Shiroma Matadora Ciborgue, Roberto de Sousa Causo. Introdução de
Nelson de Oliveira. Capa de Vagner Vargas. 241 páginas. São Paulo: Devir, 2015.
Tanto
Peregrino como Shiroma lideram histórias próprias dentro deste universo
ficcional, não tendo, pelo menos até o momento, interagido um com o outro de
forma direta. Habitam um mesmo contexto, situado no século XXV, em que a
humanidade está profundamente envolvida na expansão e colonização da Via
Láctea, nas chamadas Zonas de Expansão, sendo a região da Esfera a maior e mais
rica, embora contestada pelos Tadai, alienígenas misteriosos que não mostram o
seu rosto.
O universo
ficcional de Peregrino e Shiroma contraria, em parte, o futuro de consenso, uma
das convenções da FC norte-americana, de que no futuro a humanidade explorará o
cosmos politicamente unida. A referência mais popular ao conceito é a série de
TV Jornada nas Estrelas (Star Trek). Em parte, porque a
humanidade continuou dividida politicamente, entre a América Latina – ao qual pertence
o militar e a assassina –, os Norte-Americanos, os Asiáticos e os Euro-Russos.
É de se pensar que, para que quatro alianças na Terra tenham condições de se
expandir pelo espaço de forma autônoma, o nível de afluência econômica e de
produção científico-tecnológica seja mais alto do que jamais chegou antes
o capitalismo em sua história. Se em termos políticos, de fato, pode fazer mais
sentido a continuidade da competição e conflito entre diferentes povos da
Terra, em termos econômicos, por outro lado, uma solução de consenso – de
juntar forças – faria mais sentido. A construção do consenso é muito difícil,
mas a escassez de recursos poderá, talvez, levar, senão a uma união, a
parcerias estratégicas em torno de objetivos comuns.
Embora Causo
tenha desenvolvido bastante as aventuras de Peregrino, numa série intitulada
“As Lições do Matador”, publicando ao menos quatro contos e o romance Glória Sombria (2009), em termos
cronológicos de publicação a primeira aventura é de Shiroma, com o conto “Rosas
Brancas”, em 2008. Isso porque, como afirma Causo no posfácio, ele escreveu
este conto para a série de revistas “Portal”, de Nelson de Oliveira, embora
ainda não tivesse consciência de que poderia partilhar o mesmo universo
ficcional de Peregrino. Foi com a sequência dos seis contos publicados na série
que ele incorporou Shiroma ao Universo Galaxys, acrescentando, assim, uma
segunda protagonista e, mais interessante, com uma segunda linha narrativa – e levada
à frente por uma mulher.
Shiroma Matadora Ciborgue reúne onze
histórias com a personagem, cinco delas publicadas pela primeira vez neste
volume. Elas estão dispostas em ordem cronológica das aventuras e não,
necessariamente, na sequência em que foram publicadas. Foi uma decisão
acertada, pois o leitor pode acompanhar de forma mais coerente os diferentes
momentos vividos pela personagem e seu próprio desenvolvimento, muito embora
algumas situações anteriores sejam lembradas em cada uma das histórias. Pode
também ser considerado um romance fix-up,
ao reunir diversas histórias de um mesmo universo ficcional.
Shiroma, na
verdade não é seu nome de batismo. Quando criança chamava-se Bella Nunes, e foi
sequestrada por um misterioso casal de criminosos Tera e Tiago, que passou a
criá-la para torná-la uma espiã e matadora, a serviço dos seus interesses. A
criança despertou atenção e cobiça pelo fato de ser um protótipo de um ciborgue
com sistemas biocibernéticos supereficientes e indetectáveis. Sua primeira
história “Rosas Brancas”, mostra como foi desenvolvida por seu pai, e retirada
de sua mãe, morta por Tera e Tiago. O que fica claro desde o início é que Bella
Nunes foi uma criança que perdeu a sua liberdade, ou nunca a teve, pois cresceu
para se tornar um instrumento de interesses escusos.
A cada missão
a rebatizada Shiroma mostra-se extremamente eficiente em eliminar seus alvos,
fazendo uso tanto de suas habilidades como lutadora, como também de suas
vantagens cibernéticas. De certo modo conta a seu favor também o fato de ser
uma garota recém-saída da adolescência, surpreendendo seus oponentes que se
deixam enganar por seu sexo e aparência frágil. Pois vemos esta situação se
repetir em várias histórias, embora com a sucessão das missões seus oponentes
passem a ver Shiroma mais segura e consciente do que representa. Isso se torna
mais claro em histórias como “Arribação Rubra”, “Tempestade Solar” e, sobretudo
a última, “Renegada”.
O que torna
Shiroma uma personagem interessante é que ela não se transformou apenas numa
máquina assassina, tão sem caráter quanto os criminosos que a criaram. Mesmo
sendo utilizada para atividades ilegais, ela se ressente desta condição e se
questiona a todo o momento. Sabe que o que faz é errado, que o casal que a
criou não presta, e imagina como poderá, em algum momento, se desvencilhar
desta situação de submissão. Recuperar, de certo modo, seu futuro que foi
desviado, após o assassinato de sua mãe. Simbólico deste objetivo é a relação
que estabelece com uma concha do mar, achada num planeta anônimo, ainda bem
jovem. Sempre nos momentos difíceis ou de reflexão ela imagina falar com sua
mãe ou com a criança inocente que foi um dia, ao ouvir a concha junto ao
ouvido. Por onde vai, em cada missão num diferente canto da galáxia, a concha é
a sua referência poética e ética do que poderia ter sido. Uma esperança de que
poderá se libertar das garras que a aprisionam, e expressar sua verdadeira identidade.
Estas
situações ambíguas de ilegalidade e retidão, força e fragilidade, violência e
sonho, é o que estrutura a sua personalidade e a torna tão complexa e
interessante, mesmo que seja difícil compreender como pôde conviver por tanto
tempo com atividades tão vis sem se tornar também parte desta engrenagem de criminalidade
e maldade. Lendo as histórias fiquei com uma sensação de que ela poderia romper
este vínculo, sendo tão forte e hábil, não precisando se submeter ao casal de
criminosos. Pois assim como ela amadurece como lutadora, também mudará sua
relação de dependência com o casal, deixando seu destino aberto a novas
possibilidades, conforme mostra a noveleta que encerra o volume, “Renegada”.
Uma história particularmente
interessante é “A Extração”, pois é contada do ponto de vista de uma
investigação no interior de uma nave espacial, para se descobrir o assassinato
de um general num planeta gelado. É como se a missão de Shiroma fosse
invertida, isto é, não se mostrou sua ação em si, mas as consequências do seu
ato. Ela fica incógnita no interior da nave e é descoberta pelo diplomata
Silvano Vieira de Mello, que terá suas próprias razões para decidir o que fazer
com ela. Ele é o personagem principal desta história, uma homenagem ao renomado
diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, Alto Comissário dos Direitos
Humanos da ONU, que estava cotado para se tornar Secretário-Geral, quando
morreu num atentado da Al Qaeda no Iraque em 2003.
Numa
comparação das duas linhas narrativas lideradas por Peregrino e Shiroma,
constatamos que nas aventuras de Jonas Peregrino mostra-se mais o contexto
macro, político, de disputa pelo poder e da ameaça representada pelos Tadais,
que ameaçam a expansão humana. Neste cenário ele se coloca, muitas vezes, como
se fosse uma espécie de referência ética involuntária, por força dos
acontecimentos em que é envolvido, em meio às intrigas políticas e militares.
Já com Shiroma temos o contexto mais miúdo das relações em sociedade, as
culturas e o cotidiano dos lugares em que parte para realizar suas missões. Pois
ela se insere num contexto marginal e criminoso, ao contrário do mais institucionalizado
– embora não menos perverso – de Peregrino.
Na introdução
Nelson de Oliveira disse que deseja ver Peregrino e Shiroma atuando juntos numa
mesma história, e também compartilho desta possibilidade, muito embora acredite
que Shiroma ainda tenha muito potencial próprio a desenvolver, talvez agora no
formato de um romance, a partir do desfecho desta coletânea. Enfim, um
ótimo exemplo de uma ficção científica espacial de primeira qualidade, pois
para além do cenário espacial deslumbrante, ganha ainda mais relevo com as discussões
éticas e políticas que dizem respeito, antes de mais nada, a nós mesmos.
–
Marcello Simão Branco
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirGrato pela resenha, Marcello. Shiroma também agradece suas palavras elogiosas :-) Espero que "Mestre das Marés" também mereça a sua atenção crítica. Abraço!
ResponderExcluirExcelente resenha, Marcello!
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