O Império dos Mutantes (La Mort Vivante), de Stefan Wul. Tradução:
Amadeu Lopes Sabino. Capa: Lima de Freitas. 172 páginas. Lisboa: Editora Livros
do Brasil, Coleção Argonauta, n. 107, 1966. Lançamento original de 1958.
Stefan Wul é um autor que pensa grande. Uma das
qualidades de seus livros é a dimensão quase metafísica que confere à condição
humana, sua evolução e destino, principalmente do ponto de vista biológico. E
este romance é aquele em que vai mais longe na exploração desses conceitos.
Num futuro distante e indefinido a Terra está
praticamente desabitada. Os mares tomaram toda a superfície, restando apenas
túneis subterrâneos e castelos no alto de montanhas. O ar é irrespirável tomado
por uma radioatividade mortal.
Mas a humanidade sobreviveu. A maioria partiu
para as estrelas distantes, construindo o que chamam de ‘planetas paraíso’.
Talvez emulações intencionais ou não da própria Terra? Mas há também os que
colonizaram os vizinhos Vênus e Marte.
Pois é em Vênus que nos é apresentado Joaquim, um
velho biólogo que luta para manter suas pesquisas científicas contra uma rígida
censura religiosa. Sim, a sociedade humana em Vênus é governada por uma ditadura
que subjuga todos os aspectos comportamentais à sua doutrina. Uma teocracia
mergulhada na ignorância e barbárie, a despeito de defender os valores de Deus.
Todo este contexto é mostrado logo nas primeiras
páginas, conferindo um efeito altamente impactante. Poderia mesmo servir como
uma ótima vinheta ou miniconto, e já seria incrível. Wul mostra como, de saída,
fisgar o leitor de maneira incontornável.
Após Joaquim comprar um livro proibido de
medicina de um contrabandista, este o leva para a Terra, apesar dos protestos
do cientista. Na verdade, reclamações hesitantes, pois lhe é oferecida a chance
de pesquisar livremente, sem censuras e humilhações. Chegando à Terra, ele é
conduzido a um castelo no alto dos Montes Pirineus – cadeia de montanhas que
fica na fronteira entre a França e a Espanha –, onde é apresentado a Martha,
uma linda e misteriosa mulher, que comanda uma rede de contrabandos entre os
dois planetas.
Ela deseja que o biólogo cure sua filha gravemente
doente. Mas durante a viagem a menina morre, e então a missão de Joaquim terá
de ser mais complexa: trazer novamente Lisa à vida. Mas como assim? O próprio
Joaquim se mostra incrédulo. Mas Martha lhe mostra uma biblioteca com livros
antigos, no qual haveria o conhecimento para se trazer uma pessoa morta
novamente à vida. Ressurreição? Não, na verdade a técnica é a da clonagem, mas
é curioso que esta palavra não é usada no livro, dando uma ideia errada do que
seja reviver uma pessoa. Mas, no fundo, a própria Martha compreende que não é
exatamente a filha que perdeu que deseja de volta, mas sim uma cópia dela.
Mas não se quer apenas uma nova Lisa, mas sete!
Sim, por receio de que a experiência não desse certo, a mãe desesperada
replicou mais células que o necessário, e sem dizer nada a Joaquim. Contudo,
rapidamente, os setes clones mostram um desenvolvimento incomum. Crescem rápido
e falam após poucos meses de vida. Da felicidade se resvala para o desespero e
o descontrole, quando as gêmeas passam a desafiar a autoridade de Martha e
Joaquim.
Para além do exagero das sete crianças, um erro
grave foi cometido na própria clonagem, pois Joaquim descobre que a Lisa
original havia sido envenenada pela mordida de um lagarto. E o efeito do
estranho veneno teria desencadeado este desenvolvimento físico e mental incomum
dos clones que, passam a engravidar e gerar novas Lisas, num processo de
partenogênese. Centenas delas agora tomam as dependências do castelo e seus
túneis subterrâneos. E, ainda além, elas se unem num único organismo que de
humano já não tem quase nada, adquirindo um apetite insaciável por alimentação
animal e vegetal. Percebe o leitor que a partir da clonagem se desenvolve
várias mutações que transformam inteiramente os seres vivos originais? Tal
narrativa é mostrada pelos olhos surpresos e aterrorizados de Joaquim e Martha,
que se tornam vítimas de um monstro incontrolável.
O Império dos Mutantes é uma história de extrapolação científica em estado puro, no qual Wul
demonstra o seu conhecimento científico ligado às ciências biológicas – ele era
dentista de profissão – e uma imaginação das mais delirantes. Neste caso
específico de puro pesadelo e horror.
Este é o único livro de Wul publicado no Brasil,
com o título de A Cadeia das Sete,
pela Tecnoprint Editora, série Futurâmica, n. 4, em algum momento dos anos
1970. Tenho esta edição, mas para escrever esta resenha li a edição portuguesa
mesmo, de forma a seguir o padrão de leitura dos outros livros dele publicados
pela Argonauta. Em 2019, uma editora online chamada Ala dos Livros anunciou a
publicação de uma adaptação em quadrinhos do livro, publicada originalmente na
França em 2018, com texto de Olivier Vatine e desenhos de Alberto Varranda,
mas, ao que parece, o projeto ainda não veio a lume.
Outra curiosidade é que esta FC de puro sense of wonder inspirou o nome do grupo
de rock brasileiro Os Mutantes (1966-1978; 2006), de Arnaldo Baptista, Rita Lee
e Sérgio Dias – além de participações de Liminha e Dinho Leme –, que marcou
época na música popular brasileira. A sugestão do título da banda foi do cantor
Ronnie Von, no seu programa de TV na Record, já que até então o nome era Os
Bruxos. Talvez a feliz sugestão tenha se relacionado com o caráter ambíguo e em
transformação dos temas e comportamento dos integrantes da banda, que
transitavam entre a Jovem Guarda e a psicodelia da Tropicália, numa pioneira
experimentação de um rock and roll à
brasileira.
O Império dos Mutantes reflete sobre a relação problemática entre dogma e conhecimento, teocracia
e ciência, mas, curiosamente, é como se a experiência tivesse dado alguma razão
aos religiosos. Isso não fica explicitamente evidenciado na história – embora
Joaquim se angustie muito com o resultado de seu experimento –, mas passa essa
sensação. Um romance poderoso e que deixa um forte impacto no decorrer dos
acontecimentos, como que se superando, um capítulo após o outro, até um
desfecho não menos que incrível. Este é um dos melhores livros de Wul, com um pulp dos mais acentuados, embora numa
chave inversa – não muito comum em livros deste tipo –, com o contexto mais
pessimista e desdobramento mais sombrio de sua obra.
—Marcello
Simão Branco
Gostei muito da resenha, li este livro a muito tempo, e agora lendo a resenha descobri que preciso reler, acho que na época não dei a devida atenção a questão teocratica.
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