O Fim da Infância
(Childhood's End), de Arthur C. Clarke. Tradução de Carlos Angelo. Capa de
Thiago Ventura e Luiza Franco. 319 páginas. Editora Aleph, São Paulo, 2010.
Arthur C.
Clarke escreveu O Fim da infância entre fevereiro e dezembro de 1952,
quando tinha 35 anos. Publicado um ano depois, mostrou ser a sua obra-prima,
dentre outras de quilate semelhante que viriam posteriormente, como A Cidade
e as Estrelas (The City and the Stars; 1956) e Encontro com Rama
(Rendezvous with Rama; 1973).
O Fim da
Infância é uma das obras mais pungentes e influentes da ficção científica
da segunda metade do século xx por
tratar de um tema comum no gênero, a partir de uma perspectiva incomum – ao
menos para a época: uma invasão de extraterrestres aparentemente benignos que
ocultam da humanidade os reais propósitos da sua missão. Pode-se dizer que o
romance estabeleceu um marco de qualidade superior para o tema, que tinha como
principal referência o bélico e politicamente crítico A Guerra dos Mundos
(The war of the worlds), do também britânico H.G. Wells, publicado em
1898. Tornou possível que as interações entre espécies e civilizações
diferentes pudessem alcançar novos parâmetros de criação e interpretação,
fugindo do maniqueísmo do bem contra o mal – ou do alienígena vilanizado –,
então vigente, e inaugurou uma temática que seria recorrente na carreira de
Clarke: a da vida humana justificada por sua evolução final para uma
transcendência cósmica.
É este o livro
que a Editora Aleph oferece ao leitor brasileiro, numa edição primorosa em
todos os sentidos: solução instigante e perturbadora na ilustração de capa; boa
tradução de Carlos Angelo; um prefácio do autor escrito em 2000; a apresentação
de um primeiro capítulo alternativo escrito depois da Guerra Fria, mas depois
sabiamente rejeitado pelo autor; e a publicação inédita do conto “Anjo da
guarda” (1950), que inspirou a criação posterior da primeira parte do romance.
O Fim da Infância
segue o projeto da Aleph de relançar livros notáveis da fc há algumas décadas fora de catálogo. Títulos anteriores
incluem A Trilogia da Fundação (Foundation Trilogy), de Isaac
Asimov, e A Mão Esquerda da Escuridão (The Left Hand of Darkness),
de Ursula K. Le Guin. Este livro de Clarke apareceu primeiro em Portugal, ainda
nos anos 1950, na lendária Coleção Argonauta, em seu número 26, com o título de
A Era de Ouro. No Brasil, foi primeiramente lançado em 1979 pela editora
Nova Fronteira, com o mesmo título de agora. Trinta anos depois, justifica-se
um relançamento pela importância da obra e por colocar novamente nas livrarias
um autor importante e com histórico de boas vendas no país.
Estamos nos
anos 1970, em plena Guerra Fria e com americanos e soviéticos prestes a
lançarem seus foguetes para a Lua. Sem aviso algum, gigantescas naves
alienígenas surgem nos céus das principais cidades da Terra anunciando uma nova
era. Os homens não mais iriam ao espaço; ao contrário, aqueles a quem
buscávamos – uma civilização inteligente – vieram até nós. Para o leitor mais
jovem ou ligado ao cinema, a vinculação imagética é quase imediata à de filmes
como Independence Day (1996) e o mais recente Distrito 9 (2009).
Mas a possível semelhança se encerra na imagem das naves pairando nos céus das
metrópoles.
Os Senhores
Supremos impõem um despotismo esclarecido à humanidade: obrigam todos a
cessarem suas guerras e disputas nacionalistas. Em poucos anos é estabelecido
um governo mundial que se reporta aos alienígenas. Toda a administração
econômica e social é supervisionada por eles, que trazem um grau inédito de
qualidade de vida e paz a todos os homens e seres vivos do planeta. Uma
verdadeira utopia torna-se realidade, mas os novos governantes proíbem os
terrestres de deixarem o planeta e agirem em qualquer ramo de conhecimento –
ciência, religião e artes – sem que tenha a sua aprovação.
Os alienígenas
não explicitam as razões de sua visita e do seu domínio incontestável que
eliminou também a chance real de autodestruição com um holocausto nuclear.
Escrito nos anos 1950, o livro ecoava os temas sensíveis da política
internacional de então: a corrida armamentista entre americanos e soviéticos, e
o consequente perigo iminente de um conflito catastrófico.
O livro
discute em profundidade a questão da escolha moral entre uma situação
permanente de segurança e prosperidade versus a de livre arbítrio, quando
nossas escolhas encaminham o nosso destino. Se a utopia traz um bem estar
jamais conhecido, também esmorece as inquietações humanas, tornando as
sociedades e culturas mais indolentes e homogêneas: a busca do conhecimento e
da criação artística perde ímpeto e sentido em meio à riqueza material e a
resignação com a perda da liberdade.
Mas qual é
mesmo o objetivo final dos Senhores Supremos? A resposta vem de forma chocante.
Passados 50 anos, os Senhores Supremos mostram-se fisicamente pela primeira
vez. E a imagem apavora, pois remete ao que existe de mais sinistro no
imaginário religioso ocidental. Seriam eles o cumprimento às avessas de uma
profecia? Uma possível interpretação místico-religiosa para o livro é
inevitável, mas não é a única, embora possivelmente a mais perturbadora.
Senão vejamos.
A analogia entre os Senhores Supremos e o que eles oferecem – ou melhor, impõem
– à humanidade é clara: em troca da paz e prosperidade, levaremos por fim as
suas “almas”, representadas neste caso pelas figuras puras e imaculadas das
crianças. Só que aqui talvez o fato seja ainda mais sombrio, pois não foi – e
nem poderia ser – dado a conhecer ao homem o verdadeiro propósito das intenções
dos conquistadores extraterrestres.
Quando li este
livro pela primeira vez, aos 17 anos, tive um grande impacto existencial: nem a
busca pela felicidade, a luta pela liberdade ou por ideais, a crença em Deus ou
a esperança num porvir fazia sentido nesta vida. A humanidade encontraria seu
sentido na interação com forças desconhecidas do Cosmos. Mais propriamente, no
romance, estava condenada, com uma última geração de crianças a sofrer súbitas
mutações que as transformaram em seres com um propósito além do compreensível.
Nesse esquema, mesmo os Senhores Supremos são apenas os guardiões de um
processo controlado por uma espécie ainda superior a ela, que manifesta seu
poder através da indução de mutações em outras espécies, que desenvolveriam
incríveis poderes mentais rumo a uma união coletiva entre diferentes
civilizações do Universo.
Relendo este
livro agora, mais de trinta anos depois, fico com uma sensação de renovado
estranhamento sobre as implicações existenciais, ainda que relativizada por
outras experiências e formas de conhecimento. Clarke defende que o Universo não
é para o homem, pois é um ambiente incognoscível à nossa capacidade de
compreensão, e em relação com forças que muito nos superam. Tal argumento é
estranho vindo dele, que se notabilizou em incentivar a exploração do espaço e
os avanços da tecnologia, e ele mesmo sublinha esta aparente contradição no
prefácio do livro. Talvez para se eximir, na edição original da obra, era
antecedida pela frase: “As opiniões expressas neste livro não são as do autor.”
Como observa David Pringle, em Science Fiction: The 100 Best Novels
(1985), é possível que Clarke tenha feito um paralelo dos Senhores Supremos com
o papel dos britânicos como colonizadores civilizadores da Índia e
outros países do Sul da Ásia – que, no caso, seriam os terrestres no romance –,
até cumprirem sua “missão” e os libertarem no final dos anos 1940, na mesma
época em que Clarke escrevia O Fim da Infância.
Em todo caso,
a linha de interpretação místico-religiosa, apesar de toda a moldura realista
que Clarke procura construir no mundo criado pelos Senhores Supremos, dá também
a medida de sua linha de pensamento e abordagem que viria a seguir, em obras
como 2001: Uma Odisséia no Espaço (2001: A Space Odissey, 1968) –
livro e filme –, que, inclusive, é mais sutil a respeito dos impactos do
relacionamento da humanidade com os mistérios do Universo. Nesse sentido, O Fim
da Infância é mais contundente e explícito, mas não menos inquietante.
Se o título do
romance nos remete ao encontro da humanidade com o fim de seus sonhos e
ilusões, a obra mostra maturidade precoce do autor em abordar um tema polêmico
e fascinante, ajudando a iluminar – possivelmente influenciado por sua convivência
com as culturas hindu e budista –, eventuais explicações para a condição humana
e sua relação com o Universo, que estará sempre a surpreender. Seja pelo
encantamento, seja pelos mistérios que nos intriga.
– Marcello Simão
Branco
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