As Crônicas de Medusa (The Medusa Chronicles), Stephen Baxter e
Alastair Reynolds. Tradução de Ronaldo Sérgio de Biasil. 432 páginas. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2016.
Quando Arthur C. Clarke
(1917-2008) escreveu “Encontro com Medusa” ele estava no auge de seu prestígio
e popularidade. Vinha do êxito do filme 2001:
Uma Odisséia no Espaço, de 1968, em que ele foi co-responsável pelo roteiro
e autor de um excelente romance. A novela foi publicada em dezembro de 1971 na
edição norte-americana da revista Playboy,
e venceria o Prêmio Nebula em 1972 e o Prêmio Hugo em 1973, os dois mais
importantes da ficção científica.
“Encontro com Medusa” foi publicado
no Brasil na coletânea O Vento Solar:
Histórias da Era Espacial (Globo, 1973), e é provavelmente seu último
trabalho de relevância na ficção curta. O enredo narra uma missão ao interior
de Júpiter, e a descoberta de surpreendentes formas de vida que flutuam na
atmosfera gasosa do gigantesco planeta. As descrições acuradas das etapas da
missão e do encontro com as tais medusas são um primor de equilíbrio entre
criatividade e verossimilhança científica. Quem conduz a missão é Howard
Falcon, que anos antes sofrera um grave acidente no comando do dirigível Queen
Elisabeth IV, e fora cobaia de uma experiência medicinal de fronteira, pois ele
foi quase totalmente reconstruído com componentes artificiais. Falcon tornou-se
um ciborgue, meio homem e meio máquina, e por isso o único capaz de mergulhar
no interior de um planeta hostil à vida humana, com temperaturas e pressões na
casa dos milhares de graus e atmosferas.
Já ao final de “Encontro com
Medusa”, após o êxito da missão, Falcon havia se tornado uma espécie de pária.
Respeitado sim, mas com reservas, pois se intuia que como um ciborque ele sinalizava
o possível passo evolutivo da humanidade. Um pós-humano. Cerca de dez anos
depois, reencontramos Howard Falcon no romance As Crônicas de Medusa, escrito pela dupla de autores britânicos
Stephen Baxter e Alastair Reynolds.
O livro cobre um período de tempo
de quase mil anos, e mostra como um ser praticamente imortal serve de elo entre
a humanidade e as máquinas que, após adquirirem inteligencia e autonomia, se
desprendem dos seus criadores e passam a competir com eles sobre o predomínio dos
corpos celestes do Sistema Solar e seus recursos naturais. Falcon, que manteve
a sua patente de comandante da Marinha Imperial da Terra, é chamado, de forma
intermitente, para agir como uma espécie de embaixador da humanidade nos
contatos cada vez mais complexos com as máquinas. Desta forma o livro apresenta
uma série de eventos em que Falcon assume a tarefa – meio a contragosto – de
representar os interesses humanos frente ao dos robôs. Só que sua ligação com
os últimos torna-se próxima o suficiente para que sua lealdade seja posta em
xeque.
Numa atividade industrial de
extração de recursos energéticos num asteróide transplutoniano, ocorre um
acidente que destroi vários robôs. Adam, o líder, para os trabalhos e Falcon é
enviado para descobrir o que aconteceu. Descobre que Adam sentia tristeza pela
perda dos companheiros e questionava como que os humanos os haviam colocado
numa missão perigosa, e sem a segurança necessária. Ao descobrir que Adam tinha
sentimentos, Falcon não apaga suas memórias, como era recomendado, mas faz um
acordo com ele para que voltasse aos trabalhos, até conseguirem construir uma
nave para zarparem do Sistema Solar. Centenas de anos depois, Adam anuncia o
retorno da agora civilização artificial, e com um últimato: os humanos teriam
500 anos para sairem da Terra, pois seria ocupada pelas máquinas. Com isso humanos
e máquinas entram definitivamente em conflito pela supremacia política e
tecnológica dos planetas do Sistema Solar, numa ação de certa forma iniciada
por Falcon em sua missão ao asteróide.
As Crônicas de Medusa é um romance épico que mostra como ocorre o
relacionamento entre criadores e criaturas, retomando um tema dos mais
tradicionais da ficção científica, agora em escala espacial. Na verdade, Baxter
e Reynolds especulam sobre o que pode acontecer se as máquinas adquirirem uma
autoconsciência e se tornarem muitíssimo mais inteligentes e capazes que a
humanidade. Segue os argumentos da chamada singularidade,
que poderia estar por acontecer ainda no século XXI. Mesmo que seja pouco
provável que isto aconteça, ao menos em nosso tempo histórico, quais poderiam
ser os possíveis desdobramentos? Uma nova espécie inteligente se contentaria a
servir apenas aos seus criadores? Ou passaria a questionar sua condição
subalterna e se rebelaria, lutando por direitos, liberdade e buscando seus
próprios objetivos? Como ficaria a humanidade à mercê de uma espécie muito mais
inteligente, capaz e praticamente imortal? Todas estas perguntas já foram
feitas e mostradas em muitas histórias do gênero, e Baxter e Reynolds não almejam
originalidade, embora coloquem a questão numa contextualização contemporânea,
com aquilo que temos de mais recente em termos de pesquisa científica.
Mas o leitor pode estar se
perguntando: E as Medusas? Sim, Falcon cultiva um carinho especial por estes
seres enormes que flutuam no meio da atmosfera gasosa de Júpiter. De tempos em
tempos, ele voltará a encontrá-las. E são nestas sequências que temos os
momentos mais belos de especulação e fantasia nos mergulhos cada vez mais
profundos do imenso planeta. Poucas vezes presenciei a descrição de cenas tão
inspiradas sobre os mistérios de um planeta tão diferente e fascinante. Tanto
do ponto de vista de como ele pode ser em termos naturais, como das eventuais
formas de vida que ele pode abrigar. Pois poderá vir justamente das entranhas
de Júpiter a chance eventual de reaproximação entre os homens e as máquinas,
tendo, mais uma vez, Howard Falcon como uma figura central nos acontecimentos.
O desafio de escrever um romance
que ocorre num intervalo de séculos é que possa segurar o interesse e não se
torne uma espécie de colcha de retalhos de diferentes eventos que se justapõe.
Pois Baxter e Reynolds são competentes ao amarrarem os diferentes
acontecimentos dentro de um contexto maior e tendo um personagem principal a
servir como elo da narrativa. Mesmo assim, pode-se ponderar que paira sobre a
história um drama frio e distanciado. Alguns dos eventos cataclísmicos que
ocorrem não recebem uma carga emocional condizente. Os personagens não são
muito densos e desenvolvidos do ponto de vista psicológico, mesmo Howard
Falcon, um sujeito que atravessa as eras praticamente sozinho, pois perde seus
amigos, não tem família e apenas a sua médica é o que mais se pode considerar
como uma pessoa íntima – mas ela também é humana. Contudo, pode fazer sentido,
pois afinal ele, conforme o tempo passa, tona-se cada vez menos humano e mais
próximo das máquinas. Virtualmente imortal como elas.
As Crônicas de Medusa foi listada como “leitura recomendada” dos
melhores do ano da revista Locus: The
Magazine of the Science Fiction & Fantasy Field, a mais prestigiosa da
FC, embora não tenha sido finalista do Hugo e Nebula. E é surpreendente que tenha sido traduzida e
publicada tão rapidamente no Brasil pois, afinal, o livro é de 2016. Talvez tenha
a ver com o fato de Ronaldo Sérgio de Biasi ser o tradutor, uma figura
importante na ficção científica brasileira no início dos anos 1990, quando
editou as 25 edições da Isaac Asimov
Magazine (1990-1993) – versão brasileira da Asimov´s Science Fiction. Biasi nunca escondeu que prefere a
vertente hard da FC, e talvez tenha
influenciado a editora a publicar este romance. Acertou em cheio.
Quando imaginamos que As Crônicas de Medusa seja
uma homenagem a Arthur C. Clarke, já seria louvável, embora pudesse não
acrescentar muita coisa aos autores, dois expoentes da FC hard desde, pelo
menos, os anos 1990. Mas a obra vai além e se ombreia na melhor tradição da
corrente temática mais tradicional do gênero.
–
Marcello Simão Branco
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