Há alguns anos a cultura brasileira de fc&f ignoraria qualquer título que estivesse alinhado com o mercado infanto-juvenil. É claro que isso nunca passou de chauvinismo de fã e ele ainda existe e se aplica em diversos segmentos do fandom, mas desde há algum tempo tem se tentado também prestar atenção a esse tipo de literatura que, de mais a mais, não tem nada de desprezível, ao contrário, identifica-se como uma luva com o tipo mais promissor de leitores de fc&f, o adolescente.
Por isso mesmo não é de se admirar que uma das mais completas autoras brasileiras de fc&f seja uma frequente colaboradora de coleções infantojuvenis. Simone Saueressig é gaúcha de Novo Hamburgo, com muitos livros publicados por editoras importantes, tais como O palácio de Ifê (L&PM, 1989), A fortaleza de cristal (L&PM, 1993), A máquina fantabulástica (Scipione, 1997) e Receita para um dragão (Scipione, 1999), entre outros.
Simone confessa ter sido obrigada a publicar Um vulto nas trevas sozinha, pois as editoras não se dispunham a fazê-lo. Temos que agradecer à autora a iniciativa por publicar este que certamente é um de seus melhores trabalhos, dentro de uma galeria de obras maravilhosas.
Trata-se de uma novela de mistério com características de horror sobrenatural gótico, devidamente adaptada ao moderno ambiente brasileiro urbano e claramente orientada ao leitor jovem, ainda que tenha apelo bastante forte ao leitor adulto pela qualidade da narrativa.
É a história de Beto, um garoto de cerca de dez anos que, junto com seu primo Inácio, de 14 anos, vai passar o final do ano com o avô, Seu Chico, num casarão tão velho quanto estiloso em Gramado. Beto já passara outras férias ali e guardava muitas memórias e impressões das outras estadas.
Seu Chico é viúvo e mora apenas com sua filha adotiva Clarisse, uma jovenzinha muito magra e de aparência débil, mas que realizava praticamente todas as tarefas domésticas no casarão.
Logo na primeira noite, Beto tem uma experiência bizarra que vai pautar todo o drama da narrativa. Sem sono, o garoto levanta tarde da noite para beber água e, da janela da cozinha, avista um vulto diáfano dançar no jardim, flutuando ao redor do poço e desaparecendo num salto. De quem seria aquele fantasma? Por que rondava a casa nas noites claras de verão?
Aterrorizado, Beto passa a ver assombrações em todas as partes do casarão, que se presta perfeitamente a essas coisas. Desse modo, o casarão assume o posto de quinto personagem da história, com suas salas vazias, portas rangedoras, gradil enferrujado e muitas, muitas frestas e goteiras.
Numa das explorações no segundo pavimento da casa, fechado ao uso por estar demasiadamente deteriorado pela falta de manutenção, os garotos encontram um embrulho misterioso que os leva a crer que seja um videogame que o avô estaria escondendo para lhes fazer uma surpresa no Natal. Acreditando que poderão passar os dias divertindo-se com o presente do avô, decidem pedir o adiantamento da entrega do mesmo. Sem alternativa, Seu Chico consente.
Beto e Inácio estão certos em quase tudo. Sim, aquele era mesmo o presente de Natal do avô. Sim, eles vão se divertir muito (talvez um pouco mais do que isso), mas... não é um videogame.
Ao abrirem o pacote, encontram um livro enorme e pesado. Não um livro qualquer, mas um antigo livro de recortar e montar a miniatura de cartão de um casarão chamado "Das Voguel Haus" em alemão - "A casa dos pássaros" em português – exatamente onde eles estavam hospedados naquele momento, o mesmo velho casarão de seu avô.
Desenxabidos e sem muito mais para fazer, Beto e Inácio passam a ajudar o avô a montar a maquete, uma representação exata em cada detalhe do projeto original do casarão.
Eles não sabem, mas esse quebracabeças guarda a resposta da visão assustadora que Beto teve naquela noite de insônia e que continua a atormentar-lhe a imaginação.
Todos os mistérios serão desvendados a seu tempo, não sem uma boa dose de coragem, desprendimento e afeição de ambos os garotos com relação ao seu avô e sua prima que, ao início da história, pareciam tão sem graça.
Um vulto nas trevas é uma história de amadurecimento, de um rito de passagem. Para Beto é a passagem da infância para a adolescência. Para Inácio, a passagem da adolescência para a vida adulta. E para todos os leitores, é uma história de como os laços humanos mais diáfanos são reforçados na tragédia.
Simone trata cada um dos personagens com a maturidade de uma escritora experiente. Todos são perfeitamente caracterizados, críveis e verdadeiros em cada detalhe. Os cenários são descritos com clareza e o leitor percebe-se caminhando pelos corredores da Casa dos Pássaros junto aos garotos, explorando seus recônditos mais obscuros, janelas e portas e móveis que bem poderiam abrir para dimensões tão loucas e perigosas como um guardarroupas de C. S. Lewis ou um buraco no jardim de Lewis Carrol.
Só uma coisa a lamentar neste livro de Simone: ele é muito breve. Esse era um livro que deveria ter mais páginas, só para se demorar a acabar. Prova definitiva que é mal negócio ignorar qualquer dos ambientes criativos da nossa literatura, sob o risco de se perder a melhor parte.
— Cesar Silva
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