Escuridão Total sem Estrelas (Full
Dark, No Stars), Stephen King. 390 páginas. Tradução de Viviane Diniz. Rio
de Janeiro: Suma de Letras, 2015.
Quando vi o livro em uma livraria
pensei que se tratava de mais uma obra sobre a ausência de luz. Afinal, Escuridão Total sem Estrelas sugere
isso, ainda mais pelo design do
livro, com capa e contra-capa preta e as folhas pintadas de preto em sua
espessura. E o efeito é marcante. Se assim fosse, faria companhia a autores tão
bons e diversos como o nosso André Carneiro (1922-2014), o inglês John Wyndham (1903-1969)
e o português José Saramago (1922-2010).
Tal impressão me agradou pela
perspectiva de ver um autor como King abordar o tema, mas se desfez quando
percebi que as quatro histórias – duas novelas e duas noveletas – tratavam,
isto sim, da escuridão da alma humana. Nas sombras que habitam em cada um de
nós, nos pensamentos escuros, ruins que temos vez por outra, especialmente
quando diante de grandes problemas ou dificuldades. Normalmente afastamos
rapidamente tais pensamentos – nos reprimindo por tê-los –, mas nas narrativas
deste livro, King mostra como tais alternativas más podem, eventualmente, se
tornar tentadoras, e aflorarem. Para a ilusão de um alívio imediato que se
transforma num pesadelo de proporções inimagináveis.
Este fato é especialmente
verdadeiro no caso da primeira história, “1922”. Por causa de uma disputa em
torno da herança de uma propriedade, um casal se desentende, pois ele quer
incorporar o terreno à fazenda em que já vivem, e ela quer vender para
recomeçar a vida na cidade. De saída já sabemos que as coisas tiveram o pior
desfecho, já que ele, num quarto de hotel, anos depois escreve uma confissão de
como tramou com o filho adolescente a morte da sua esposa e mãe de seu filho. Colocar
esta novela como a primeira do livro foi muito arriscado pois é extremamente
chocante, tanto pelo ato em si, pela violência desencadeada e, principalmente,
pelo que acontece depois na vida do pai e do filho. Confesso que tive de parar
a leitura em certos momentos e, embora ficasse com a narrativa remoendo na
cabeça durante o dia, me incomodava a perspectiva de enfrentá-la depois, mesmo
querendo saber o que iria acontecer. Tudo vai mal para os dois, e a tentativa
de escrever a confissão parece sugerir uma certa expiação do pai pelo ato em si
e por ter incluído o pobre do fillho. Além de ser uma história pesada e
violenta é muito triste. Dos textos mais fortes que li de Stephen King. E olha
que li boa parte do que ele já escreveu.
“Gigante do Volante” conta a história
de uma escritora que após apresentar uma palestra em uma biblioteca numa cidadezinha
do interior do Maine, é surpreendida quando um pneu de seu carro fura na
estrada. Até aí nada demais, mas surge um homenzarrão para ajudá-la. Sim, ele
troca o pneu, mas não fica só nisso. Ela é estuprada e espancada, e só escapa
porque finge estar morta. Para seu horror é colocada dentro de um cano de
esgoto num matagal ao lado dos corpos de outras vítimas do monstro. A partir
daí ela descobre que existe uma outra persona de si mesma, como se nascesse uma
nova, pois o que faz nada tem a ver com a pacata escritora de histórias de
suspense adocicado. Mas o mais inacreditável ainda está por vir, na figura da
bibliotecária que a havia contratado, e sua ligação com o estuprador. Embora King
não defenda que se faça justiça com as próprias mãos é uma história que toma
partido da vítima e a justificativa para seus atos.
De certa forma isto ocorre também
– e de forma ainda mais terrível – na novela que fecha o volume, “Um Bom
Casamento”. Num dia qualquer uma mulher vai até a garagem da casa em busca de
um par de pilhas para o controle remoto da TV, e descobre que seu amado e fiel
marido é um serial killer. Ela
encontra casualmente os documentos de uma das vítimas do famoso assassino que
se identifica como Beadie. O que fazer? Esta pergunta a move durante todo o
tempo, principalmente depois que o próprio marido descobre que ela soube de seu
segredo, e nada faz contra ela. Como que a pedir um pacto em nome do casamento,
dos filhos e, claro, pela própria vida dela. A solução encontrada pode ser
discutível, mas é amplamente justificada. Principalmente em nome das muitas
mulheres que ele estuprou, mutilou e assassinou ao longo de quase quarenta
anos.
A terceira narrativa é a única com
um elemento sobrenatural. Em “Extensão Justa”, um doente de câncer vê a chance
de sobreviver ao fazer um acordo improvável com um camelô à beira da estrada.
Ele nota que o vendedor nada vende, apenas fica sentado em uma cadeira e expõe sobre
uma mesinha uma plaquinha com os dizeres: “extensão justa” que, no caso, se
trata de oferecer um período a mais daquilo que mais se deseja. Pode ser tempo,
dinheiro, carreira, amor, saúde. Claro que existe uma contrapartida, e deve
haver uma transferência. No caso, alguém deve ser prejudicado, uma pessoa que
seja odiada pelo beneficiado. Após uma breve hesitação ele afirma que é seu amigo de
infância que deve receber tudo de ruim que paira sobre ele. Afinal, roubou sua
primeira namorada e é muito mais bem sucedido economicamente. Com o pacto o
câncer vai embora, sua vida financeira melhora, e seu amigo perde a esposa – a
mesma antiga namorada – de câncer, um de seus filhos morre num acidente e outro
fica seriamente doente, além da vida financeira da família piorar muito. O que espanta
nesta história é como o personagem que faz o acordo com o Diabo é insensível a
tudo o que acontece com seu amigo, com o qual ele continua convivendo. Ele vai
ficando mais saudável e feliz quanto mais desgraças acontecem com o objeto de
seu ódio.
Como observa Stephen King no seu
ótimo posfácio, a pergunta recorrente que inspirou cada uma destas histórias é
a de que ninguém conhece verdadeiramente outra pessoa, por mais presente,
íntima ou amada que ela seja. Claro que o desconhecimento não precisa ser sobre
algo necessariamente ruim, mas esta é a premissa do livro, quer dizer, mesmo de
quem jamais desconfiaríamos coisas muito más podem surgir. É o que descobre a
mulher brutalmente morta em “1922”; o que a escritora descobre sobre si mesma
após ser violentada; a esposa feliz que, de repente descobre que seu marido é o
oposto radical do que acreditava; e o cara que também descobre em si mesmo o
bem estar de fazer o mal a alguém que sempre lhe foi bem próximo. Ora, em
“1922” o tema motivador das ações é a ganância; em “Gigante do Volante” é a
vingança; em “Extensão Justa” é a inveja e em “Um Bom Casamento” estamos diante
de uma situação de ilusão, de auto-engano.
Para nossa fortuna Stephen King
escreve muito e é profusamente publicado no Brasil. A qualidade de sua obra é
acima da média, ou seja, mesmo um King menor muitas vezes é mais interessante
do que outros autores no melhor de sua forma. Escuridão Total sem Estrelas recebeu os prêmios Bram Stoker e
British Fantasy em 2010 na categoria “melhor coletânea”, e se distingue como um
grande momento do autor. As quatro narrativas propõe uma questão fundamental e
como cada personagem vai responder de acordo com suas circunstâncias e motivações.
Um livro com histórias poderosas, que desestabiliza os personagens,
transformando de forma definitiva suas vidas e, sobretudo, incomoda e perturba
o leitor. Quantos escritores são capazes disso?
–
Marcello Simão Branco
Ótima resenha! Li esta coletânea do King esse ano (a versão original em pocket book traz mais um conto) e gostei muito também.
ResponderExcluirMarcelo Augusto Galvão
http://galvanizado.wordpress.com