Já recomendavam em 1922 os participantes da Semana de Arte Moderna que o caminho da identidade da arte brasileira deveria passar pela deglutição e posterior digestão dos produtos culturais estrangeiros. É inevitável que a cultura brasileira tenha que fazer isso, porque somos um povo formado pela justaposição de culturas locais e estrangeiras de quase todos os continentes. Não há praticamente nada brasileiro que não tenha pelo menos um dos pés em alguma tradição cultural ou mitológica estrangeira, em maior ou menor grau de dependência. Com a fc não poderia ser diferente e ainda mais com a fc em quadrinhos.
Temos uma tradição no que se refere a arte fantástica, mas ela não é suficientemente madura, tampouco foi suficientemente explorada, ao ponto de ter digerido por completo as influências estrangeiras, que aparecem vivamente nos produtos modernos, como é o caso de Quebra-Queixo.
Esta hq de fc apareceu pela primeira vez em 1991, na revista Pau-Brasil da Editora Vidente, que apresentou aos leitores várias séries, personagens e autores novos. Marcelo Campos, matogrossense de Três Lagoas, criador de Quebra-Queixo, apresentava desde então um potencial promissor como artista de quadrinhos. Já fizera carreira com personagens infantis nas revistas da editora Abril e desde 1989 fazia ilustrações para quadrinhos americanos. Campos foi um dos únicos que continuou a dedicar atenção ao seu personagem depois do cancelamento do periódico.
Quebra-Queixo é um super herói futurista que atua em Buracópolis, megalópole superpovoada, com altos níveis de desenvolvimento tecnológico e decadência moral. O herói é uma espécie de força da natureza, acionado pela polícia para manter tolerável a desordem da cidade. Brutal e sem qualquer escrúpulo, Quebra-Queixo manda porrada em tudo e em todos os que julgar merecedores do pesado punho da lei.
O clima geral das histórias é cômico e niilista, e remete ao seriado britânico Judge Dreed, ao seriado americano American Flagg e a vários trogloditas dos comics, tais como o Coisa, Hulk, Hellboy e similares.
Boas ideias de fc permeiam as aventuras de Quebra-Queixo. As histórias são crônicas urbanas extrapoladas: Buracópolis espelha desavergonhadamente os problemas da Grande São Paulo, que é, de fato, a personagem principal da história; Quebra-Queixo lá está apenas para permitir que conheçamos melhor as contradições deste absurdo urbano e essa boa sacada redime todo e qualquer pecado narrativo do autor.
Marcelo Campos convidou vários amigos para elaborarem as histórias que compões Quebra-Queixo Technorama, Volume 1. Ao todo são cinco histórias, três delas apresentam outros personagens que vivem nos bairros temáticos de Buracópolis: o ciborgue Zédulixo, o super técnico de manutenção Nego Simão, e a heroína virtual Abantesma Jones. Da mesma forma que Quebra-Queixo, estes paladinos são apenas coadjuvantes das maravilhas urbanas ensandecidas de Buracópolis.
"Seja você, sendo eu", com roteiro e desenhos de Marcelo Campos, abre o volume, recontando a primeira aventura do personagem publicada na Pau-Brasil. Foi totalmente refeita para incorporar as mudanças que o autor queria na história e para atualizar o estilo gráfico, uma vez que a versão anterior tendia mais para o pastiche de super heróis. A confusão se instala em Buracópolis quando a lei reconhece o direito das pessoas adotarem a identidade que bem entenderem, mesmo que sejam baseadas em personagens de ficção ou em pessoas reais, o que abre um perigoso precedente jurídico que precisa ser resolvido no tapa.
A segunda história é "Presente imperfeito" com roteiro de Octávio Cariello e desenhos de Rael Lyra. O ciborgue mutante Zédulixo, que é horroroso mas tem uma boa alma, tenta a seu modo ensinar uma jovem que há lugares em Buracópolis aonde pessoas "normais" não devem ir.
Abantesma Jobes é a protagonista de "A verdade confusa", com roteiro de Octávio Cariello e desenhos de Weberson Santiago. Abantesma é uma jovem milionária excêntrica que depois de testemunhar o assassinato de seus pais, guarda uma identidade secreta de paladina noturna – uma óbvia citação a você sabe quem. Sua zona de ação é uma espécie de mundo virtual que está um tanto confuso porque um vilão roubou a verdade.
"O ponto de fuga", com roteiro de Octávio Cariello e desenhos de Fernando Cintra, conta a história de Nego Simão, um técnico de manutenção de Buracópolis que, auxiliado por Andy, um novato na profissão, vai passar maus bocados para conter um vazamento de lubrificante que pode apagar a realidade.
O melhor episódio é o último, "Plano divino", com roteiro de Octávio Cariello e desenhos de Jefferson Costa. Mama Vodru, um pai de santo do mal, está fechando espiritualmente bairros inteiros de Buracópolis, transformando seus habitantes em zumbis. Para garantir que os impostos e taxas continuem fluindo, a administração da cidade envia Quebra-Queixo para acabar com a festa, mas os poderes de Mama Vodru são superiores: o herói é aprisionado e transformado em seu brinquedo sexual. Para sair dessa fria, só com a ajuda de outro pai de santo, o não tão poderoso mas do bem, Pai Santo Zambelê.
Cada história vem acompanhada de uma capa individual, textos de apresentação dos artistas do episódio e uma vinheta com um jogo de cartas inventado por Campos, citando regras tão absurdas quanto incompreensíveis, o que ilustra perfeitamente o conteúdo do trabalho.
Quebra-queixo é o que podemos chamar de uma fc pós cyberpunk muito refinada, que não tem pretensão se tornar um jogo de rpg ou um seriado de televisão. Não há racionalidade ou pontos de apoio e identificação confiáveis para o leitor dominar o universo de Quebra-Queixo. Neste caso, não é uma deficiência do autor, mas uma característica da urbanidade pós moderna em que tudo é tão fragmentado, incompleto e absurdo que a atitude arrasaquarteirão do herói passa a ser a única ligação com a normalidade conhecida. O que também não deixa de ser um absurdo.
— Cesar Silva
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