.

A fuga súbita e desesperada do grupo foi motivada, contudo, menos pela possibilidade de ficarem presos na capital britânica, mas pelo vazamento da informação de que o governo jogaria nas principais cidades do país bombas de hidrogênio para eliminar aproximadamente metade da população, cerca de 25 milhões de pessoas. Segundo este plano sinistro, metade do problema da fome estaria ´resolvido´. Esta decisão chocante e inverossímil causou grande polêmica entre os leitores quando da publicação da obra, em capítulos no The Saturday Evening Post. De fato, mesmo numa situação extrema como esta de colapso alimentar seria muito improvável que tal atitude fosse tomada, ainda mais num país de sólida tradição democrática. Ora, poderia ser declarado um Estado de sítio, com a suspensão das garantias constitucionais: restrição rígida de mobilidade, bloqueio de cidades e vias de acesso, toque de recolher, isolamento social, distribuição de pontos de racionamento de alimentos, mobilização das Forças Armadas para ocupar e policiar o território, fechamento de fronteiras etc. Como nada disso foi colocado em prática, o governo foi derrubado e um comitê civil improvisado assumiu o poder. É curioso que em nenhum momento Christopher faz alusão à família real e o que poderia ter acontecido com ela.

Como se percebe, o livro é contado dentro da realidade do Reino Unido, embora, em certo momento, o grupo ouve por um rádio que os Estados Unidos e a Austrália, ao que parece, eram os únicos lugares do mundo em que a civilização se mantinha precariamente em pé, com a adoção do pacote de medidas autoritárias citadas acima. Mas não só a Inglaterra, mas toda a Europa regrediu inexorável e rapidamente à barbárie da anarquia e luta crua pela sobrevivência: sem leis, sem Estado, sem energia e sem comida.

Esta história de pós-apocalipse ambiental aborda o tema de uma praga viral e é comparável com o clássico Só a Terra Permanece (Earth Abides; 1948), de George R. Stewart (1895-1980). Se neste, o vírus quase exterminou os seres humanos, aqui o efeito é indireto, mas não menos catastrófico.

Numa época em que a maior parte dos romances de pós-apocalipse abordava o pesadelo de um holocausto nuclear, Chung Li: A Agonia do Verde apresenta uma variação interessante e chocante do tema, ao lembrar que podemos estar sujeitos a uma situação deste tipo. E a pandemia do novocoronavírus, em certo sentido, mostra isso. Afinal, uma das possibilidades aventadas para o seu surgimento está relacionado com os intensos métodos de produção industrial da agricultura e da pecuária que, produzidos em escala maciça e padronizada, reduziriam a heterogeneidade genética, tornando grãos, vegetais e animais mais suscetíveis e fragilizados diante do surgimento de um novo vírus. Além disso, e não menos importante, os cada vez mais sofisticados pesticidas também contribuiriam com o problema. De fato, no próprio romance é justamente o desenvolvimento de um novo agrotóxico para combater a quinta cepa do vírus é que acaba, ao contrário, tornando a praga definitivamente mortal.

Ao que parece, iremos conviver com novas variantes da covid-19 e outros vírus que virão, em parte como consequência do modelo consumista e predatório de civilização capitalista que a humanidade vem praticando em escala global. Nesse sentido, este romance competente de John Christopher mantém-se, de forma perturbadora, muito atual e espero que não seja presciente do que virá.

John Christopher é, na verdade, um dos vários pseudônimos usados pelo escritor Sam Youd (1922-2012), que variou sua obra entre romances de FC com forte crítica social e aventuras infanto-juvenis. E o que torna Chung-Li: A Agonia do Verde – aliás, que belo título escolheram para a versão da obra entre nós –, tão efetivo é também a sua prosa limpa, econômica, objetiva. O que não reduz a construção densa e verossímil dos personagens e as situações dramáticas mostradas na história.

O romance recebeu uma adaptação para o cinema com o título de A Mais Cruel Batalha (No Blade of Grass; 1970), dirigida por Cornel Wilde, lançada no Brasil mas raríssimo de ser vista, e é o único livro do autor publicado em nosso país. Em Portugal recebeu o título de A Última Fome, na Coleção FC Europa-América n. 4. Além disso esta coleção publicou Os Dias do Cometa (The Year of the Comet; 1955) (n. 14) e Os Possessores (The Possessors; 1964) (n. 8). Já outra editora lusa, a Presença, publicou em sua coleção Volta ao Mundo, As Montanhas Brancas (The White Mountains; 1967) (n. 7), A Cidade de Ouro e Chumbo (The City of Gold and Lead; 1967) (n. 8) e O Poço de Fogo (The Poll of Fire; 1968) (n. 9), livros que compõe a série de FC infanto-juvenil “The Tripods”. Vale a pena procurar e ler estes também.

John Christopher mostra que há escritores de FC interessantes e necessários, entre os não muito conhecidos. E isso fica claro especialmente com Chung Li: A Agonia do Verde, pois é o tipo de obra que ecoa perfeitamente o argumento de Ray Bradbury (1920-2012), de que a melhor FC é aquela que nos alerta sobre problemas que podem ocorrer. Para que possamos, ao menos, tentar evitá-los.

Marcello Simão Branco



quinta-feira, 25 de novembro de 2021

Os Sete Dedos da Morte


 Os Sete Dedos da Morte (The Jewel of Seven Stars), de Bram Stoker. Tradução: Stefania A. Lago. Capa: Anderson Junqueira. 261 páginas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021. Lançamento original em 1903.

 

Quando este romance foi publicado Bram Stoker (1847-1912) já era um escritor reconhecido no Reino Unido, após seu sucesso com Drácula (1897). Em Os Sete Dedos da Morte, o autor prossegue em sua linha de explorar o horror sobrenatural num teor culturalista, diria não ocidental. Pois se em Drácula, o contexto em que surge o protagonista é a pouco conhecida Europa Oriental, neste toda a história é trabalhada a partir da perspectiva da cultura e mitologia do Egito antigo.

Sim, estamos diante de um livro sobre a múmia. Mas não se trata de uma história sobre a monstruosidade em si, mas sim dos possíveis efeitos do conhecimento e seus poderes ocultos a partir dela. Nesse sentido, se em Drácula o foco se concentra mais nas ações do protagonista – um estranho que desestabiliza a sociedade londrina do fim do século XIX – em Os Sete Dedos da Morte, o enredo se desenvolve através dos mistérios em torno da cultura egípcia.

O arqueólogo Abel Trelawny é encontrado ferido e inconsciente por sua filha dentro do seu quarto. Abalada, ela chama a polícia londrina e Malcom Ross, um advogado que ela conhecera recentemente e que se revelara seu amigo. Trelawny tem ferimentos nas mãos e na cabeça e jaz deitado no chão perto de um cofre. Em princípio, a história se move em torno deste mistério e várias hipóteses de investigação são postuladas para se descobrir o que poderia ter acontecido.

Narrado em primeira pessoa por Ross, temos uma perspectiva externa ao drama do pai e sua filha, Margaret Trelawny que, como logo deixa claro o personagem, está apaixonado por ela, daí seu verdadeiro interesse em ajudá-la, embora ela ainda não saiba disso. Ross praticamente muda para a casa dos Trelawny e se envolve completamente em seu duplo objetivo: descobrir o que aconteceu com o arqueólogo e, principalmente, conquistar Margaret.

O romance começa a adquirir uma conotação mais interessante quando, mesmo sob vigília de Ross, Margaret e outras pessoas, o evento se repete. Todos ficam inconscientes e quando despertam, o arqueólogo é visto no chão e cheio de machucados. A partir deste momento, a polícia e os demais passam a associar o mistério à atividade de Trelawny. Ou seja, de algum modo, haveria uma influência de pessoas ou elementos sobrenaturais no desencadeamento do evento. A casa toda, de estilo gótico, está cheia de peças trazidas do Egito: enfeites, pedras, ornamentos, um cofre, e as múmias de uma mão, de um gato e, descobre-se depois, um sarcófago contendo, simplesmente, a múmia da rainha Tera, que havia governado há cinco mil anos.

Contudo, a história assume diretamente seu caráter de horror ou fantástico quando Abel Trelawny desperta do seu coma que, vem a se saber foi, de fato, provocado, por suas experiências relacionadas à Tera. Pois ele e seu parceiro, o também arqueólogo Corbeck, estiveram várias vezes no Egito, e de lá trouxeram todas as peças que faziam da residência um autêntico museu. Segundo o que eles descobriram, a múmia teria um plano para reviver e, de alguma forma, eles teriam interferido. De qualquer forma, ao modo dos dois pesquisadores, a intenção era a mesma: testar a possibilidade de ressuscitar a rainha Tera e, com isso, eventualmente, descobrir segredos perdidos que poderiam trazer novos conhecimentos – ou ameaças, mas valia correr o risco – para a humanidade.

Como se percebe o livro trabalha o confronto entre a cultura ocidental – mostrada como mais “civilizada” – e uma cultura oriental, no momento decadente e subjugada, mas, que no passado teria experimentado um desenvolvimento e esplendor ainda não atingido pelos europeus. A história mostra o fascínio dos personagens diante de um desconhecido que pode trazer poder e destruição. No fundo, mais uma vez, estamos diante, da crença de que em momentos longínquos e controversos a humanidade teria tido conhecimentos que, por razões misteriosas, se perderam. Assim, os europeus estariam na missão de reconstruir estes saberes e, desta forma, haveria uma justificativa para explorar a fundo seus mistérios. Nem que com isso, violassem e destruíssem as instalações de culturas antigas, no caso em questão, a dos egípcios.

Claro que é preciso levar em consideração o contexto histórico, mas não deixa de incomodar o desplante com que Trelawny e Corbeck furtam descaradamente os templos sagrados dos egípcios, como se tivessem algum direito sobre isso. Não só violam a câmara funerária de uma antiga governante, mas a levam embora para Londres! E para uma residência particular! Tudo isso, mostrado com a maior naturalidade, revela a postura imperialista dos britânicos naquele período histórico. No contexto contemporâneo seria impensável e injustificável ações como as realizadas durante a narrativa.

Para realizar a experiência, aos dois arqueólogos se unem Malcom Ross, Margareth e o doutor Winchester, que havia cuidado de Abel, numa casa afastada na região litorânea da Cornualha. A esta altura, também, a narrativa quase se equilibra entre o objetivo fantástico da missão e a paixão do advogado, cada vez mais preocupado com a transformação na personalidade de sua amada: de uma mulher tímida e insegura, para uma entusiasmada pelo mistério da missão, e ora carinhosa, ora distante. Pois como se percebe, há uma estranha e cada vez mais evidente coincidência entre a suposta personalidade de Tera e a da filha do arqueólogo.

Para além da ação competente, há no romance descrições profundas e contextualizadas do conhecimento da arqueologia da época sobre o Egito antigo. Pode-se dizer, talvez, que Stoker era um apaixonado pelas culturas orientais, e pesquisou bastante, o que traz um grau de realismo e verossimilhança que chega a impressionar. Mas sem tirar o viés fantástico da trama que tem o seu desfecho após uma longa preparação de todos.

De saída, talvez o leitor tenha estranhado que o título nacional guarda pouca relação com o original: de A Joia das Sete Estrelas se chamou Os Sete Dedos da Morte. Mas ambos são válidos. No primeiro se valorizou o rubi que daria poderes ao renascimento da múmia, e no segundo ao estranho fato de que a rainha tinha sete dedos em uma de suas mãos – justamente a decepada e separada do corpo. Talvez a intenção tenha sido a de sugerir um romance mais voltado ao horror. Mas ao ler a história, embora seja um texto do gênero, ele segue uma linha fantástica, até óbvia por abordar eventos sobrenaturais a partir de uma cultura misteriosa.

Os Sete Dedos da Morte têm dois finais diferentes. Na edição original de 1903 há um capítulo a mais do que a versão de 1912, esta que foi traduzida aqui no Brasil. Houve certa polêmica na época pelo fato de Stoker ter relançado a obra com um final menos chocante ao leitor médio. De fato, o final da história se revela pacífico para os participantes da experiência, embora deixe no ar uma interessante ambiguidade com relação à nova personalidade assumida por Margareth Trelawny e o destino da rainha Tera.

Todas estas possibilidades foram, de qualquer forma, trabalhadas nas várias adaptações audiovisuais da obra. Entre outras, talvez a melhor tenha sido a primeira: Sangue no Sarcófago da Múmia, da produtora inglesa Hammer, em 1971. Outras que vale a pena conhecer são: O Despertar (1980), A Tumba (1986) e A Lenda da Múmia de Bram Stoker (1998). Programas de TV e de rádio também a adaptaram, mostrando que a obra é uma das principais referências no subgênero da múmia.

Este livro faz parte da “Coleção Mistério e Suspense”, da editora Nova Fronteira e tem sido vendida em bancas de jornais, onde eu comprei meu exemplar. Outros autores interessantes na coleção já publicados são Henry James (A Outra Volta do Parafuso), H.P. Lovecraft (O Sussurro nas Trevas), Joseph Conrad (O Coração das Trevas), Gaston Leroux (O Fantasma da Ópera), Robert Louis Stevenson (O Médico e o Monstro), H.G. Wells (O Homem Invisível), Mary Shelley (Frankenstein), e além de Os Sete Dedos da Morte, mais dois de Bram Stoker: Drácula (em dois volumes) e a coletânea O Hóspede de Drácula e Outros Contos Estranhos. Embora sejam todos livros já publicados anteriormente – talvez com a exceção da coletânea de Stoker – vale a pena ler, reler ou colecionar, a depender do grau de interesse de cada um. E adicionado pelo fato das edições terem uma diagramação muito bonita. A conferir se outros títulos serão lançados.

 

Marcello Simão Branco