Do Outro
Lado do Sonho (The Lathe of Heaven), Ursula K. Le Guin, 169
páginas. Tradução de Maria Amélia Silva. Capa de Arcângela Marques. Lisboa:
Edições 70 – Coleção Orion Clássicos da Ficção Científica, n. 3, 1991.

Destas profundas e recorrentes
perguntas, que todos já nos fizemos algumas vezes, trata o romance Do Outro
Lado do Sonho (The Lathe of Heaven), da Ursula K. Le Guin. Livro
publicado originalmente em 1971, que nos mostra a autora no auge, em pleno
exercício de sua prosa e de sua criatividade.
Foram publicadas duas edições em
Portugal. Esta ao qual tomei por base para esta resenha, e O Flagelo dos
Céus, número 64 da coleção Europa-América. E vale lembrar que o romance ganhou uma versão para o cinema em 1980, dirigida pela dupla David Loxton e Fred Barzik, finalista do Prêmio Hugo de 1981.
George Orr é um sujeito
atormentado, sem paz. Ele sonha. E dos seus sonhos criam-se novas realidades,
das quais ele é o único elo com a realidade passada. Em desespero, passa a
drogar-se, é internado e lhe recomendam um tratamento voluntário com um
psiquiatra, um especialista em sonhos.
Logo após a primeira sessão, a
realidade já estava alterada. No lugar de um quadro do Monte Hood que antes
estava na parede do consultório, encontra-se agora o quadro de um cavalo,
conforme lhe fora recomendado a sonhar pelo Dr. Haber. A partir daí, de sessão
em sessão as transformações irão se acentuar de maneira radical. Isso porque
George percebe que o Dr. Haber é testemunha das modificações que ele faz ao
mundo, com seu sonho. O perturbado sonhador procura a ajuda de uma advogada.
Ela comparece a uma sessão com o pretexto de atestar a idoneidade do tratamento
do doutor, mas acaba por testemunhar também o nascimento de um novo e radical
mundo: da janela do consultório, onde antes olhava imponentes edifícios da
metrópole de Portland, via-se agora uma paisagem bucólica com casas modestas e
muita vegetação.
O Dr. Haber potencializa os
sonhos de George usando uma máquina que ele chama de aumentador. Hipnotisa o
paciente, conecta eletricamente o seu cérebro com o amplificador de sonhos, e
transforma em nova realidade seus mais desvairados desejos e visões de mundo.
Tenta transformar a realidade em suas utopias, terminando com as guerras, com o
racismo. Mas os efeitos colaterais são terríveis e desestruturam as vidas de
milhões de pessoas, suas memórias, seus destinos e suas existências. Até a
figura de extraterrestres benevolentes vindos de Aldebarã cabe em seus delírios
a fim de acomodar seus projetos de reconstrução do mundo.
Mas George continua sonhando e
mudando a realidade. Só que agora de forma induzida e controlada, servindo de
instrumento para um cientista que quer se fazer de Deus. Ele procurará se
insurgir contra o Dr. Haber, nem que com isso nada reste de qualquer fiapo,
qualquer noção de continuidade entre um sonho e uma realidade e desta para uma
próxima realidade.
Le Guin imprime um bom ritmo ao
texto, não se voltando para uma interpretação mais densa e complexa da natureza
do sonho e da realidade, procurando deixar a própria narração dos
acontecimentos falar por si. Nem a fonte do poder de George para modificar a
realidade nos é explicada. Cabe ao leitor, então, mergulhar nas mais livres
interpretações sobre as conseqüências dos acontecimentos da história, bem como se
voltar à procura de uma compreensão da relação que pode existir de fato entre
sonho e realidade.
George é um sujeito sem paz. O
mundo não tem paz. Haber se entusiasma de forma megalômana e passa a dispensar
George. O cura: pede para ele sonhar que não terá mais sonhos com modificações
da realidade. O próprio Haber se conecta ao aumentador e passa a transformar a
realidade a partir de seus sonhos. O mundo entra em colapso. Das cinzas, a
sociedade é reconstruída, e George conforma-se em viver e deixar viver. Sem
tentar entender o que, de fato, não pode ser entendido em sua plenitude. Mas
George ainda está amargurado e sem paz. O alívio lhe aparece no fim da história
quando reencontra a advogada, por quem se apaixonara e casara em uma outra
realidade. A cena final é de forte simbolismo, com Le Guin nos deixando
habilmente a indagação do que terá sido do mundo e da vida de George Orr. Seja
em que realidade for. Uma história marcante e inesquecível.
– Marcello Simão Branco
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