Os Sete Dedos da Morte (The Jewel of Seven Stars), de Bram Stoker. Tradução: Stefania A. Lago. Capa: Anderson Junqueira. 261 páginas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2021. Lançamento original em 1903.
Sim,
estamos diante de um livro sobre a múmia. Mas não se trata de uma história
sobre a monstruosidade em si, mas sim dos possíveis efeitos do conhecimento
e seus poderes ocultos a partir dela. Nesse sentido, se em Drácula
o foco se concentra mais nas ações do protagonista – um estranho que
desestabiliza a sociedade londrina do fim do século XIX – em Os Sete Dedos
da Morte, o enredo se desenvolve através dos mistérios em torno da cultura
egípcia.
O
arqueólogo Abel Trelawny é encontrado ferido e inconsciente por sua filha dentro
do seu quarto. Abalada, ela chama a polícia londrina e Malcom Ross, um advogado
que ela conhecera recentemente e que se revelara seu amigo. Trelawny tem
ferimentos nas mãos e na cabeça e jaz deitado no chão perto de um cofre. Em
princípio, a história se move em torno deste mistério e várias hipóteses de investigação
são postuladas para se descobrir o que poderia ter acontecido.
Narrado
em primeira pessoa por Ross, temos uma perspectiva externa ao drama do pai e
sua filha, Margaret Trelawny que, como logo deixa claro o personagem, está
apaixonado por ela, daí seu verdadeiro interesse em ajudá-la, embora ela ainda
não saiba disso. Ross praticamente muda para a casa dos Trelawny e se envolve
completamente em seu duplo objetivo: descobrir o que aconteceu com o arqueólogo
e, principalmente, conquistar Margaret.
O
romance começa a adquirir uma conotação mais interessante quando, mesmo sob
vigília de Ross, Margaret e outras pessoas, o evento se repete. Todos ficam
inconscientes e quando despertam, o arqueólogo é visto no chão e cheio de
machucados. A partir deste momento, a polícia e os demais passam a associar o
mistério à atividade de Trelawny. Ou seja, de algum modo, haveria uma
influência de pessoas ou elementos sobrenaturais no desencadeamento do evento.
A casa toda, de estilo gótico, está cheia de peças trazidas do Egito: enfeites,
pedras, ornamentos, um cofre, e as múmias de uma mão, de um gato e, descobre-se
depois, um sarcófago contendo, simplesmente, a múmia da rainha Tera, que havia governado
há cinco mil anos.
Contudo,
a história assume diretamente seu caráter de horror ou fantástico quando Abel
Trelawny desperta do seu coma que, vem a se saber foi, de fato, provocado, por
suas experiências relacionadas à Tera. Pois ele e seu parceiro, o também
arqueólogo Corbeck, estiveram várias vezes no Egito, e de lá trouxeram todas
as peças que faziam da residência um autêntico museu. Segundo o que eles
descobriram, a múmia teria um plano para reviver e, de alguma forma, eles
teriam interferido. De qualquer forma, ao modo dos dois pesquisadores,
a intenção era a mesma: testar a possibilidade de ressuscitar a rainha Tera e,
com isso, eventualmente, descobrir segredos perdidos que poderiam trazer novos
conhecimentos – ou ameaças, mas valia correr o risco – para a humanidade.
Como
se percebe o livro trabalha o confronto entre a cultura ocidental – mostrada
como mais “civilizada” – e uma cultura oriental, no momento decadente e
subjugada, mas, que no passado teria experimentado um desenvolvimento e
esplendor ainda não atingido pelos europeus. A história mostra o fascínio dos
personagens diante de um desconhecido que pode trazer poder e destruição. No fundo, mais uma vez, estamos diante, da crença de que em
momentos longínquos e controversos a humanidade teria tido conhecimentos que,
por razões misteriosas, se perderam. Assim, os europeus estariam na missão de
reconstruir estes saberes e, desta forma, haveria uma justificativa para
explorar a fundo seus mistérios. Nem que com isso, violassem e destruíssem as
instalações de culturas antigas, no caso em questão, a dos egípcios.
Claro
que é preciso levar em consideração o contexto histórico, mas não deixa de
incomodar o desplante com que Trelawny e Corbeck furtam descaradamente os
templos sagrados dos egípcios, como se tivessem algum direito sobre isso. Não
só violam a câmara funerária de uma antiga governante, mas a levam embora para
Londres! E para uma residência particular! Tudo isso, mostrado com a maior
naturalidade, revela a postura imperialista dos britânicos naquele
período histórico. No contexto contemporâneo seria impensável e injustificável
ações como as realizadas durante a narrativa.
Para
realizar a experiência, aos dois arqueólogos se unem Malcom Ross, Margareth e o
doutor Winchester, que havia cuidado de Abel, numa casa afastada na região litorânea
da Cornualha. A esta altura, também, a narrativa quase se equilibra entre o
objetivo fantástico da missão e a paixão do advogado, cada vez mais preocupado
com a transformação na personalidade de sua amada: de uma mulher tímida e
insegura, para uma entusiasmada pelo mistério da missão, e ora carinhosa, ora
distante. Pois como se percebe, há uma estranha e cada vez mais evidente
coincidência entre a suposta personalidade de Tera e a da filha do arqueólogo.
Para
além da ação competente, há no romance descrições profundas e contextualizadas
do conhecimento da arqueologia da época sobre o Egito antigo. Pode-se dizer,
talvez, que Stoker era um apaixonado pelas culturas orientais, e pesquisou
bastante, o que traz um grau de realismo e verossimilhança que chega a
impressionar. Mas sem tirar o viés fantástico da trama que tem o seu desfecho
após uma longa preparação de todos.
De
saída, talvez o leitor tenha estranhado que o título nacional guarda pouca
relação com o original: de A Joia das Sete Estrelas se chamou Os Sete
Dedos da Morte. Mas ambos são válidos. No primeiro se valorizou o rubi que
daria poderes ao renascimento da múmia, e no segundo ao estranho fato de que a
rainha tinha sete dedos em uma de suas mãos – justamente a decepada e separada
do corpo. Talvez a intenção tenha sido a de sugerir um romance mais voltado ao
horror. Mas ao ler a história, embora seja um texto do gênero, ele segue uma
linha fantástica, até óbvia por abordar eventos sobrenaturais a partir de uma
cultura misteriosa.
Os
Sete Dedos da Morte têm dois finais diferentes. Na edição
original de 1903 há um capítulo a mais do que a versão de 1912, esta que foi traduzida
aqui no Brasil. Houve certa polêmica na época pelo fato de Stoker ter relançado
a obra com um final menos chocante ao leitor médio. De fato, o final da
história se revela pacífico para os participantes da experiência, embora deixe
no ar uma interessante ambiguidade com relação à nova personalidade assumida
por Margareth Trelawny e o destino da rainha Tera.
Todas
estas possibilidades foram, de qualquer forma, trabalhadas nas várias
adaptações audiovisuais da obra. Entre outras, talvez a melhor tenha sido a
primeira: Sangue no Sarcófago da Múmia, da produtora inglesa Hammer, em
1971. Outras que vale a pena conhecer são: O Despertar (1980), A
Tumba (1986) e A Lenda da Múmia de Bram Stoker (1998). Programas de
TV e de rádio também a adaptaram, mostrando que a obra é uma das principais
referências no subgênero da múmia.
Este
livro faz parte da “Coleção Mistério e Suspense”, da editora Nova Fronteira e
tem sido vendida em bancas de jornais, onde eu comprei meu exemplar. Outros
autores interessantes na coleção já publicados são Henry James (A Outra
Volta do Parafuso), H.P. Lovecraft (O Sussurro nas Trevas), Joseph
Conrad (O Coração das Trevas), Gaston Leroux (O Fantasma da Ópera),
Robert Louis Stevenson (O Médico e o Monstro), H.G. Wells (O Homem
Invisível), Mary Shelley (Frankenstein), e além de Os Sete Dedos
da Morte, mais dois de Bram Stoker: Drácula (em dois volumes) e a
coletânea O Hóspede de Drácula e Outros Contos Estranhos. Embora sejam
todos livros já publicados anteriormente – talvez com a exceção da coletânea de
Stoker – vale a pena ler, reler ou colecionar, a depender do grau de interesse
de cada um. E adicionado pelo fato das edições terem uma diagramação muito
bonita. A conferir se outros títulos serão lançados.
—Marcello Simão Branco
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