terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Mestre das Marés


Mestre das Marés, Roberto de Sousa Causo. Arte de capa de Vagner Vargas. 288 páginas. São Paulo: Devir, Coleção Pulsar, 2018.

 

Este romance é o terceiro livro de Causo em seu universo ficcional GalAxis, e o segundo da série As Lições do Matador. O primeiro foi Glória Sombria (2013), que mostra uma das primeiras missões do herói Jonas Peregrino, e o segundo traz as aventuras de Shiroma: Matadora Cyborgue (2015). Neste meio tempo outras histórias curtas de ambos os personagens foram escritas e publicadas. Mestre das Marés é, isto sim, o trabalho mais ambicioso deste universo até o momento, e um dos melhores já escritos pelo autor.

Nesta nova missão, o Capitão Jonas Peregrino e sua unidade dos Jaguares são enviados para resgatar uma estação internacional de pesquisa, em órbita do planeta Firedrake Gamma-M, depois que ela é atacada pelas naves-robôs dos tadais, a misteriosa espécie alienígena que combate a expansão humana pela Via-Láctea e ameaça também outras civilizações alienígenas.

Os cientistas se refugiam no planeta, mas ele é duramente atingido por jatos relativíscos que começam a ser disparados pelo buraco negro dos arredores, e que era pesquisado pelos cientistas. Gamma-M tem sua atmosfera eliminada e é só uma questão de tempo para que seja inteiramente destruído pela singularidade, chamada pelos cientistas terrestres de Firedrake, o dragão que cospe fogo. Contudo, talvez a metáfora mais apropriada seja a de Mestre das Marés, a tradução do nome Agu-Du’svarah, dado pela antiga civilização do Povo de Riv — vistos antes na noveleta “A Alma de Um Mundo”.[1]

Conforme os cientistas da estação Roger Penrose — homenagem antecipada ao físico inglês vencedor do Nobel em 2020 — e Peregrino irão constatar, o ataque ocorreu porque nos subterrâneos do planeta oculta-se uma instalação tadai secreta, com dispositivos de alta tecnologia e informações que podem ajudar na guerra travada pela Terra e seus aliados contra os inimigos. A missão, então, passa a ser muito mais complexa e perigosa do que inicialmente prevista, pois além de resgatar os cientistas, Peregrino deve levar o que puder do dispositivo.

Como já mostrado nas histórias anteriores, no século XXV embora a Terra tenha se expandido pela galáxia suas divisões políticas internas continuaram. Peregrino é um militar da Latinoamérica, a menos afluente das alianças continentais. As outras são a Aliança Transatlântico-Pacífico e os Euro-Russos. Em meio às rivalidades políticas, os humanos vivem nas chamadas Zonas de Expansão, com um grande interesse pela Esfera, a região mais rica e habitada por civilizações alienígenas, como o já citado Povo de Riv. De certa forma, é uma amostra de incrível poder econômico, militar e tecnológico dos humanos, conseguir se espalhar pela galáxia, se equiparando a outras civilizações que, ao que parece, conseguiram sua união política interna.

Mas este contexto político maior é abordado de forma indireta, por meio das estratégias e intrigas entre as alianças para obter poder e influência entre os humanos e, destes, com outros povos da galáxia. Em Mestre das Marés tal contexto se desdobra aos poucos, principalmente quando vai se tornando claro que não há um mesmo objetivo entre os cientistas e Peregrino, quanto a quem deve ser o destinatário das valiosas informações do dispositivo tadai.

Contudo, a grande força do romance é a missão em si. Um grupo de naves espaciais se aproxima de um planeta que está sendo devorado por um buraco negro e ainda sob a ameaça de extermínio pelos inimigos tadais. Como diz o subtítulo, a aventura é mesmo uma “jornada ao inferno de um mundo destruído por um buraco negro”. O enredo se concentra na descida a Gamma-M e o drama explícito de, mais do que resgatar os cientistas, obter as informações dos tadais a tempo de não ser destruído por Agu-Dus’varah.

Causo narra com detalhes extremos toda a sequência de acontecimentos dramáticos, em que o risco de morte é iminente a cada virada de página. Isso dá uma sensação de certa angústia ao leitor, de se estar diante de verdadeiras situações-limite, em que cada decisão pode ser a última. Neste livro, mais do que nas histórias anteriores, é mostrado um Peregrino mais sensível ao drama que o cerca. Não em relação à missão militar em si, mas ao contexto de estar diante da maior força conhecida da natureza, o buraco negro. A médica da equipe dos cientistas o diagnostica com a “Síndrome de Reinhardt”, com aumento intenso da ansiedade e numa situação próxima do pânico, diante da sensação de descontrole e morte iminente — a popular síndrome do pânico. Para um militar em comando isso poderia ser embaraçoso, mas Peregrino contorna a situação, ao se concentrar nos objetivos em si de resgatar os cientistas e o dispositivo tadai.

Mesmo que o aspecto dramático da trama seja evidente, por vezes, é preciso um esforço do leitor em acompanhar capítulos com descrições detalhadas dos aspectos científicos e militares envolvidos na missão. Causo mostra que pesquisou muito para obter um resultado convincente, principalmente sobre os conceitos de Física relativos à dinâmica difícil de um buraco negro. Se ficasse apenas neste aspecto o romance já chamaria a atenção como uma peça de ficção científica hard extrema, talvez só com paralelo com os escritos de Jorge Luiz Calife, em seu Universo da Tríade. Mas em meio a este contexto mais árido, há a dimensão humana do sofrimento, entremeado com seguidas citações de Peregrino de trechos dos poemas de Dante Alighieri (1265-1321), no mergulho poético de extrema força simbólica religiosa de sua obra A Divina Comédia (1304-1311), em especial na seção relativa ao “Inferno”. Embora seja de se pensar como Peregrino fosse um especialista numa obra como essa, por outro lado é parte da densidade de um personagem que vai além das aparências. Neste sentido, tais paralelos entre o que ele e seus comandados viveram nas entranhas de um planeta prestes a ser destruído e as imagens poéticas de Dante, conferem uma dimensão épica à aventura.

Outro diferencial é a presença de uma jornalista que foi destacada para escrever um perfil nada amigável de Peregrino. Por cerca de metade do livro, as seções são entremeadas com a missão militar em si e as considerações pessoais nada simpáticas de Camila Lopes ao personagem de sua reportagem. Chega a causar incômodo a desconfiança da jornalista, para quem já acompanhou a postura ética de Peregrino em outras histórias, mas, como irá ser revelado, tudo fazia parte de um esquema oculto para prejudicar o prestígio de um militar que obteve grandes vitórias contra os tadais em missões anteriores.

Mestre da Marés é um dos melhores romances hard da ficção científica brasileira. Não que haja muitos neste subgênero entre nós, mas, como já disse, o autor é eficaz em trabalhar de forma didática tantos conceitos, justificando-os como necessários para o tipo de história que está sendo narrada, e tornando palatável para o leitor. O romance ainda é complementado por uma seção de “anexos”, com várias informações e curiosidades sobre o Universo GalAxis. Trabalho caprichado.

Apesar de ser o maior texto já escrito sobre este universo, muitas questões são deliberadamente deixadas em aberto com a conclusão do romance. As informações do dispositivo tadai foram realmente perdidas? A que interesses de fato serviam os cientistas da Roger Penrose? Qual o possível papel das outras alianças terrestres rivais da Latinoamérica? Quais os segredos do misterioso Povo de Riv, possivelmente o maior aliado dos humanos, mas com seus próprios interesses na guerra? Além, é claro da persistência do mistério dos próprios tadais. É um empolgante universo ficcional em construção, que só instiga o leitor a continuar a acompanhar as próximas aventuras.

Marcello Simão Branco

 * * *

Agora em janeiro de 2024, o Universo GalAxis completa 15 anos. Para comemorar a data está disponível quatro papéis de parede ilustrados por Vagner Vargas. Podem ser baixados gratuitamente: http://universogalaxis.com.br/universo-galaxis-faz-15-anos-em-2023/

 


[1]     Publicado primeiro na antologia Space Opera: Jornadas Inimagináveis em uma Galáxia não Muito Distante, organizada por Hugo Vera e Larissa Caruso. Editora Draco, 2012.


Um comentário:

  1. Muito agradecido pela resenha aprofundada e positiva. Grato, em especial, pela comparação com Calife.

    ResponderExcluir