Ficções –
Revista de Contos. Organização e edição de Dorva Rezende. Ano VIII, número
15, julho de 2006, 112 páginas. Rio de Janeiro: Editora Sete Letras, 2006.
De tempos em
tempos a ficção científica brasileira deixa a sua tradicional invisibilidade.
Ganha algum destaque na grande imprensa, por meio de uma ou outra editora que
publica alguma obra relevante ou ainda em uma publicação especializada do mainstream,
com uma crítica positiva ou um volume de contos. Pois este último caso é o
desta bem-vinda edição da revista Ficções, da editora carioca Sete
Letras, que dedicou um número inteiro sobre a ficção científica brasileira, no
penúltimo número da revista. Descontinuada pouco depois como todas as da
história do mercado editorial brasileiro, foi um acontecimento que surpreendeu
não só a comunidade brasileira voltada ao gênero, como o próprio leitor que
habitualmente comprava esta revista, ou seja, do mainstream. Com pouco
ou nenhum conhecimento sobre a ficção científica escrita no Brasil.
Mas a edição é
meritória não apenas por sua intenção. É principalmente pelo conteúdo do
volume. É que o jornalista Dorva Rezende, organizou uma verdadeira antologia do
gênero no país. E das melhores já montadas.
Ficções
reúne sete dos mais representativos autores brasileiros da Segunda Onda (1982 a
2004), a maioria deles em momentos especialmente felizes de suas obras. Como em
toda coleção de histórias curtas de autores diferentes, há narrativas melhores
e outras piores. Mas chama a atenção a média elevada de trabalhos de boa
qualidade. Talvez para isso tenha contribuído a quantidade pequena de histórias
o que, em tese, diminui a possibilidade de mais irregularidade entre os
trabalhos. Mas também é possível afirmar que o equilíbrio virtuoso seja consequência
da boa escolha de autores, todos já com uma carreira com trabalhos
profissionais publicados.
A revista abre
com um bom artigo do próprio editor, discutindo as razões pelas quais o gênero
praticado no país continua pouco considerado por boa parte da comunidade
literária. Aponta uma invisibilidade que teima em se fazer aparecer e fornece
alguns exemplos históricos de bons autores que o gênero já tem no país. Mesmo
usando uma linguagem um pouco afetada, com uma verborragia excessiva em termos
de referências eruditas – talvez devido ao público alvo preferencial do volume,
ou seja, não leitores de ficção científica –, o texto é inteligente e serve
para instigar a leitura dos contos a seguir.
O primeiro dos
contos publicados é também o melhor da edição e provavelmente a melhor história
brasileira de 2006. Estou me referindo ao texto “A propósito da difração
quântica nas regiões periféricas da consciência”, de Braulio Tavares. É uma
história surpreendente e sofisticada, que mostra como seria um ser humano com a
visão de outros universos paralelos, embasados na concepção quântica do
princípio da incerteza. A ideia básica é simples, mas provocadora: para existir
é preciso ser visto. Como se nota, estamos diante de uma premissa fascinante e
polêmica, pois abre outras maneiras de enxergar a realidade, relativizando-a,
abrindo a mente e a postura para outras experiências não convencionais da vida.
O recurso do
personagem estar sob efeito de uma droga, só acentua o possível nexo causal que
pode existir entre o cérebro e as estruturas físicas que compõem a Natureza.
Como se houvesse uma oportunidade de atravessar àquela ao qual estamos ‘presos’
em direção a concepções mentais e físicas outras. É Braulio Tavares novamente
em um momento brilhante.
Na sequência
vem “Um dia perfeito para um piquenique”, de Simone Saueressig. Uma boa
escolha, pois a autora gaúcha é talentosa e mantém o nível do conto precedente.
E também não deixa de ser uma surpresa agradável constatar que uma autora mais
voltada à fantasia e ao horror, escreve uma história de ficção científica
tradicional com competência.
Em uma missão
brasileira em Marte, um astronauta descobre uma fenda no solo que dá em um
túnel subterrâneo. Em sua missão ele está à procura do Porto 31 que,
acredita-se, seja uma estrutura metálica sob a superfície. De fato, ela se
confirma. Mas o astronauta jamais poderia imaginar que era sua própria nave há
milhares de anos. Embora seja possível descobrir o rumo da história no início,
a autora narra com segurança, mantendo o suspense e o interesse em sabermos o
que acontecerá com o desafortunado astronauta.
A terceira
história é de Jorge Luiz Calife, o autor símbolo da ficção científica hard
brasileira. O seu “Mergulho nas Bahamas” apresenta Patrícia, uma jovem
fotógrafa da vida selvagem. Ela está em missão nas águas do Caribe, quando é
surpreendida por uma lula gigante. O animal a leva para a escuridão do fundo do
oceano. E ela desperta a 680 anos-luz da Terra, em um planeta oceânico, mantido
como um zoológico de espécies marítimas raras por uma civilização
extraterrestre. Pois ela foi confundida com uma sereia, que os alienígenas
julgam existir, seguindo as lendas terrestres que encontraram.
Obviamente um
engano e Patrícia procura se utilizar da crença alienígena para tentar voltar à
Terra. A maneira como ela os convence pode parecer pouco crível, mas é
divertido e faz sentido, pois se os aliens acreditam mesmo que ela seja uma
sereia, nada mais lógico que continuassem ingenuamente em seu engano. O conto é
uma variação das lendas sobre os misteriosos desaparecimentos nesta região do
planeta, narrado com desprendimento e segurança, com as conhecidas belas
imagens da natureza, uma marca do autor. Uma história bem-vinda, pois foge da mesmice
de seu universo ficcional de “Padrões de Contato”, mostrando que o autor pode
escrever contos interessantes como este. Por fim, é de se perguntar por que
esta história não foi publicada na sua coletânea As Sereias do Espaço
(2001). Teria sido uma das melhores do livro. A não ser que tenha sido escrita
mais recentemente.
“Bárbaros nos
portões” é a contribuição de Gerson Lodi-Ribeiro à antologia. Como já é comum
em sua obra, esta é mais uma história de especulação política sobre o futuro
próximo do Brasil. Em 2043 o contexto internacional vive uma nova Guerra Fria,
desta vez entre a Aliança Ocidental – liderada pelos Estados Unidos – e a União
Sulina – que inclui o Brasil. Ao que parece o conflito não é mais Leste-Oeste,
mas Norte-Sul.
São
construídas cidadelas subterrâneas para abrigar as autoridades no caso de uma
guerra nuclear. Floresta é uma delas, próxima a Brasília. Na iminência da
guerra, os políticos e militares correm para os portões da cidadela. Só que os
residentes, cientistas em sua maioria, não deixam que os ‘bárbaros’ entrem.
Isso porque parte da população fixa teria de ser retirada para dar lugar às
autoridades. A guerra ocorre e Floresta torna-se líder no mundo, entre as
poucas que sobrevivem. A história é interessante, mas a parte final diminui o
impacto, quando o autor resolve explicar o que veio depois do conflito. Sai a
narrativa e entra o documento. Perde uma força dramática bem conseguida até
então.
Questionável
também o argumento de considerar os políticos como bárbaros e corruptos e os
cientistas como virtuosos e idealistas. Será que é um desabafo com os
escândalos recentes na política brasileira? Ademais, como é que as cidadelas
não estavam preparadas para receber as autoridades, na eventualidade de um
conflito?
Sobre a
dicotomia em si, ela não faz sentido em um Estado que, pelo que é sugerido, é
democrático. No fundo, os bárbaros são os que impedem a entrada dos
governantes, representantes do povo. Impedidos de entrar em uma instituição que
é pública e não dos que nela residem. Um autêntico golpe de Estado!
O texto é
curioso também pelas referências a personalidades do fandom por meio de
personagens, como Silvio Gonçalves (tradutor), Fábio Fernandes (escritor) e um
certo general Souza Castro, uma referência indireta ao escritor Roberto de
Sousa Causo.
E é exatamente
de Causo a próxima história. Coincidência ou não, outra história de futuro
próximo com o Brasil em guerra. “Brasa 2000” foi primeiramente publicada no fanzine
Somnium no. 79, mas esta nova versão é modificada. O conflito é com a
Argentina. São Paulo é severamente bombardeada, sobrando pouco mais do que
ruínas do Centro da cidade. O drama enfoca o soldado Exequiel, único
sobrevivente de seu grupo. Ele tenta se desvencilhar de drones altamente
sensíveis e mortíferos, quando encontra um velho civil ferido em escombros.
Procura ajudá-lo e uma curta e estranha relação ocorre entre os dois, sem que o
soldado compreenda o significado. O velho fala por parábolas existencialistas.
Demais para um soldado, ou qualquer pessoa numa situação vital, que quer apenas
sobreviver.
Causo imprime
uma boa dramaticidade, além de – como já lhe é habitual –, narrar de maneira
convincente os detalhes das batalhas, mesmo sem perder o cacoete – ainda mais
recorrente – , de descrever com detalhes os armamentos e como funcionam. Se no
conjunto é um bom conto, principalmente por causa da sensação iminente de morte
dos personagens, por outro soa incompleto. Como se fosse o fragmento intenso de
uma história maior, o que deixa uma sensação de certo desconforto ao final. De
uma narrativa que poderia render mais.
A próxima
história é de Carlos Orsi Martinho, com o seu “O Colosso de Bering”. Um sujeito
morre e vai parar em outro universo, no fim do século XIX bem no meio de uma
guerra entre russos e japoneses. É verdade que esta guerra existiu em nosso
universo. A diferença é que são estes dois países as potências dominantes da
época. Pois da mesma forma que lá foi parar ele retorna ao que acredita ser o
‘seu’ mundo. Procura um amigo, que se tornou escritor de mistérios para lhe
ajudar a decifrar o seu próprio.
Resumido desta
forma, talvez o leitor não ache muito interessante. Mas o que vale é ler a
história, contada com bom ritmo e um suspense intrigante. Um conto que prende a
leitura até o desfecho que, por sinal, ainda consegue ser provocador.
A última
história é de Fábio Fernandes. Para exemplificar, permitam-me uma indiscrição.
Na dedicatória que o autor escreveu ao meu exemplar ele afirma que “Às vezes
escrevo hoje em dia, mas quando escrevo é ficção científica”. Parece que de lá
para cá a situação não mudou.
“Charlotte
Sometimes” não é um conto facilmente digerível – o que, aliás, é comum no autor
–, mas é sutil em suas consequências. Explicá-lo é um pouco difícil, pois
perde-se as suas nuances e seu jogo de aparências, sempre volvendo, como se no
próximo parágrafo uma nova e diferente sentença se apresentasse. Toda esta estrutura
subjetiva se dá na experiência onírica de um sujeito que não sabe mais o limite
entre o sonho e a realidade. Até ser confrontado com duas descobertas: Sua
finitude e sua vivência através de alguém que lhe perdeu.
Após os contos
ainda há um bônus, com uma boa entrevista com Braulio Tavares, realizada por
Dorva Rezende e Manoel Ricardo de Lima. Ele fala sobre as razões de não mais
escrever ficção – na época –, das dificuldades do gênero crescer no Brasil, de
Guimarães Rosa e Jorge Luís Borges, além de citar algumas obras da ficção
científica brasileira que considera dignas de serem conhecidas.
Esta edição
número 15 da revista Ficções merece alguns reparos, contudo, pois faltou
uma boa revisão, além do fato das biografias da maioria dos autores estarem com
dados incorretos. É curioso também que esta revista tenha uma distribuição
precária, encontrada para compra apenas na própria editora (!), conforme me
revelou uma de suas publishers. É irônico que uma publicação que visa a
divulgar a ficção científica brasileira seja ela também de acesso difícil.
Mas estes
problemas são laterais. O principal é que os leitores do mainstream e do
próprio gênero que conseguirem comprar a edição serão brindados com um momento
feliz da ficção científica brasileira. Isso não é pouca coisa, principalmente
para a comunidade que se dedica ao gênero, pois sugere boas perspectivas para seu reconhecimento no país.
– Marcello
Simão Branco
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