2015 foi o ano da crise. Não se falou em outra coisa ao longo do ano e praticamente todos os setores sentiram o impacto da desaceleração da economia brasileira. Apesar do forte componente político no processo, não se pode negar que realmente aconteceu uma mudança paradigmática pois, com a desvalorização do Real, importar ficou mais caro e a produção interna e exportação voltaram a ser as bolas da vez. Alguns setores até obtiveram crescimento justamente por conta dessa mudança de contornos, mas o mercado editorial de ficção especulativa não reagiu da mesma forma porque o interesse das grandes editoras que dominam o mercado ainda está nos textos de autores estrangeiros, especialmente aqueles que vêm associados a lançamentos cinematográficos, por isso a produção nacional segue desprezada, subsistindo em pequenas editoras de nicho e na publicação autoral.
Este artigo aborda o que de essencial a fc&f apresentou em 2015, e não foi pouco. Mas antes, cabe fazer uma importante observação sobre o que foi o maior diferencial do mercado nesse ano: as volta vigorosa das novelizações.
Nos anos 1990, houve um período em que mercado foi dominado pela publicação de novelizações – também conhecidas como tie-ins – principalmente ligadas aos seriados de televisão Star trek e X files, sucessos que então sustentavam grandes clubes de fãs no país. Não é exatamente o que aconteceu em 2015 porque o mercado está muito maior, as franquias mais variadas e com autores brasileiros aproveitando a onda. Além das sempre lembradas séries de tv, tivemos novelizações de cinema (Star wars), séries de quadrinhos (Marvel) e jogos eletrônicos, com destaque para a novelização Dois mundos um herói (Suma das Letras), assinada pelo youtuber Rezende Evil e inspirada no jogo eletrônico Minecraft, que foi o lançamento mais badalado e comercialmente bem sucedido da fantasia nacional em 2015.
A fantasia continuou como o gênero mais praticado pelo mercado, tomando mais da metade do total de lançamentos de literatura fantástica e é nela que se destacam os autores mais bem sucedidos, como Eduardo Spohr com o terceiro volume de série Filhos do Éden: Paraíso perdido (Verus), e Carolina Munhóz com Por um toque de ouro e O mundo das vozes silenciadas – este assinado em parceria com Sophia Abrahão –, ambos pela Rocco.
Dos autores mais identificados com o fandom, é preciso registrar a edição de Flores do jardim de Balaur, de Carlos Orsi, novela de fantasia heroica ao estilo weird originalmente publicada no fanzine Juvenatrix em 1999.
Felipe Castilho publicou o terceiro volume de sua série O legado folclórico: Ferro, água & escuridão (Gutenberg) que vale a pena conhecer, assim como o curioso Tijucamérica (Paralela), romance do cronista esportivo José Trajano, que envereda pelos caminhos do futebol.
A série Crônicas de Salicanda, de Pauline Alphen chegou ao terceiro volume com A aliança (L'alliance, Seguinte). Esta autora tem uma característica diferenciada: apesar de brasileira de nascimento, seus livros são traduzidos aqui pois foram originalmente publicados na França, onde ela reside há muitos anos.
Entre os autores estrangeiros, destacou-se o romance arturiano O gigante enterrado (The buried giant), do nipobritânico Kazuo Ishiguro, publicado pela Companhia das Letras. Ainda que parte de sua notoriedade tenha advindo da polêmica criada em torno de declarações pouco simpáticas do autor sobre o gênero da fantasia, o livro é excelente e merece a leitura. Quando a polêmica varreu as redes sociais, o multipremiado fantasista britânico Neil Gaiman foi um dos primeiros a sair em defesa de Ishiguro.
E Gaiman também apareceu de forma importante em 2015, com dois livros: A bela e a adormecida (The sleeper and the spindle, Rocco) e A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras (The truth is a cave in the Black Mountains, Intrínseca).
Como a fantasia não dá sinal de enfraquecimento e os títulos à mão já foram todos publicados, as editoras partiram em busca de obras e autores esquecidos que, de outra forma, talvez nunca desembarcassem aqui. É o caso de Diana Wynne Jones (1934-2011), autora de grande prestígio no exterior mas pouco publicada aqui. A edição de O vitral encantado (Enchanted glass) pela Record foi uma tímida tentativa em dar à autora de O castelo animado (Howl's moving castle) e Crestomanci (Chrestomanci) a atenção que lhe é devida. Outro nome importante lembrado em 2015 foi o escritor e ilustrador americano Dr. Seuss (1904-1991) com O desaparecimento do Lórax (The Lorax), pelo selo infantil da Companhia das Letras, um clássico do gênero. E também Chris Van Allsburg, com Jumanji, numa das derradeiras publicações da editora Cosac Naify, que anunciou no final do ano o encerramento de suas atividades. Vale ainda lembrar da publicação de Pequenos deuses (Small gods), do britânico Terry Pratchett (1948-2015), 13º volume da série Discworld, publicado pela Record no selo Bertrand Brasil.
Desde 2014, a ficção científica voltou a despertar interesse entre as editoras. A pequena Editora Draco, especializada no gênero, trouxe em 2015 alguns títulos que merecem a atenção, por autores historicamente ligados ao fandom: E de extermínio, de Cirilo Lemos, Encruzilhada, de Lúcio Manfredi, e Estranhos no paraíso, de Gerson Lodi-Ribeiro, enquanto Roberto de Sousa Causo apareceu com a coletânea Shiroma: Matadora ciborgue, pela Devir Livraria. Outro nome conhecido no fandom, há anos ausente da atividade autoral, é Henrique Flory que, pela Editora Arte e Ciência, publicou O elo, sequência de Projeto evolução, romance dos anos 1990 também republicado agora.
Ventania brava, de Luis Bras (Sesi-SP), junto à história alternativa A segunda pátria, de Miguel Sanches Neto (Intrínseca), formaram o núcleo da fc nacional que melhor dialogou com o mainstream em 2015. Mas o livro brasileiro de fc mais comentado no ano foi Le Chevalier e a Exposição Universal, de A. Z. Cordenonsi (Avec), romance steampunk que mistura ficção com personagens reais numa aventura à moda de Sherlock Holmes.
Entre os estrangeiros, é preciso antes de mais nada registrar a presença intensiva da coleção alemã Perry Rhodan da editora SSPG, que lançou regularmente cerca de seis volumes digitais por mês ao longo de todo o ano. Trata-se da série mais longa da literatura, com mais de dois mil livros e ainda em publicação.
O escritor americano Jeff Vandermeer retornou à série Comando Sul com Autoridade (Authority), pela editora Intrínseca, que explora possibilidades aterradoras advindas do contato com uma vida alienígena com a qual a comunicação não é uma possibilidade.
O último policial (The last policeman), do também americano Ben H. Winters, pela editora Rocco, aproxima a literatura policial da ficção científica ao contar a história de um homem obcecado em desvendar um assassinato nos dias finais da humanidade no planeta Terra, prestes a sofrer o impacto de um meteoro gigante. Trata-se do primeiro de uma trilogia, cujo segundo volume Cidade dos últimos dias (Countdown city, Philip K. Dick Award 2014) foi lançado pela mesma editora logo nos primeiros dias de 2016.
A editora Aleph, que investe principalmente na republicação de grandes clássicos da fc e tem como carro-chefe o escritor americano William Gibson – autor do prestigiado Neuromancer, que a editora tem republicado seguidamente desde sua primeira edição em 1991 –, dele traduziu História zero (Zero history), terceiro volume da série Blue ant que, por ser ambientada no presente, nem sempre é considerada ficção científica, mas segue os protocolos especulativos do cyberpunk para discutir o impacto psicossocial da tecnologia moderna.
Outro importante representante do cyberpunk que desembarcou por aqui em 2015 foi Ian McDonald com o romance Brasyl, pela editora Saída de Emergência Brasil, numa história que une três realidades, uma delas na cidade do Rio de Janeiro.
O horror é historicamente um gênero de produção estável e sustentou seu espaço em 2015. André Vianco, o maior bestseller da fc&f nacional, estreou o selo autoral Calíope na editora Giz, com o inédito romance Estrela da manhã. Também vale conferir a coletânea O vilarejo, de Rapahel Montes (Suma das Letras), que tem sido bem avaliada no ambiente mainstream.
Apesar de sua tradição e importância como nascedouro de talentos, as antologias tiveram um momento discreto em 2015. Contudo, vale destacar Vampiros, estreia da coleção Sobrenatural (Avec), organizada pelo escritor Duda Falcão com contos de importantes nomes do gênero como Giulia Moon, Carlos Patati, Nazareth Fonseca, Lord A. e Simone Saueressig, entre outros. Contudo, a grande novidade de 2015 no horror nacional foi a volta do mestre R. F. Lucchetti, com dois títulos: O museu dos horrores (Corvo) e O Escorpião Escarlate: O roteiro original (Laços).
Entre os estrangeiros destacou-se outro mestre, Stephen King, com nada menos que três livros publicados no ano: a coletânea Escuridão total sem estrelas (Full dark, no stars), e os romances Joyland e Revival, todos pela Suma das Letras, hoje selo da Companhia das Letras.
Outro mestre do gênero que apareceu em 2015 foi Clive Barker, com a novela original Hellraiser: Renascido do inferno (The hellbound heart), pela Darkside.
A dama do horror, Anne Rice, retornou ao universo de Entrevista com o vampiro (Interview with the vampire) no novo romance As crônicas vampirescas: Príncipe Lestat (Prince Lestat), pela Rocco. Até mesmo George R. R. Martin não resistiu aos encantos vampíricos e apareceu nas livrarias com Sonho febril (Fevre dream) pela LeYa Brasil. O romance é de 1982, mas só chegou agora devido ao sucesso de Martin com livros de fantasia medieval.
Finalmente, mas não menos importante, foi a publicação da coletânea Solomon Kane: A saga completa, de Robert E. Howard (1906-1936) pela editora Generale, reunindo os nove contos escritos por Howard para o destemido puritano caçador de bruxas.
Diante deste quadro, a conclusão é que não há do que se lamentar. A publicação de fc&f resistiu bem aos humores do mercado, e a crise pode até ser benéfica para o setor, depurando o mercado dos evidentes excessos que em nada contribuem para o estabelecimento de uma fc&f sólida e relevante.
Ainda há muito que trilhar para tornar a ficção fantástica um espaço profissional ao exercício artístico, mas já é possível dizer, no que se refere aos aspectos conceituais, que a ficção fantástica brasileira está amadurecendo.
Livros citados:
Dois mundos, um herói, Rezende Evil (Suma das Letras)
Filhos do Éden: Paraíso perdido, Eduardo Spohr (Verus)
Por um toque de ouro, Carolina Munhóz (Rocco)
O mundo das vozes silenciadas, Carolina Munhóz e Sophia Abrahão (Rocco)
Flores do jardim de Balaur, Carlos Orsi (Draco)
O legado folclórico: Ferro, água & escuridão, Felipe Castilho (Gutenberg)
Tijucamérica, José Trajano (Paralela)
Crônicas de Salicanda: A aliança, Pauline Alphen (Seguinte)
O gigante enterrado, Kazuo Ishiguro (Companhia das Letras)
A bela e a adormecida, Neil Gaiman (Rocco)
A verdade é uma caverna nas Montanhas Negras, Neil Gaiman (Intrínseca)
O vitral encantado, Diana Wynne Jones (Record)
O desaparecimento do Lórax, Dr. Seuss (Companhia das Letras)
Jumanji, Chris Van Allsburg (Cosac Naify)
Pequenos deuses, Terry Pratchett (Bertrand Brasil)
E de extermínio, Cirilo Lemos (Draco)
Encruzilhada, Lúcio Manfredi (Draco)
Estranhos no paraíso, Gerson Lodi-Ribeiro (Draco)
Shiroma: Matadora ciborgue, Roberto de Sousa Causo (Devir)
O elo, Henrique Flory (Arte e Ciência)
Ventania brava, Luis Bras (Sesi-SP)
A segunda pátria, Miguel Sanches Neto (Intrínseca)
Le Chevalier e a Exposição Universal, A. Z. Cordenonsi (Avec)
Perry Rhodan (SSPG)
Autoridade, Jeff Vandermeer (Intrínseca)
O último policial, Ben H. Winters (Rocco)
História zero, William Gibson (Aleph)
Brasyl, Ian McDonald (Saída de Emergência Brasil)
Estrela da manhã, André Vianco (Giz)
O vilarejo, Rapahel Montes (Suma das Letras)
Vampiros, Duda Falcão, org. (Avec)
O museu dos horrores, R. F. Lucchetti (Corvo) e
O Escorpião Escarlate: O roteiro original, R. F. Lucchetti (Laços).
Escuridão total sem estrelas, Stephen King (Suma das Letras)
Joyland, Stephen King (Suma das Letras)
Revival, Stephen King (Suma das Letras)
Hellraiser: Renascido do inferno, Clive Barker (Darkside)
As crônicas vampirescas: Príncipe Lestat, Anne Rice (Rocco)
Sonho febril, George R. R. Martin (LeYa Brasil)
Solomon Kane: A saga completa, Robert E. Howard (Generale)
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