Onde Ninguém Mais Esteve: O Legado de Jornada nas Estrelas para a Televisão, a Cultura Popular e o Mundo, Saulo Adami e Eduardo Torelli, organizadores. Capa: Pete Wallbank e ilustrações internas de Graham Hill. Prefácio: Sandro Moser. 230 páginas. Curitiba: Estrada de Papel, 2021.
A literatura de referência sobre a série Jornada nas Estrelas (Star Trek) com o qual o fã brasileiro teve contato ao longo de décadas era toda estrangeira, obras vindas dos Estados Unidos. Assim, embora não tenha sido o primeiro dos livros traduzidos no Brasil, lembro o espanto que foi quando o clássico Star Trek Compendium (1981), de Allan Asherman ganhou uma edição como Jornada nas Estrelas Compendium, em 1999. Alguns outros livros foram traduzidos desde então, mas nenhum com o impacto e importância deste no imaginário trekker. Em todo caso, a maior parte dos brasileiros nunca teve dificuldades em ler as edições originais em inglês. Menos pela dificuldade com o idioma, e mais pelo entusiasmo sobre o assunto. Posso dizer que no meu caso, inclusive, a leitura destes livros ajudou meu aprendizado com a língua.
Mas a boa novidade é que nesta última década, alguns dos maiores especialistas e fãs brasileiros da série começaram a publicar seus livros sobre Jornada. Entre outros, o pioneiro Almanaque Jornada nas Estrelas (2009), de Salvador Nogueira e Susana Alexandria – ver a resenha aqui –, e um estudo acadêmico interessante, Star Trek: Utopia e Crítica Social, do historiador Eduardo Pacheco Freitas (2019). Ao menos duas razões, talvez, possam explicar esta mudança. Primeiro, por causa do estágio da carreira dos autores – que publicaram antes outros livros ou alcançaram um título acadêmico reconhecido – mas também devido ao impacto do seriado em suas várias versões na cultura popular de uma maneira geral. E renovada com a comemoração dos 50 anos em 2016, a recriação com novos filmes no cinema e algumas novas séries em anos recentes.
Neste contexto, o livro Onde Ninguém Mais Esteve: O Legado de Jornada nas Estrelas para a Televisão, a Cultura Popular e o Mundo é o mais democrático e representativo, pois amplia esta abertura à publicação de escritos de brasileiros sobre a série. A começar pela organização da obra, a cargo de dois especialistas em cinema e TV. Saulo Adami é o mais conhecido fã e estudioso sobre a franquia Planeta dos Macacos (Planet of the Apes) – com dois livros sobre o assunto – e Eduardo Torelli escreveu, entre outros temas, um livro sobre a cinessérie James Bond. Além disso, como mostram em seus próprios capítulos, também cresceram vendo e apreciando as missões espaciais de Kirk, Spock e companhia.
Pois este volume é a primeira reunião de vários fãs e especialistas brasileiros e ilustra o esforço de admiração, reflexão e pesquisa sobre a criação de Gene Roddenberry (1921-1991). Isso porque o tom do livro é exatamente uma mistura de memórias pessoais, elogios sobre a série e muitos argumentos sobre os motivos que a tornaram tão especial na vida de cada um, na ficção científica e na cultura popular em geral.
Temos, assim, as presenças de nomes como Paulo Gustavo Pereira, Paulo Maffia, Maurício Muniz, Renato da Silva, Roberto de Sousa Causo, Ben Santana, Fábio Fernandes, Gilson Cunha, e eu mesmo. É um grupo heterogêneo, com jornalistas, professores, escritores e cientistas, mas que tem como ponto em comum a adoração à celebrada série de TV. Além disso, há um capítulo escrito pelo jornalista norte-americano Edward Gross. Ele é uma presença especialmente ilustre, pois talvez tenha sido quem assinou a maior parte das reportagens sobre a série, principalmente na saudosa revista Starlog que, nas décadas de 1970 a 1990, foi a principal referência de informações mensais sobre o universo da série. Além disso, Gross teve traduzido no Brasil Jornada nas Estrelas: A História Completa, Não Autorizada e Sem Censura – Volume 1 (2016), em coautoria com Marc A. Altman. Uma pesquisa de fôlego e reveladora sobre os bastidores e o universo de criação da série original.
E se ainda não ficou claro, esta antologia é sobre a série clássica, aliás como a própria bela ilustração de capa e as internas deixam transparecer. Isso torna o livro mais robusto do ponto de vista temático, reforçando as bases de compreensão sobre aspectos do desenvolvimento e estruturação das várias séries posteriores. Temos, assim, 16 capítulos, abordando de tudo um pouco: a vinculação de Star Trek com o subgênero da FC chamada de “space opera”, a criação e os bastidores da série, um sempre bem-vindo guia de episódios, com a ficha técnica e uma boa sinopse de cada um dos 79 episódios, um artigo sobre a série animada que sucedeu a clássica, entre 1973 e 1974, um capítulo sobre os filmes no cinema com os personagens da série original, um capítulo sobre as adaptações literárias e outro sobre as histórias em quadrinhos – em ambos aqui faltou uma pesquisa mais apurada sobre os títulos publicados no Brasil, listas das obras cairiam bem –, dois capítulos sobre a trajetória, as características e a presença dos fã-clubes brasileiros, mostrando que Jornada nas Estrelas é um fenômeno antigo e de alcance nacional, além de outros capítulos valiosos também por equilibrarem impressões pessoais com análises sobre algumas características temáticas que foram responsáveis pelo seu sucesso e influência perene. Tive a sorte de ser o autor com mais textos publicados, numa mostra do meu entusiasmo pelo projeto e amor ao seriado.
Onde Ninguém Mais Esteve não é apenas uma bonita seleta de homenagem mas, mais importante, uma amostra do vigor de reflexão e pesquisa, deixando claro que os fãs e especialistas brasileiros têm ainda muito o que dizer sobre a série, justificando assim, os livros nacionais que têm sido publicados nestes últimos anos. Que outros venham e consolidem uma literatura de referência com característica brasileira sobre a mais cultuada série de ficção científica.
—Marcello Simão Branco
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