Esta coletânea
de Martha Argel reúne sete contos que podemos classificar entre a fantasia
tradicional e a sombria (dark fantasy), mas antes de analisar as
histórias, chamo a atenção para a qualidade gráfica e editorial do livro. Uma
bela ilustração de capa de Camila Mesquita, plenamente de acordo com a proposta
da obra. Também a diagramação moderna e o tamanho do volume, em formato pocket,
não muito habitual no mercado editorial brasileiro. Vale destacar ainda a
pequena introdução da autora, didática e inteligente, situando e justificando o
tema central da obra, a magia, tanto para o mundo racional, como para o
fantástico.
A noveleta
“Amarelo... Amarelo” abre a coletânea. Nos mostra uma mulher que é obrigada a
cuidar temporariamente de sua sobrinha de apenas três anos, depois da morte de
seus pais em um acidente de carro. Pessoa solitária e egoísta, detesta a
situação mas aos poucos se impressiona com uma certa semelhança da criança com
ela própria. Contudo, o elemento fantástico da trama é a cor amarela. Beatrix,
a menina, só gosta de amarelo e tem poderes de transformar o que deseja nesta
cor.
A narrativa
acontece com muita desenvoltura e segurança, o que a torna interessante e
agradável de se ler. O tema em si não é tão criativo e é possível que nas mãos
de um autor menos sensível deixasse a desejar, o que não é o caso da autora.
O conto
seguinte é uma pérola, “Eu Detesto Futebol”. Um grupo de bruxas com nomes de
flores e que se reúnem em um Jardim, resolvem acabar com o futebol, pois é um
rival com a qual não podem competir pela atenção de seus maridos. Contudo, há
os efeitos inesperados e invariavelmente perversos, afinal retirado o futebol
fica o quê no lugar?
Pois seus
maridos inventaram outras ocupações ‘desagradáveis’, como clube do charuto,
boxe e pinturas psicodélicas nas paredes da casa, para suprir a ausência do tão
amado esporte bretão. Assim, elas resolvem recolocar as coisas nos seus lugares,
pois, afinal, o problema não é, de fato, o futebol. Narrado em primeira pessoa
por uma das bruxas, o texto remete diretamente ao contraste entre o universo subjetivo
e misterioso das mulheres e o universo expansivo e mundano dos homens.
Escrito em
1974, a história é rica por suas nuances, como os costumes alimentares e
culturais da época, especialmente nostálgico para quem a viveu. Gostaria muito
de ter publicado este conto em minha antologia Outras Copas, Outros Mundos
(Ano-Luz, 1998) e, se tiver a chance de relançá-la um dia, esta história está,
desde já, selecionada.
“O Verdadeiro
Poder” vem a seguir e nos conta sobre a experiência de uma bruxa que ajudou um
bruxo a salvar sua amada das garras de um demônio. A história se ancora em duas
máximas: 1) Em troca do poder que possui os bruxos não podem amar e 2) o amor é
o verdadeiro poder. Ou seja, eles alteram a realidade exterior com poderes
sobrenaturais, mas o poder interior de transformação só os humanos mortais têm.
É um conto em
que o fantástico assume o primeiro plano, embora trabalhe com temas humanos,
como o amor e a solidão. Apesar do texto correto, a história não entusiasma,
talvez por parecer um pouco forçada no propósito de mostrar como poderia ser a
atividade de feiticeiros em nosso cotidiano contemporâneo.
O que já não é
o caso do próximo conto, “O Olho Vermelho”. Esta uma história mais pendente
para o horror, no qual o sobrenatural está a espreita, se insinua, mas não de
forma explícita, sempre deixando uma dúvida no ar. E isso enriquece a trama. Uma velhinha
que aluga um quarto, nele instala um alarme, o tal do ‘olho vermelho’, que
acende quando algo se movimenta no interior do cômodo. Pois um novo inquilino
fica obcecado, depois de ver no escuro, sozinho e deitado em sua cama, o tal do
olho acender, indicando que alguma coisa estaria dentro do aposento. Sem saber
se é sonho ou realidade, o fato é que ele não é o primeiro a passar por esta
experiência no quarto.
“Final Feliz” é
uma espécie de sátira ao clichê do título e da vida supostamente idílica e
romântica que uma jovem princesa teria. Sim, porque ao se opor aos estereótipos
– não é bonita e encantadora – procura um Bruxo da Mata para conseguir um par.
A exemplo de
“Verdadeiro Poder” esta é uma história plena de fantasia. E, como tal, nada
acrescenta, pois é apenas uma variação sobre temas por demais repetidos, ainda
que tente, em seu desfecho, um final feliz diferente do convencional. Talvez
mais atinado com a mulher emancipada desde começo de século XXI.
A mesma
questão da ‘variação sobre um tema’ é encontrada no próximo relato, justamente
o que dá o título ao livro. Mas “O Livro dos Contos Enfeitiçados’ – outra
história dark fantasy –, consegue ter um interesse próprio, nos jogos de
imagens, no horror insinuado, no conceito sempre fascinante da biblioteca
gigantesca e misteriosa, que abriga um livro capaz de horrores e encantamentos.
Este conto
demonstra a opção da autora por um público que creio, já lhe seja cativo, ou
esteja em vias de: o leitor jovem, adolescente ou recém-adulto. Mas insisto que
os temas não precisam, necessariamente, serem baseados em repetições com teores
infantilóides. É possível escrever para qualquer público de maneira criativa e
provocadora. O que não é o caso da terceira história com este perfil no livro,
embora, como dito acima, ela seja boa por si mesma, graças ao despojamento
narrativo com que ela é trabalhada.
Uma novela fecha
a coletânea, “Sofia”. Situa-se nos tempos atuais, no qual uma jovem é
surpreendida por um estranho, ao ser abordada e raptada. E ele lhe diz ainda
que ela é uma bruxa concebida para cumprir uma profecia. No mundo desta e de
outras histórias deste volume fica clara a defesa da ideia de que humanos
mortais e bruxos poderosos convivem. Só que a maioria dos primeiros não crê na
existência dos bruxos. Ou quando acreditam, os veem de forma pejorativa e
perigosa. De outro lado, nem todos os bruxos sabem que são bruxos e tomam-se
apenas como humanos, como o caso de Sofia. Talvez haja nesta segunda ideia a
tentativa de agradar uma comunidade de pessoas que acredite que possua poderes
sobrenaturais, como quiromantes e clarividentes. Não é preciso pesquisar muito
com pessoas do nosso próprio entorno social para achar alguém que crê ter tais
talentos. Uma busca na internet, então, revela diversas comunidades de pessoas
que se creem especiais.
Sofia seria
uma espécie de representante delas? Talvez, tanto é que na história tudo já
estava escrito para chegar a este momento crucial de sua vida. Que é uma
batalha duríssima com uma velha e poderosa bruxa. Esta, como se percebe no
texto, maligna, sim, pois elas também existiriam.
Em resumo, sob
a defesa deste argumento ou não, estamos diante de mais uma história com
caracterização tradicional. O interesse maior pode estar na qualidade do texto
da autora, de fato, novamente em alta, como exemplificado no primeiro
parágrafo:
“O sol filtrava-se, oblíquo e persistente, entre as nuvens
escuras, e dava mais vida ao verde da grama e às azaleias e hibiscos floridos.
No fim da tarde de sábado, parecia que a praça tentava impregnar-se ao máximo
da energia luminosa, como se soubesse que chegava ao fim a breve trégua da
chuva naquele inverno especialmente úmido.” (página 109).
Tem uma bela
poesia por trás dos motivos naturais, com palavras e frases bem escolhidas, o
que faz com que, de saída e de forma irresistível, sejamos despertados pelo
prazer da leitura e interesse pela história, mesmo que logo depois nos
deparemos com mais uma narrativa com tema padrão e sem maiores impactos.
Em síntese
esta é uma coletânea de qualidade razoável em temos temáticos e boa em termos
literários. Martha Argel sugere ser uma escritora melhor do que os temas da
maioria das histórias que mostra neste livro. Escreve bem, tem sensibilidade
apurada, um estilo ora despojado, ora coloquial, que agrada a leitura e
transmite verossimilhança. Por todas estas qualidades é possível esperar que
nos apresente no futuro uma obra que traga um maior equilíbrio entre o conteúdo
e seu estilo. Talvez com temas mais maduros ou com tratamentos menos
convencionais.
– Marcello Simão Branco
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