sábado, 16 de julho de 2016

O Livro dos Contos Enfeitiçados

 O Livro dos Contos Enfeitiçados, Martha Argel. 166 páginas. São Paulo: Landy Editora – Coleção “Novos Caminhos: Literatura Fantástica”, 2006.


Esta coletânea de Martha Argel reúne sete contos que podemos classificar entre a fantasia tradicional e a sombria (dark fantasy), mas antes de analisar as histórias, chamo a atenção para a qualidade gráfica e editorial do livro. Uma bela ilustração de capa de Camila Mesquita, plenamente de acordo com a proposta da obra. Também a diagramação moderna e o tamanho do volume, em formato pocket, não muito habitual no mercado editorial brasileiro. Vale destacar ainda a pequena introdução da autora, didática e inteligente, situando e justificando o tema central da obra, a magia, tanto para o mundo racional, como para o fantástico.
    A noveleta “Amarelo... Amarelo” abre a coletânea. Nos mostra uma mulher que é obrigada a cuidar temporariamente de sua sobrinha de apenas três anos, depois da morte de seus pais em um acidente de carro. Pessoa solitária e egoísta, detesta a situação mas aos poucos se impressiona com uma certa semelhança da criança com ela própria. Contudo, o elemento fantástico da trama é a cor amarela. Beatrix, a menina, só gosta de amarelo e tem   poderes de transformar o que deseja nesta cor.
A narrativa acontece com muita desenvoltura e segurança, o que a torna interessante e agradável de se ler. O tema em si não é tão criativo e é possível que nas mãos de um autor menos sensível deixasse a desejar, o que não é o caso da autora.
      O conto seguinte é uma pérola, “Eu Detesto Futebol”. Um grupo de bruxas com nomes de flores e que se reúnem em um Jardim, resolvem acabar com o futebol, pois é um rival com a qual não podem competir pela atenção de seus maridos. Contudo, há os efeitos inesperados e invariavelmente perversos, afinal retirado o futebol fica o quê no lugar?
     Pois seus maridos inventaram outras ocupações ‘desagradáveis’, como clube do charuto, boxe e pinturas psicodélicas nas paredes da casa, para suprir a ausência do tão amado esporte bretão. Assim, elas resolvem recolocar as coisas nos seus lugares, pois, afinal, o problema não é, de fato, o futebol. Narrado em primeira pessoa por uma das bruxas, o texto remete diretamente ao contraste entre o universo subjetivo e misterioso das mulheres e o universo expansivo e mundano dos homens.
     Escrito em 1974, a história é rica por suas nuances, como os costumes alimentares e culturais da época, especialmente nostálgico para quem a viveu. Gostaria muito de ter publicado este conto em minha antologia Outras Copas, Outros Mundos (Ano-Luz, 1998) e, se tiver a chance de relançá-la um dia, esta história está, desde já, selecionada.
     “O Verdadeiro Poder” vem a seguir e nos conta sobre a experiência de uma bruxa que ajudou um bruxo a salvar sua amada das garras de um demônio. A história se ancora em duas máximas: 1) Em troca do poder que possui os bruxos não podem amar e 2) o amor é o verdadeiro poder. Ou seja, eles alteram a realidade exterior com poderes sobrenaturais, mas o poder interior de transformação só os humanos mortais têm.
     É um conto em que o fantástico assume o primeiro plano, embora trabalhe com temas humanos, como o amor e a solidão. Apesar do texto correto, a história não entusiasma, talvez por parecer um pouco forçada no propósito de mostrar como poderia ser a atividade de feiticeiros em nosso cotidiano contemporâneo.
     O que já não é o caso do próximo conto, “O Olho Vermelho”. Esta uma história mais pendente para o horror, no qual o sobrenatural está a espreita, se insinua, mas não de forma explícita, sempre deixando uma dúvida no ar. E isso enriquece a trama. Uma velhinha que aluga um quarto, nele instala um alarme, o tal do ‘olho vermelho’, que acende quando algo se movimenta no interior do cômodo. Pois um novo inquilino fica obcecado, depois de ver no escuro, sozinho e deitado em sua cama, o tal do olho acender, indicando que alguma coisa estaria dentro do aposento. Sem saber se é sonho ou realidade, o fato é que ele não é o primeiro a passar por esta experiência no quarto.
     “Final Feliz” é uma espécie de sátira ao clichê do título e da vida supostamente idílica e romântica que uma jovem princesa teria. Sim, porque ao se opor aos estereótipos – não é bonita e encantadora – procura um Bruxo da Mata para conseguir um par.
    A exemplo de “Verdadeiro Poder” esta é uma história plena de fantasia. E, como tal, nada acrescenta, pois é apenas uma variação sobre temas por demais repetidos, ainda que tente, em seu desfecho, um final feliz diferente do convencional. Talvez mais atinado com a mulher emancipada desde começo de século XXI.
     A mesma questão da ‘variação sobre um tema’ é encontrada no próximo relato, justamente o que dá o título ao livro. Mas “O Livro dos Contos Enfeitiçados’ – outra história dark fantasy –, consegue ter um interesse próprio, nos jogos de imagens, no horror insinuado, no conceito sempre fascinante da biblioteca gigantesca e misteriosa, que abriga um livro capaz de horrores e encantamentos.
     Este conto demonstra a opção da autora por um público que creio, já lhe seja cativo, ou esteja em vias de: o leitor jovem, adolescente ou recém-adulto. Mas insisto que os temas não precisam, necessariamente, serem baseados em repetições com teores infantilóides. É possível escrever para qualquer público de maneira criativa e provocadora. O que não é o caso da terceira história com este perfil no livro, embora, como dito acima, ela seja boa por si mesma, graças ao despojamento narrativo com que ela é trabalhada.
   Uma novela fecha a coletânea, “Sofia”. Situa-se nos tempos atuais, no qual uma jovem é surpreendida por um estranho, ao ser abordada e raptada. E ele lhe diz ainda que ela é uma bruxa concebida para cumprir uma profecia. No mundo desta e de outras histórias deste volume fica clara a defesa da ideia de que humanos mortais e bruxos poderosos convivem. Só que a maioria dos primeiros não crê na existência dos bruxos. Ou quando acreditam, os veem de forma pejorativa e perigosa. De outro lado, nem todos os bruxos sabem que são bruxos e tomam-se apenas como humanos, como o caso de Sofia. Talvez haja nesta segunda ideia a tentativa de agradar uma comunidade de pessoas que acredite que possua poderes sobrenaturais, como quiromantes e clarividentes. Não é preciso pesquisar muito com pessoas do nosso próprio entorno social para achar alguém que crê ter tais talentos. Uma busca na internet, então, revela diversas comunidades de pessoas que se creem especiais.
     Sofia seria uma espécie de representante delas? Talvez, tanto é que na história tudo já estava escrito para chegar a este momento crucial de sua vida. Que é uma batalha duríssima com uma velha e poderosa bruxa. Esta, como se percebe no texto, maligna, sim, pois elas também existiriam.
Em resumo, sob a defesa deste argumento ou não, estamos diante de mais uma história com caracterização tradicional. O interesse maior pode estar na qualidade do texto da autora, de fato, novamente em alta, como exemplificado no primeiro parágrafo:

“O sol filtrava-se, oblíquo e persistente, entre as nuvens escuras, e dava mais vida ao verde da grama e às azaleias e hibiscos floridos. No fim da tarde de sábado, parecia que a praça tentava impregnar-se ao máximo da energia luminosa, como se soubesse que chegava ao fim a breve trégua da chuva naquele inverno especialmente úmido.” (página 109).

     Tem uma bela poesia por trás dos motivos naturais, com palavras e frases bem escolhidas, o que faz com que, de saída e de forma irresistível, sejamos despertados pelo prazer da leitura e interesse pela história, mesmo que logo depois nos deparemos com mais uma narrativa com tema padrão e sem maiores impactos.
    Em síntese esta é uma coletânea de qualidade razoável em temos temáticos e boa em termos literários. Martha Argel sugere ser uma escritora melhor do que os temas da maioria das histórias que mostra neste livro. Escreve bem, tem sensibilidade apurada, um estilo ora despojado, ora coloquial, que agrada a leitura e transmite verossimilhança. Por todas estas qualidades é possível esperar que nos apresente no futuro uma obra que traga um maior equilíbrio entre o conteúdo e seu estilo. Talvez com temas mais maduros ou com tratamentos menos convencionais.

Marcello Simão Branco

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