segunda-feira, 1 de março de 2021

Degelo em 2157

Degelo em 2157 (La Peur Géante), Stefan Wul. Tradução de André Varga. Capa de Lima de Freitas. 155 páginas. Lisboa: Edição Livros do Brasil, Coleção Argonauta, no. 76, 1963. Lançado originalmente em 1957.


   Em 2157 um estranho fenômeno físico aparece. A água não congela mais a zero grau centígrado, mas cada vez a temperaturas mais negativas.

Bruno Daix, um engenheiro, é designado pelo chefe de uma empresa de refrigeradores em que trabalha, para ir até Paris investigar o caso com um eminente cientista. Mas este fenômeno foi apenas um prenúncio para a catástrofe que se seguiu. Toda a superfície da Terra foi invadida por maremotos gigantescos, provocados pelo derretimento súbito das calotas polares. Em especial o hemisfério norte ficou quase todo abaixo dos oceanos que subiram em ondas de quilômetros de altura.

Contudo, no século XXII, parte importante da afluência econômica se situa na África, principalmente do centro para o norte. É nesta região que se situa Afrança, um dos países mais poderosos, que é de onde Bruno Daix partiu, mais precisamente da capital In Salah.

No romance anterior de Wul, Missão em Sidar (Rayouns por Sidar) – resenhado aqui –, já havia sido mostrado que o personagem principal, Lorrain, também era um afrancês. E isso em 2023, quando a história acontece. Mas Wul não deu nenhuma explicação do que significava este prefixo junto à nacionalidade francesa. Pois bem. Afrança é a extensão do território francês pelo continente africano, tomando todo o Magreb e o Sahara, a partir da presença do país em sua colônia original, a Argélia. Wul sugere, então, que a presença imperialista francesa não apenas iria permanecer, mas se expandir, transformando a região numa das mais prósperas do planeta, em que triunfaria a francofonia. Assim, ao longo do livro, Wul expõe com detalhes este novo país de 500 milhões de habitantes, com cerca de dez vezes mais a população francesa dos anos 1950. Pelo exposto, portanto, Wul teria sido um defensor da manutenção da ocupação de seu país na Argélia, que tinha na época um vigoroso processo de resistência que, por fim, permitiu sua emancipação em 1962.

De volta a 2157 – aliás o título da Argonauta é bem melhor que o original, em português “medo gigante” –, em meio à catástrofe marítima Afrança se torna a nação que irá liderar um processo de recuperação econômica e militar, pois eis que surge no céu, logo após os tsunamis, dezenas de discos voadores ao redor do mundo.

Com isso, sai de cena a primeira hipótese de um colapso climático. A Terra teria sofrido uma invasão extraterrestre? Rapidamente se descobre que não, pois as naves vem, na verdade, do fundo dos mares. Sim, uma civilização aquática inteligente resolveu provocar a subida das águas para ocupar e dominar por inteiro o planeta, como reação radical à super exploração dos oceanos e redução dos habitats das espécies marinhas, pela caça, seca progressiva e poluição generalizada. De certa forma, há ecos do clássico A Guerra das Salamandras (War with the Newts) (1937), de Karel Capek.

Bruno Daix irá fazer parte dos esforços de reação militar – na condição de engenheiro e campeão de natação na juventude – adentrando num exército multinacional, que irá tentar revidar o ataque desfechado pelos torpedos, os seres aquáticos inteligentes, semelhantes às arraias.

Boa parte da história se move, então, nos preparativos para a reação bélica aos torpedos. Neste processo, alguns são capturados vivos e alguns linguistas são convocados para tentar decifrar alguma forma de comunicação com eles. Mas é Ki-Sien Tchei, a namorada de Daix, uma jornalista chinesa poliglota que descobrirá que os torpedos se comunicam por meio de impulsos magnéticos. Aqui é uma pena que o autor não desenvolveu mais a questão, pois não é feita nenhuma tentativa de diálogo com os seres.

Após o contato com os torpedos é mostrada uma cidade submarina, aos olhos de Bruno Daix, mas já com os torpedos mortos, pois a forma encontrada para derrotá-los não foi por meio de ações militares convencionais, mas sim pela criação de um vírus que foi inserido nas algas com as quais os inimigos se alimentavam.

Do conflito não se partiu para alguma forma de entendimento, ou troca de conhecimentos, uma perda para a humanidade e para a própria história, pois, como Wul mostra de forma superficial, os torpedos tinham uma tecnologia tão ou mais avançada que a espécie inteligente da superfície terrestre, com sua capacidade de mudar as características físicas da água, sua agricultura submarina cidades no fundo do mar e os próprios discos voadores. Mas a ênfase de Wul não se centrou nos detalhes de uma nova civilização, quase que tratando os torpedos como monstros marinhos.

De certa forma, esta opção mais superficial não surpreende, já que Wul se caracteriza por ser um escritor voltado essencialmente à imaginação e ao entretenimento. E, nesse sentido, sempre surpreende. Numa cena em que estão reunidos cientistas de todo o mundo para tentar entender o que são os torpedos, um deles diz que os colegas não deveriam estar tão surpresos porque há apenas alguns anos, haviam sido descobertos diplodocos nas florestas do Mato Grosso! Quando li isso, parei a leitura, pasmo com tal informação. Este é o Wul, que pode desconcertar o leitor a qualquer momento.

De qualquer forma há sim, embutida de forma indireta, uma crítica de Wul às consequências do estilo tecnológico e materialista, ao menos da sociedade ocidental, como já visto em livros anteriores como O Mundo dos Draags (Omns em Série) – resenha aqui – e Pré-História do Futuro (Niourk) – resenha aqui. No primeiro sobre a escravização dos humanos por uma espécie alienígena, e no segundo por causa de uma aniquilação nuclear. Em ambos, e também neste romance, a humanidade reage, como que para recuperar suas energias e valores vitais, que fizeram dela uma civilização, em algum momento, bem sucedida.

Degelo em 2157 é o quarto romance de Stefan Wul, o terceiro publicado na clássica coleção francesa de FC Fleuve Noir e o sexto a sair na coleção Argonauta, de Portugal. Ilustra mais um exemplo da prosa colorida e poderosa do mais pulp dos autores franceses e quicá, europeus, sem receio de apresentar ideias ousadas e desenvolvê-las com muita imaginação.

Marcello Simão Branco

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