sábado, 13 de janeiro de 2018

Viagem à Europa (com alguma Ficção Científica e Política)

por Marcello Simão Branco

Faz três anos agora em janeiro que estive na Europa com minha esposa, a Rossana Arouck.[1] Foi minha primeira viagem ao velho continente e escolhemos como locais de visitação a Itália – por motivos sentimentais, afinal sou neto de italianos por parte de mãe – e a Alemanha, por causa da Sandra, uma amiga de muitos anos da Rossana, que mora por lá.
Viajamos num voo da Air France sob alguma tensão, pois dias antes Paris havia sofrido o brutal e covarde atentado que vitimou os cartunistas do jornal satírico Charlie Hebdo. Chegamos à cidade no domingo de 11 de janeiro, justamente no dia marcado para a grande manifestação de desagravo contra a barbárie e à liberdade de expressão e consciência convocada por François Hollande, presidente do país. A tentação de se juntar ao evento era obviamente grande, mas como o aeroporto Charles de Gaulle é longe do Centro e o tempo de conexão era de apenas algumas horas resolvemos ficar dentro do aeroporto. Vimos, contudo, soldados armados com fuzis no interior do local, o que certamente não é rotina, ilustrando o clima tenso que o país vivia. Pude, ao menos, pegar um exemplar de uma edição especial do Le Monde com a manchete “Marcher Contre La Terreur”, que era fartamente distribuído. Além disso, na livraria dentro do aeroporto não resisti e comprei o “Space Adventure Model Kit”, uma caixa com miniaturas da conquista da Lua, com o Saturno V, carros e jipes lunares, o módulo de descida, bandeirinhas e astronautas. Sem querer, começava também minha incursão espacial e de ficção científica que prosseguiria por toda a viagem.
Aterrisamos em Roma na noite do mesmo dia e por lá ficamos por mais três. Conseguimos visitar e conhecer o básico, como o Coliseu, as ruínas do Forum Romano e os jardins do Palatino, além de uma tarde no Vaticano. Roma pulsa nervosamente sua vida cotidiana como toda grande metrópole, mas tem em paralelo uma imponência e beleza histórica que impressiona. É uma sensação única entrar num lugar como o Coliseu, visitar as ruínas da residência de Augusto, o primeiro imperador, ou ainda contemplar arcos como os de Constantino e Tito. Nem precisaria, mas a enorme quantidade de turistas do mundo inteiro – especialmente chineses! – só reforça este sentimento. Apesar da fama de certa desorganização dos italianos – mais um clichê que não se confirma – a cidade é bem sinalizada, os serviços de apoio e informação aos turistas profissionalizados, e há um cuidado visível de manutenção dos marcos históricos. Inclusive, perto do Coliseu vimos um sítio arqueológico que soube ter sido descoberto recentemente, por onde passaria uma linha de metrô, que terá de ser desviada, pois lá estão as ruínas de parte da Domus Aurea, o antigo palácio de Nero.




Ficamos hospedados próximos ao principal terminal rodoviário, Termini, e lá pude visitar livrarias e bancas de jornais. Há uma quantidade expressiva de histórias em quadrinhos, sendo que Tex e Martin Mystére são muito presentes, assim como uma revista de suspense e horror chamada Diabolik. Achei exemplares mais recentes da coleção de ficção científica Urania. Na esperança de encontrar um livro de um autor italiano de FC publicado na coleção, Glauco de Bona, que com o romance Cuori Strappati venceu o Prêmio Urania 2014 para o melhor livro de FC nativa publicado no país, não comprei nenhum exemplar desta coleção em Roma. Mas não saí de mãos vazias, pois comprei num sebo o livro Roma Segreta, de Pierluigi Marrone, para aqueles que já conhecem bem os pontos históricos da cidade, e procuram por lugares menos conhecidos. Só para matar a curiosidade, claro, pois não é o meu caso.
Gostamos tanto da cidade que queríamos ficar mais um dia. Mas como não foi possível trocar de um dia para o outro a passagem de trem à Florença, partimos com vontade de voltar à capital eterna algum dia. Pelo menos cumprimos o ritual de jogar a moeda sobre os ombros na Fontana de Trevi – que, aliás, estava em reforma. Quem sabe?
Em duas horas estávamos no berço artístico do Renascimento, pois os trens que cruzam a Itália são muito rápidos, ainda que não sejam os famosos TGVs, como os de França e Japão.
Ao contrário de Roma, Florença é uma cidade pequena, e seu centro histórico é belíssimo com suas construções medievais, em especial as catedrais, museus e palácios que estão por toda parte. Ficamos três dias na cidade e pude, enfim, comprar exemplares de fantascienza – como é chamada a ficção científica na Itália. Primeiro procurei na rede de livrarias Feltrinelli mas, de forma surpreendente, não tinha exemplares da coleção Urania. Perguntei então pela seção de FC com a expectativa de conhecer alguma coisa da FC do país. Mas as estantes estavam lotadas mesmo é de traduções de autores tradicionais como Tolkien, Asimov, Lovecraft, King, Clarke, Heinlein, Dick, Pratchett, Adams. Havia também livros de autores anglo-americanos atuais como, por exemplo, Miélville, Doctorow, Scalzi, Stross e Alastair Reynolds. Mas deixei a livraria sem comprar nada, pois não vi nenhuma FC de autor italiano.
Circulando pelas ruelas históricas, achamos um túnel que é na verdade uma grande galeria de lojas. E lá encontrei um sebo com dezenas de livros da Urânia. Comprei apenas um Quando Due Modi si Incontrano (número 602, de 1973), uma antologia com duas novelas: “Quando Due Mondi si Incontrano”, de Robert Moore Williams e “Le Ragioni Degli Altri”, de Jack Vance. Mas no mesmo dia, achei numa banca de jornal próxima à estação ferroviária, o exemplar atual da coleção Urania, Astronave Mercenaria, de Mike Resnick (número 1614), e um livro que não havia visto até então, o Almanacco del Mistero. Pude finalmente adquirir exemplares da fantascienza publicada em janeiro de 2015, ou seja, o que de mais atual havia no momento da viagem.
Astronave Mercenaria (Starship Mercenary: Book Three) é o número 1614 da coleção Urania, que existe desde 1952! Historicamente publica autores estrangeiros, mas depois de instituir o Prêmio Urania, tem publicado autores nacionais que vencem o concurso de caráter anual. Basta lembrar que nos últimos anos revelou Valerio Evangelist, autor de prestígio na Europa, especialmente pelo romance steampunk Black Flag, lançado no Brasil pela editora Conrad em 2005.
Urania faz parte de uma tradição europeia centrada em coleções, assim como a Argonauta, de Portugal – que também teve início em 1953 e terminou em 2006, com 562 edições –, e a Fleuve Noir francesa, que existiu por meio século, de 1951 a 2001, publicando 2001 edições. Felizmente para os italianos a Urania mantém-se viva e forte, ao que parece, pois publica um livro por mês, e numa rápida pesquisa na internet constata-se que há todo um culto de fãs e leitores em torno da coleção. Vale lembrar que o próprio Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC) teve como fonte inspiradora de criação a coleção Argonauta, por meio do livro Quem é Quem na FC, a Coleção Argonauta, Vol. 1, de R.C. Nascimento, em 1985. Na verdade o CLFC nasceu como uma associação de colecionadores da Argonauta. Mas curiosamente o culto era de brasileiros e não de portugueses.
Os livros da Urania valorizam o relacionamento com os fãs. Não havia seção de cartas – apesar de uma solicitação para isso do editor no texto de apresentação da edição –, mas além do romance, há resenhas de livros, artigo que discute os princípios científicos abordados na obra, chamadas para eventos de FC no país e o anúncio do Prêmio Urania. Não é um livro convencional, mas sim quase uma revista.
Surpresa mesmo tive com o Almanacco del Mistero. É uma publicação anual de variedades em torno de FC, fantasia e horror. Apresenta uma enorme HQ do personagem Martin Mistère em P&B como atração principal da revista, com 91 páginas, “Saturno Contro La Terra”, com texto de Alfredo Castelli e desenhos de Giancarlo Alessandrini. O restante é fartamente colorido com fotos e ilustrações de artigos sobre filmes, séries de TV, resenhas de livros, notícias e o tema da edição, a FC pulp, através da própria HQ e dos artigos “L´alba dei Fanta-Pulp: Tutte Le Strade Portano a Mongo”, de Maurizio Colombo e Graziano Frediani”, e “Alieni Divini: E Venne um Ufo!”, de Gianmaria Contro. Uma revista bonita, que em princípio lembra um pouco o Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica pela proposta, mas é mesmo um almanaque que junta diversas seções em torno da FC&F.



Deixamos Florença em 17 de janeiro e partimos para Veneza. Ficamos dois dias numa das mais surpreendentes e improváveis cidades, toda circundada por rios e canais que somada à sua arquitetura medieval e renascentista lhe dá um caráter sem igual. Tivemos a fortuna de ficarmos hospedados num modesto hotel que nos deu o privilégio de ao abrirmos a janela avistarmos os canais que circundavam o quarteirão. Claro que visitamos pontos turísticos tradicionais, como a Praça e a Basílica de San Marco, e viajamos de barco pelos canais – mas não de gondola, pois custava 80 euros! – mas o mais legal em Veneza é andar a pé e sentir a beleza singular da cidade.
Depois de Veneza passamos uma noite em Milão – principal centro industrial da Itália, na região da Lombardia – e logo cedo voamos para Copenhague, em conexão para Bremen, no norte da Alemanha. Na capital da Dinamarca uma surpresa: a moeda não é o Euro, mas a Coroa. Mas como o país integra a União Européia, não houve problema de aceitação da moeda. No início da noite estávamos em Bremen e pudemos sentir a diferença radical de temperatura: saímos de 10, 12º C na Itália para – 5º C. º.
Fomos recebidos e ficamos hospedados na casa de uma amiga da Rossana dos tempos da adolescência, que foi viver na Alemanha, e está casada e com filhos. Foi bom também porque o marido dela, embora alemão, fala bem português, pois morou alguns anos em Portugal.
Tivemos três dias inteiros no país, e em dois deles percorremos Bremen e no outro estivemos em Hamburgo, que fica apenas uma hora de trem de Bremen. É uma cidade portuária, mas semelhante à Florença no que diz respeito à sua arquitetura histórica, também medieval, mas com um caráter mais neogótico, em especial em suas muitas igrejas, muitas delas construídas a partir da reforma protestante, no século 16. É inverno e a noite chega cedo, por volta das 16 horas – na Itália, às 17h30 –, mas a cidade é animada, com vários artistas realizando performances na rua, e instrumentistas tocando música clássica. Tudo ao ar livre e de graça.
No dia seguinte conhecemos Hamburgo, a segunda maior cidade do país, e muito diferente de Bremen, pelo menos na parte da cidade em que estivemos. Próximo ao terminal ferroviário onde descemos, sem querer paramos no bairro da comunidade turca, enorme no norte da Alemanha. Parecia que nem estávamos mais no país mais rico da Europa, pois as pessoas tinham a pele morena e o cabelo escuro, além de não falar necessariamente alemão, mas sim sua língua natal. Com fome, almoçamos num restaurante turco e quase fomos expulsos, pois o garçom ficou ofendido quando pedimos cerveja. Não havíamos percebido, mas o restaurante não era apenas turco, mas também mulçumano. Mesmo assim ficamos, e a comida estava boa. (Sem comparações, contudo, com a comida alemã típica, e menos ainda com a italiana. Mas não vou entrar nesta seara, pois renderia outro texto sobre como os europeus comem bem.)
O que nos chamou a atenção também em Hamburgo – e de forma ainda mais surpreendente, pois estávamos no país de maior economia da Europa – é a pobreza, com pessoas pedindo esmolas na rua.  E vimos isso também em Roma e em Veneza. Isso sem falar na farta presença de indianos e africanos na península italiana, vivendo de bicos em situação ilegal. Em Veneza, inclusive, conversamos rapidamente com um ucraniano – em inglês – foragido da guerra em seu país que vivia na rua. Mas os mendigos que avistamos foram alemães e italianos mesmo. Apesar dos bem-estruturados sistemas de welfare state, os efeitos da grande crise econômica de 2007 ainda estão visíveis no coração da Europa.
Na segunda noite em Bremen, na companhia de Joaquim, o alemão que nos hospedou –,  entrei de bico numa festa do Partido Social-Democrata Alemão (SPD), que governa Bremen há 40 anos. Era pelo lançamento de um programa da prefeitura sobre a inclusão de pessoas com deficiência no serviço público do município. Ouvimos um ou outro discurso, bebemos vinho e saímos aquecidos e de volta para o frio quase polar. Estar na Alemanha em pleno inverno é como estar num freezer a ao ar livre, apesar dos quilos de agasalhos que temos que vestir. Apesar disso só vimos neve na região rural entre Bremen e Hamburgo. E soubemos que começou a nevar forte em Bremen um dia após nossa partida...


Depois de ter procurado Perry Rhodan em Bremen, acabei achando numa banca de jornal dentro da estação ferroviária de Hamburgo. Mas não era a coleção principal, e sim Perry Rhodan Neo, n. 87, “Ruckkehr der Fantan”, de Michelle Stern. É uma das coleções derivadas da série que procura reescrever o universo ficcional do herói espacial a partir de outras premissas, isto é, uma história alternativa que, em linhas gerais, situa a conquista ao espaço em 2036 e não em 1971, como na linha temporal tradicional da série. É um romance, portanto bem maior que as aventuras quinzenais, e também contém seções complementares, como de cartas, humor e artigos. Sai uma vez por mês.
Apenas no dia seguinte é que, novamente, em Bremen, pude comprar Perry Rhodan. Era o exemplar da quinzena, “Die drei Tage der Manta”, de Christian Montillon, número 2788. Isso mesmo, 2788! Já imaginou acompanhar uma série que esteja num número como este? Fantástico para quem acompanha, mas desanimador para quem pega a coisa pelo caminho. Em todo caso, talvez até mais que a coleção Urania italiana, Perry Rhodan é idolatrada na Alemanha. Inclusive, o vendedor exclamou: “Perry Rhodan!”. Disse mais algumas palavras em alemão, mas tive de cortar seu entusiasmo ao dizer, em inglês, que não falava alemão.
Se na Itália esperava comprar um livro da Urania, não podia estar na Alemanha e não comprar Perry Rhodan, mas fui surpreendido – assim como com o Almanacco del Mistero – com quatro séries de literatura de gênero vendidas no país. São revistas de formato semelhante à de Perry Rhodan, mas de outra editora, e que publicam séries de aventuras infanto-juvenis de FC, fantasia, horror e western. Comprei o exemplar de FC Bastei Maddrax die Dunkle Zukunft der Ende, com a aventura “Daa´Muren unter Sich”, de Lucy Guth, que já está no número 391, e tem periodicidade semanal!
Se na Itália um dos carros-chefes de sua FC é a coleção Urania, na Alemanha o pulp está vivo e forte em revistas de aventuras seriadas. Apesar do boom da FC&F brasileira nestes anos 2000, que inveja de ver livros e revistas populares sendo vendidas a preços baixos (de 2 a 5 euros) em bancas de jornais espalhadas pelos países. Isso sim ajuda a fortalecer um fandom, e permite o surgimento de novos autores, além de manter em parte as carreiras de outros autores. A FC brasileira tentou algumas vezes, mas o fato é que nunca fomos bem sucedidos neste seguimento de popularização e desenvolvimento da FC&F.
Depois de duas semanas intensas, partimos no dia 25 de Bremen para Paris e, de novo sem deixar o aeroporto para conhecer a cidade luz, rumamos de volta a São Paulo, Brasil. Foi muito legal, mas é bom estar de volta.





[1] Este texto foi escrito logo após minha volta ao Brasil, em janeiro de 2015, a pedido de Roberto de Sousa Causo que pretendia publicá-lo em seu fanzine Papêra Uirandê. Como não há perspectiva de uma nova edição  do zine resolvi publicar o artigo aqui no Almanaque.

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