Prof. Dr. Edgar
Indalecio Smaniotto
As
Crônicas das Viagens é
um universo ficcional criado pelo escritor norte-americano Lyon Sprague de Camp
(1907-2000). Nesse universo ficcional, o Brazil
(grafado com Z) é a potência dominante na Terra, inclusive é a nação que
controla a corporação semiestatal Viagens
Interplanetárias, única empresa terrestre que tem tecnologia para fazer
viagens entre os diversos mundos habitados nesse universo ficcional.
L. Sprague de Camp utiliza diversas palavras em
português em seus contos de As Crônicas
das Viagens para dar o ar de dominação cultural do Brasil, como ocorre atualmente
com relação aos EUA, que, por ser a potência dominante, impõe o inglês como
língua “universal”. Esse recurso estilístico dá maior realismo ao cenário
desenvolvido. Na tradução brasileira, as palavras que originalmente estavam em
português são marcadas com asterisco.
L. Sprague de Camp
Neste texto resenharemos os dois livros
publicados em português que reúnem as Crônicas
das Viagens: “Os Dentes do Inspetor” e “Construtores de Continentes”, ambos
traduzidos por Cézar Tozzi e publicados pela Francisco Alves em 1976 e 1977,
respectivamente, na coleção Mundo
Fantástico (ressaltamos que esse é o material disponível no Brasil, sendo
que o autor escreveu outras obras nesse mesmo cenário). “Os Dentes do Inspetor”
corresponde ao segundo volume da coleção, e “Construtores de Continentes” ao
quarto volume, sendo que o volume três da coleção é a coletânea “Contos da
Taberna”, de Arthur C. Clarke. Ambas as coletâneas contam com a mesma
introdução, escrita por Isaac Asimov.
Nessa introdução, Asimov relata seu primeiro
encontro com L. Sprague de Camp, sendo Asimov um escritor iniciante, e Sprague
de Camp um escritor já reconhecido. Asimov descreve Sprague como dotado de uma “erudição
exótica e heterogênea”... “um historiador de quase tudo”... “capaz de escrever
com graça e competência tanto sobre o mito de Atlântida, magia ou feitiçaria, a
malograda era industrial dos tempos helênicos ou a Itália ostrogoda, armamento
naval ou falsificações, sob a forma de história aprazível ou romances
históricos com excelente base de pesquisa”.
Asimov chama a atenção também para o fato de
Sprague ser linguista e foneticista, tendo publicado artigos nessa
especialidade científica, além de ter escrito sobre outros temas, como
dinossauros e lei de patentes (nos contos “Moto-contínuo”, “Acabou” e
“Vam’bora!”, aqui resenhados, Sprague faz uso de seu domínio sobre leis de
patentes).
No decorrer da II Guerra Mundial, juntamente
com os também escritores de ficção científica Isaac Asimov e Robert A. Heinlein,
Sprangue de Camp trabalhou como pesquisador para Philadelphia Naval Yard, já que era engenheiro aeronáutico,
enquanto Heinlein era formado na Academia Naval, e Asimov também era cientista.
Essa concentração de três grandes escritores de ficção científica no mesmo
lugar de trabalho no decorrer da Guerra gerou diversas histórias sobre
trabalhos com “armas secretas”, que sempre eram desmentidas pelos autores — que
estavam envolvidos em atividades bem mais corriqueiras (Ver: https://www.kirkusreviews.com/features/asimov-de-camp-and-heinlein-naval-aviation-experim/.
Acesso em 14/12/2014).
Robert A. Heinlein, L. Sprague de Camp e Isaac Asimov, numa base da US Navy, 1944.
Acredito que esse tipo de história de
envolvimento de escritores de ficção científica com o aparato técnico-militar foi
aproveitado no romance Invasão, de Larry
Niven e Jerry Pournelle (Francisco Alves, 1989), em que, perante uma invasão
extraterrestre, o governo americano utiliza escritores de ficção científica
como consultores. Futuramente resenharemos esse romance nesta coluna.
L. Sprague de Camp também escreveu biografias, dentre
as quais se destacam Lovecraft: a
Biography (1975) e Dark Valley
Destiny: the Life of Robert E. Howard (1983). Em conjunto com Lin Carter,
Camp deu continuidade ao legado de Robert E. Howard, criador do personagem Conan, o Bárbaro; seja publicando as
histórias originais de Howard ou completando histórias inacabadas. No Brasil,
as histórias de Conan, com introdução e notas explicativas realizadas por L. Sprangue
de Camp, foram publicadas pela editora Mercuryo (selo Unicórnio Azul) na
coleção de livros de bolso Conan, Espada
e Magia em 1995.
Os dois livros que resenhamos neste texto, “Os
Dentes do Inspetor” e “Construtores de Continentes”, reúnem sete contos e uma
novela no universo ficcional das Crônicas
das Viagens. Os dois são a tradução da edição americana “The Continent Makers and Other Tales of the
Viagens”, de 1953, publicado pela Twayne Publishers.
Na resenha a seguir, após o título de cada
conto, consta a data fictícia em que se desenvolve a história. Entre parênteses
consta o título original, a data de publicação nos Estados Unidos e o planeta
em que se desenvolve a trama principal. Dividiremos o texto a seguir em duas
partes, de acordo com o material publicado em cada livro, sendo que a
introdução de Isaac Asimov se repete em ambos os livros.
L. Sprangue de Camp. Os Dentes do Inspetor. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1976.
Constam
desse volume seis contos, que resenhamos a seguir:
Os dentes do inspetor – 2054-2088 D.C. (The Inspector's Teeth – 1950 – Planeta
Terra): inicia-se com uma reunião que pretende criar um Conselho
Interplanetário entre as espécies alienígenas; o objetivo é impedir guerras
interplanetárias. Para tanto, a Terra, cuja potência dominante é o Brasil,
pretende inicialmente estabelecer um tratado com os osirianos, espécie
inteligente do planeta Osíris, que tem domínio tecnológico semelhante ao
terrestre. Os osirianos são descritos como pequenos dinossauros. A trama se
desenvolve em torno de Hithafea, embaixador sha’akhfiano (como os osirianos se autodenominam),
cuja experiência de estudante universitário na Terra será decisiva para a
criação do Conselho Interplanetário. Um bom conto, mas não o melhor do livro. Acredito
que a escolha desse conto para dar título ao livro tenha sido muito mais por ter
o melhor título da coletânea.
Traje de verão – 2114-2140 D.C. (Summer Wear – 1950 – Planeta Osíris): é
uma história muito divertida, com um final muito interessante, ao tratar da
questão de como trocas culturais ocorrem em mão dupla. A história é centrada na
disputa entre dois comerciantes terrestres que apelam a todo tipo de trapaça
para atingir seu objetivo: criar uma demanda artificial para um produto totalmente
inútil aos osirianos. Qualquer relação com as campanhas de marketing que
incentivam o gosto com bugigangas inúteis não é mera coincidência.
Acabou – 2114-2140 D.C. (Finished
– 1949 – Planeta Krishna): ocorre em uma época em que o Conselho Interplanetário
está solidamente constituído. O Conselho mantém um forte bloqueio tecnológico
ao planeta Krishna, que apresenta desenvolvimento social e tecnológico
comprável ao da Europa Medieval. Uma vez que os krishnianos são extremamente
belicosos, o Conselho Interplanetário pretende impedir uma revolução industrial
nesse mundo que possa levar krishnianos a terem armamentos capazes de ameaçar a
paz na Galáxia. Assim, a corporação Viagens
Interplanetárias desenvolve uma estratégia minuciosa para impedir a
contaminação tecnológica em Krishna, que envolve não apenas impedir a
importação de produtos industrializados, como também de literatura técnica. Na
história acompanhamos as peripécias do príncipe Ferreian, de uma das várias
nações de Krishna, para obter acesso à tecnologia terrestre. Outro conto que
apresenta um final bastante interessante, que mais uma vez remete à importância
que mudanças culturais podem ter no desenvolvimento social, econômico e
tecnológico de um povo. Talvez o melhor conto da coletânea, com direito a uma
empolgante descrição de batalha naval. Aqui temos também uma cidade terrestre
em Khishna, de nome Novarecife, e uma espaçonave chamada Maranhão, mais uma vez
demostrando o domínio do Brasil.
O apito de Galton – 2117 D.C. (The Galton Whistle – 1951 – Planeta
Vishnu): em um
mundo com duas espécies inteligentes, os dzlierianos, descritos como centauros,
e os romelianos, espécie de gorila de seis membros, ambas as espécies se
encontram ainda, comparadas à cultura terrestre, na idade pré-histórica,
vivendo em tribos. O contato com os terrestres é feito sem que se permita
contaminação tecnológica, até que o terrestre Sirat Mongkut, um siamês, é
tomado por um deus pelos nativos dzlierianos e elabora um esquema para armar a
tribo que o venera e se tornar líder de todo um planeta. Tudo envolvendo um
simples apito. A cidade humana neste mundo se chama Bembom.
A fábrica dos biscoitos
em feitio de animais
– 2120 D.C. (The Animal-Cracker Plot –
1949 – Planeta
Vishnu): estamos novamente em Vishnu, um mundo em que duas espécies, os
dzlierianos e os romelianos, vivem em guerra pelo seu controle. Tudo tende a
piorar quando o trambiqueiro terrestre Darius Koshay abre uma fáabrica de
biscoitos e incentiva o início de uma guerra mágica entre os nativos. Caberá ao
xenólogo (um antropólogo de alienígenas) Luther Beck resolver a questão e, para
tanto, entender a cultura dos nativos.
Vam’bora! – 2135-2148 D.C. (Git Along! – 1950 – Planeta Osíris):
dois trapaceiros terrestres tentam introduzir um parque temático ao estilo
faroeste entre os osirianos, mas, como sociedade entre trapaceiros não tem vida
longa, o empreendimento se transforma em disputa, e tudo se complica quando os
nativos começam a tomar as narrativas ficcionais sobre o Velho Oeste como
modelo de legislação penal. Um ótimo conto que também trabalha muito bem com a
apreensão de sistemas culturais. Com esse trabalho se encerra a primeira parte
das Crônicas das Viagens.
L. Sprangue de Camp. Construtores de Continentes. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1976.
Nesse volume temos a segunda parte das Crônicas das Viagens – um conto e uma
noveleta.
Moto-contínuo – 2137 D.C. (Perpetual Motion – 1950 – Planeta
Krishna): outro conto que se passa no mundo medieval de Krishna, em que o
bloqueio tecnológico atraiu os mais diversos tipos de espertalhões terrestres
que pretendem quebrar o bloqueio e obter lucro. Aqui acompanhamos o
trambiqueiro profissional Felix Borel tentando introduzir a loteria em uma
comunidade krishniana governada por uma ordem religiosa de cavalaria (ao estilo
Ordem dos Templários). Mas, como os nativos estão interessados mesmo em
tecnologia, Felix Borel arma todo um esquema, se utilizando da famosa lenda
tecnológica terrestre da máquina de moto-contínuo, para arrancar algum dinheiro
dos nativos. Um conto muito bom, no qual vale destacar a excelente narrativa do
autor dos duelos de cavalaria.
Construtores de
Continentes
– 2153 D.C. (The Continent Makers – 1951
– Planeta Terra): imagine uma Terra superpopulosa, se é que precisamos imaginar,
em que se torna possível erguer um continente no meio do oceano Atlântico Sul,
entre Brasil e África. Parece uma boa ideia, principalmente se a humanidade já
dispõe de conhecimento tecnológico para realizar tal proeza sem maiores riscos.
Acontece que tudo poderia se resumir a um pacato empreendimento científico, se
não fosse uma conspiração envolvendo extraterrestres para dar um novo rumo ao
megaprojeto de engenharia.
Aqui
temos uma novela, portanto com muito mais páginas, em que o autor descreve com maiores
detalhes a geopolítica terrestre, tendo o Brasil como superpotência, em meio a
uma história de espionagem e intrigas interplanetárias e com direito a um
romance entre uma alienígena e um cientista terrestre.
Além
dos osirianos, nesse texto são apresentados os seres de Thot, descritos como
sendo uma espécie de “macaco-rato” de “pouco mais de um metro”, o que lembra o
fiel amigo de Perry Rhodan, Gucky.
A
ação se desenvolve em três diferentes cenários, sendo um deles a cidade do Rio
de Janeiro, descrita como a “mais bela metrópole do mundo”; entretanto, L.
Sprangue de Camp não deixa de fazer críticas a um elemento sensível da cultura
institucional brasileira, a burocracia. Em certo momento da trama, as
personagens precisam fazer uma via sacra entre diversas instituições policiais brasileiras
para conseguir ajuda. É difícil para os personagens entender a existência de
tantas forças policiais em um único país, sendo que todas evitam tomar providências,
por julgar que a área de atuação seria de outra força policial, e não dela
mesmo. A mais longa e também melhor história dos dois livros.
Se
existe uma moral nos trabalhos de L. Sprague de Camp reunidos nesses dois
livros, é que não importa a boa vontade dos governos em tentar não contaminar
tecnológica e culturalmente espécies alienígenas com a cultura terrestre, pois
os próprios terrestres serão os primeiros a tentar quebrar esse tipo de
bloqueio para obter algum lucro exportando suas tecnologias e cultura.
Apesar
de serem encontradas apenas em sebos, vale muito a pena ler essas duas seleções
de trabalhos de Sprague de Camp.
__________________
Publicado anteriormente na revista Perry Rhodan, da SSPG.
Caro,
ResponderExcluirAnálises e resenhas muito bacanas! Obrigado pelas indicações, irei comprar os livros!
Abraço!
Dalton Almeida
Obs: Vi postagem com um link para o texto na lista do CLFC