Muitas vezes, a diferença entre uma impressão e uma certeza pode ser mínima. E a impressão que a ficção especulativa sempre fez parte da literatura brasileira era uma convicção que eu tinha comigo. Mas sempre foi difícil argumentar com precisão quando se tratava de citar exemplos. Mas tenho que confessar que, afora alguns títulos e autores mais destacados que sempre são lembrados nesses momentos, dava até a mim mesmo a sensação que talvez estivesse forçando a tese para além do que ela poderia se sustentar.
A antipatia da crítica especializada pela ficção de gênero, que sempre desconsidera essa classificação para textos de autores canônicos, mantinha as referências à distância, sempre que possível. Parecia ser necessário um prolongado e exaustivo trabalho de pesquisa acadêmica para tirar esses trabalhos dos cofres da memória, esquecidos em livros obscuros e jornais antigos, como tem feito o pesquisador Braulio Tavares em diversas antologias recentes, como Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros (2003) e Páginas do futuro: Contos brasileiros de ficção científica (2011), ambos publicados pela editora Casa da Palavra.
A estes volumes junta-se agora Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira, organizado por Lainister de Oliveira Esteves para a Editora Escrita Fina. Na verdade, este trabalho foi publicado em 2010, mas somente agora o descobri. Esteves é um pesquisador carioca, doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e especializado em História Cultural, e este trabalho ilustra muito bem o carinho que o organizador tem para com a literatura brasileira.
Como o nome já diz, a antologia é formada por treze textos de horror de autoria de nove escritores canônicos já em domínio público: Álvares de Azevedo (1931-1852), Bernardo Guimarães (1825-1884), Machado de Assis (1839-1908), Aluísio de Azevedo (1857-1913), Thomaz Lopes (1879-1913), João do Rio (1881-1921), Gonzaga Duque (1886-1911), Humberto de Campos (1886-1934) e Lima Barreto (1881-1922). Destes autores, quatro já são bastante conhecidos entre os leitores de ficção fantástica: Álvares de Azevedo, Aluísio de Azevedo, Machado de Assis e Lima Barreto, mas os demais são gratas novidades no arcabouço da ficção fantástica nacional.
O primeiro conto selecionado pelo organizador, que decidiu dar ao volume um tratamento mais ou menos cronológico, é "Bertram", uma das cinco sangrentas histórias que formam Noite na taverna, de Álvares de Azevedo, o trabalho de horror mais conhecido das letras nacionais publicado originalmente em 1885. É justamente o texto mais forte do conjunto, com a história de um conquistador que vai até as últimas consequências por um rabo de saia. O estilo elegante de Azevedo reporta diretamente a Edgar Alan Poe.
"A dança dos ossos", de Bernardo Guimarães, publicado no livro Lendas e romances, de 1871, é uma sequência de três pequenos 'causos' de assombração, confrontando o racional e o irracional a partir de um assassinato brutal motivado por ciúmes.
Machado de Assis comparece com dois textos. Em "Sem olhos", publicado em 1876 no Jornal da Família, o narrador conta a história mórbida de seu vizinho de pensão, um homem incomum enlouquecido pela proximidade da morte. É curioso notar uma certa similaridade deste trabalho, em especial, às narrativas de H. P. Lovecraft, autor norte-americano que desenvolveu sua obra posteriormente, sem os componentes intolerantes deste, contudo. "A causa secreta", publicado 1875 na Gazeta de Notícias, é menos sobrenatural e, por isso mesmo, mais perturbador, pois trata de um distúrbio psicológico algo comum, o sadismo. A narrativa se resume a fatos simples, mas assustadores, que permeiam a vida de um casal e um amigo, num triângulo amoroso insuspeito.
Aluísio de Azevedo também comparece com dois textos. "O impenitente", publicado em 1898 na coletânea Pegadas, é uma narrativa clássico de horror gótico, em que um padre descontrolado pela paixão por uma mulher, tem uma experiência aterrorizante durante uma noite de insônia. O segundo texto do autor é o clássico "Demônios", a narrativa mais longa do volume, publicado em 1893 na coletânea de mesmo nome. É uma história surrealista, que flerta com a ficção científica, antecipando diversos temas do gênero. Conta a transformação por que passa o protagonista e toda a sua realidade a partir do momento em que as estrelas começam a se apagar.
"O defunto", publicado em 1907 por Thomaz Lopes, explora um tema recorrente no gênero: o enterrado vivo. Um homem desperta de seu sono cataléptico aprisionado em uma cripta de pedra e mármore. Ainda que tenha alguma liberdade para se deslocar, ar para respirar e a luz do sol que ilumina o lugar por uma pequena fresta, todos os seus esforços não permitem que ele saia dali. Conforme os dias passam, a fome e a sede ganham contornos cada vez mais mais desesperadores.
João do Rio era um autor que eu conhecia só de ouvir falar, e fiquei surpreso com a força dos dois textos de sua autoria que o organizador selecionou para esta antologia. Em "Dentro da noite", um homem conta aos companheiros de uma viagem de trem noturna, como sua vida desmoronou por causa de uma compulsão bizarra, e o excelente "O bebê de tartalana rosa", que conta a experiência desconcertante de um libertino durante a madrugada de uma quarta-feira de cinzas. Os dois trabalhos foram publicados respectivamente em 1906 e 1908 na Gazeta da Noite.
Gonzaga Duque é outra grata novidade, com o conto "Confirmação", uma história de fantasma com pendões de ficção científica, publicada originariamente em 1914 na coletânea Horto das mágoas. Conta o que acontece durante um experimento conduzido por um cientista em uma sessão de espiritismo.
Os dois textos de Humberto de Campos exploram a linha do terror, ou seja, o medo gerado a partir de um evento não sobrenatural, ambos publicados coletânea O monstro e outros contos, de 1932. "O juramento" acompanha ao relato de um bêbado louco que conta como sobreviveu a captura de uma tribo de índios antropófagos, e "Retirantes" mostra a dor e o desespero de uma velha matrona decadente cuja única escapatória à seca terrível que assola sua terra é ir embora dali. Mas, para isso, ela precisa de roupas.
Lima Barreto, autor que tem vários outros textos ligados a ficção fantástica, fecha a seleta com o conto "O cemitério", publicado em 1956 na coletânea Marginália, no qual um homem passando por um cemitério se encanta com a fotografia de uma jovem ali sepultada.
A antologia ainda conta com os ensaios "Uma literatura envolta em sombras", que contextualiza os contos selecionados, e "Sobre os autores", com biografias breves de cada autor apresentado, ambos assinados pelo organizador.
Percebe-se a evolução do gênero ao longo dos textos, que começam com o recorrente medo do morto e da morte, que também caracterizou as primeiras obras do gênero em outras culturas, avançando para questões psicológicas e patológicas conforme a morte se desmistificou, chegando até a especulações de ordem científica, o que demonstra que a literatura brasileira não esteve alheia ao gênero e fez uso dele de forma consistente. Percebe-se também que o exercício do gênero esteve intimamente vinculado a literatura popular publicada nos periódicos, que se define assim esse como o espaço "pulp" que a literatura nacional não experimentou plenamente.
Além de muito divertido, Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira é um volume valioso para aqueles que buscam entender o desenvolvimento da literatura de gênero no Brasil e seu valor dentro do cânone nacional.
— Cesar Silva
Nenhum comentário:
Postar um comentário