sábado, 14 de janeiro de 2023

Sob a Redoma

Sob a Redoma (Under the Dome), Stephen King. Tradução: Maria Beatriz de Medina. Capa: Fernanda Mello sobre design original de Rex Bonomelli. 954 páginas. Rio de Janeiro: Objetiva/Suma de Letras, 2012. Lançamento original em 2009.

 



Entre as várias características de Stephen King está o tamanho dos seus livros. A maioria é enorme e, ao que parece, conforme os anos avançaram e sua reputação – de vendas e prestígio – se consolidou, ele se sentiu livre para escrever histórias cada vez mais longas. Tal é o caso de Sob a Redoma. É o maior livro que li dele – e talvez mesmo o seu maior –, além de, provavelmente, o de mais páginas que li. Mas para quem gosta do autor, estes volumes grandes e pesados não intimidam. O contrário até. Pois podemos nos envolver profundamente no mundo criado por ele.

Sob a Redoma, especialmente, é extremamente vigoroso. Impressiona como ele consegue conduzir um enredo tão ambicioso, com tantos personagens e situações, sem pontas soltas ou perda de interesse. Não há barriga, expressão do jornalismo para uma parte do texto desnecessária ou que o interesse pela leitura tem uma queda. Não! A história flui de forma crescente, com muito drama, suspense e reviravoltas. Tudo isso torna cada vez mais difícil largar a leitura. Um clássico page turner.

Mas prazer talvez não seja a melhor palavra para exprimir o que se sente ao se envolver com esta história. Pois ela leva longe outras características marcantes de King: o sofrimento dos personagens, e a compaixão e dor que sentimos. Isso porque, como sabido, os personagens criados por ele são extremamente bem construídos. Mais humanos do que muitas pessoas reais que conhecemos, já se disse. E, com isso, nos tornamos cúmplices e participantes dos dramas pelos quais eles passam. Outra característica importante é a premissa do qual parte a história. De uma realidade cotidiana aparentemente banal e, no caso, bem provinciana, o fantástico se insere e a tudo desestrutura. Toda a realidade anterior tem de lidar com a nova situação. Neste caso tão surpreendente quanto chocante.

 Num dia qualquer de meados de outubro na cidadezinha de Chester´s Milll, no estado do Maine – como quase sempre ocorre no universo de King –, de forma súbita e arrebatadora uma cúpula invisível a envolve. Um helicóptero se choca, depois um caminhão e alguns carros. Pessoas tem suas mãos decepadas e alguns animais são cortados ao meio. Ninguém entende o que é o fenômeno, do que é feito e como e por que surgiu. Apenas que, para todos os efeitos, a cidade sob a redoma, está isolada do resto do mundo.

A partir daí, King desenvolve um amplo painel do que pode ocorrer à comunidade quando confrontada com uma situação limite. Tudo o que mantém as pessoas controladas é desafiado: as leis, simples regras de convivência, o papel do Estado, valores éticos e morais. E, neste caso, a começar pelos próprios agentes responsáveis por manter “a lei e a ordem”. Isso porque, um dos políticos que administra a cidade, aproveita a crise, para dar vazão a suas tendências autoritárias e, mais que isso, homicidas.

A pequena Chester´s Mill tem apenas 3 mil habitantes, pouco mais que uma vila. E nos EUA cidades tão pequenas não são governadas por um prefeito. A responsabilidade cabe a três vereadores. Eles administram e as leis são votadas numa assembleia com os próprios habitantes. Soa democrático, mas, no caso, ocorre uma concentração de poder nas mãos de um dos vereadores, Big Jim Rennie. Ele assume a liderança, mas deturpa completamente a situação, se tornando cada vez mais poderoso, nem que com isso, fomente o pânico e a desordem para conseguir mais poder. Isso porque, desta forma, ele pode esconder os crimes do qual é responsável. Na verdade, ele é um poderoso traficante de drogas, produzidas num laboratório oculto numa estação de rádio religiosa. E com a participação do próprio pastor da cidade. Com a redoma, ele tem de proteger o segredo desta ilicitude. E não hesita em perseguir e eliminar possíveis opositores. Como se percebe, mais terrível que a própria redoma, é o homem o grande problema da Chester´s Mill aprisionada.

Dale Barbara, um tenente reformado do Exército e veterano condecorado da Guerra do Iraque, trabalha fazendo sanduíches populares numa lanchonete. Contudo, após se envolver numa briga com o namorado – e seus comparsas – de uma garçonete que havia flertado com ele, tenta ir embora da cidade, mas acaba preso dentro da redoma. Assim, seus inimigos o infernizam, e um deles é Junior, filho de Big Jim. Só por aí, a vida de Barbie – como é pejorativamente chamado – não seria fácil, e ele se tornará o principal obstáculo do poderoso vereador. Principalmente, quando o Exército resolve reincorpora-lo ao serviço, e com a patente de coronel. A cidadezinha é colocada em estado de sítio pelo presidente Obama, autorizando que Barbara se torne o novo comandante, pelo menos até resolver a crise.

O decreto federal não é obedecido por Rennie, ainda mais depois que dois mísseis cruise se chocam com a redoma e não a rompem. Ele percebe que talvez esta situação demore ou seja definitiva, se nem a força militar mais poderosa do mundo tenha poder para resolvê-la. Assim, sente-se livre para executar seu plano de se tornar o dono absoluto da cidade. Aparelhando a polícia com dezenas de jovens inexperientes, baixando decretos polêmicos, como o fechamento do mercado da cidade, fomentando o pânico e a confusão – roubando, por exemplo, os geradores do hospital –, e, claro, perseguindo impiedosamente quem tenha coragem de questioná-lo. O primeiro da lista é Barbara, mas também a jornalista Julia Shumway e o médico assistente Rusty Everett, além de outros que, aos poucos, percebem o terror a que estão sujeitos sob tal tipo de liderança. Mas o alvo principal é Barbara. E ele é acusado por quatro assassinatos que, obviamente, não cometeu. Mas sim Rennie – para calar quem sabia dos seus podres –, e seu filho – duas garotas, uma delas a garçonete. Com o requinte de praticar necrofilia com elas. O objetivo é tornar Barbara o culpado não só pelas mortes, mas também pela própria redoma, através de uma teoria da conspiração de que ele teria participado de uma experiência mal sucedida do governo americano.

King elabora uma profunda reflexão sobre quem são realmente as pessoas em situações críticas, em que a luta pela sobrevivência aflora de maneira dramática. Do quanto as pessoas são realmente boas ou más; altruístas ou egoístas; solidárias ou individualistas; empáticas ou psicopatas. E é particularmente interessante, como são mostrados os pensamentos dos personagens. Mesmo os de índole decente, apresentam sentimentos ruins. Isso porque, estas dicotomias, estão no fundo presentes em cada um de nós, pois ninguém é totalmente uma coisa ou outra o tempo todo. E isso me recordou do romance O Senhor das Moscas (Lord of Flies; 1954), de William Golding (1911-1993), no qual um grupo de crianças tem de sobreviver numa ilha desabitada após serem os únicos sobreviventes de um acidente aéreo. O resultado é chocante, quando algumas delas se tornam cruéis na tentativa de liderar as demais. Assim, King está a refletir sobre o quanto os valores, instituições e leis que mantém a civilização são tênues, embora, de fato, só ilustre o quanto são importantes. É como disse um dos formuladores da Constituição norte-americana Alexander Hamilton (1755-1804): “Se os homens fossem anjos, não precisariam de leis”.

King é hábil e maduro no desenvolvimento destas questões, e talvez o fato de ter retomado a história quase 30 anos depois ajude a entender. Isso porque o romance é um projeto antigo, elaborado pela primeira vez em 1976, e depois, numa segunda vez no início dos anos 1980, com o título inicial de The Cannibals. Ele conta que escreveu apenas 75 páginas e desistiu com receio de encarar uma obra muito ambiciosa e complexa. Pois a obra foi finalmente retomada em 2007, e o resultado final mostra que ele tomou a decisão correta.

Mas a premissa fantástica da história requer uma resposta. Afinal, o que é a redoma? Um campo de força que circula todo o território da cidade, com alguns quilômetros de altura e de profundidade, que se mostra inexpugnável até a mísseis balísticos. Tem de ser gerado por alguma fonte de energia, e assim, Barbara lidera a busca em encontrar, eventualmente, algum tipo de gerador ou coisa parecida. Que acaba sendo encontrado numa fazenda desabitada. No caso, uma caixa preta do tamanho de um notebook com o peso de algumas toneladas, e que emite uma luz piscante e que gera radiação ao seu redor. Barbara e alguns outros, ao olharem dentro da caixa avistam estranhos seres, cabeças de couro de aspecto infantil. Não há certeza de quem são, mas deduzem, com propriedade, que são extraterrestres.

Como lembra Julia Shumway, a partir de uma experiência traumática na infância, é como se os habitantes de Chester´s Mill fossem formigas aprisionadas. Tal como algumas crianças levadas fazem. A metáfora é duplamente satisfatória. Primeiro, porque seriam crianças as mais propensas a executar uma experiência cruel como esta, como se fosse uma brincadeira, por que não teriam, ainda, amadurecido em suas personalidades e valores do que é certo ou errado. Com conceitos morais ainda a serem desenvolvidos. E em segundo lugar, porque mostraria o quanto nós, seres humanos, somos insignificantes em relação ao universo como um todo. Em nossa mesquinharia e arrogância muitas vezes perdemos a noção do quão frágeis somos diante de forças e situações que podem se tornar totalmente sem controle de nossa parte.

Este romance massivo – que conta com uma bem-vinda lista de personagens e o próprio mapa da cidade –, foi de certa forma ignorado pelos fãs mais tradicionais de FC, talvez pela vinculação principal de King com o gênero horror. Mas não se engane: é um romance de FC. Mas isso é um pormenor. Como disse antes, o que importa e assombra é a força narrativa do autor e personagens tão críveis que sentimos por eles o que sentiríamos por pessoas próximas. Um livro poderoso e que rendeu uma minissérie com 39 episódios, entre 2013 e 2015.  Com dois títulos no Brasil, O Domo e Under the Dome: Prisão Invisível, foi bem realizada, mas aquém do potencial explorado no romance. Pois esta é uma daquelas histórias das mais intensas e para serem lembradas com muita emoção.

Marcello Simão Branco

 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Ficções Amazônicas

 Ficções Amazônicas, Aparecida Vilaça e Francisco Vilaça Gaspar. Capa: Paula Carvalho. Ilustrações internas: Paloma Ronai. 211 páginas. São Paulo: Todavia, 2022.

 


A Amazônia é o maior e mais conhecido bioma brasileiro, que se estende por mais da metade do território brasileiro e alguns países vizinhos da América do Sul. Região de natureza poderosa, misteriosa e indomável, suscita, na mesma medida, paixões e cobiças, não poucas neste caso, criminosas. Por si só já é um manancial fantástico sem precisar que seja trabalhado explicitamente como uma expressão da ficção especulativa. E é justamente nas bordas entre o mainstream e o fantástico que os Vilaça escreveram a coletânea Ficções Amazônicas.

O livro reúne 11 histórias, algumas mais longas e outras mais curtas, tendo como painel temático de exploração imaginativa a Amazônia. Os textos ora flertam com o fantástico, ora o assumem, embora num plano oblíquo, como recurso para o drama, ao invés de condutor da narrativa em si. Nos dois casos, os autores mostram conhecimento de base acadêmica – Aparecida é antropóloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)  e Francisco é doutor em química, também pela UFRJ –, mas principalmente uma prosa fluente, limpa, agradável, no qual tanto personagens brancos, como indígenas se movem em busca de compreender as possíveis conexões dos mistérios da natureza e e sua cosmogonia com o mundo cartesiano e materialista do homem urbano.

Desta forma, em “Cinco amigos e um funeral”, um deles está com uma doença terminal e pede aos companheiros que um último desejo aconteça em plena selva amazônica. É um texto forte e surpreendente, que chega a chocar, pois o tal desejo é simplesmente ser devorado pelos amigos após sua morte. Confesso que uma novela sobre canibalismo não é o que eu esperava e talvez esta história pungente devesse, pelo seu impacto, ter sido deixada para o final e não no início. Isso porque as histórias subsequentes não apresentam o mesmo impacto dramático, embora a maioria tenha outros méritos.

Contos como, por exemplo, “O hipopótamo de Don Pablo”, “Garrincha da floresta” e “A epidemia”. Cada qual aborda um aspecto particular do viver amazônico. Na primeira, o sumiço de um hipopótamo – que originalmente pertencia ao zoológico do traficante colombiano Pablo Escobar e foi transformado numa reserva após sua morte – cumpre uma função fantástica na figura de uma mulher à procura dos seus filhos. “Garrincha da floresta” versa, em sentido amplo, sobre as transformações físicas e sobrenaturais no contato com elementos da natureza. E “A epidemia”, de uma doença que acomete aos indígenas após contato com os brancos, ‘sujos’, com suas impurezas externas e internas. Apesar do final um tanto inverossímil é uma noveleta forte, que demonstra bem como levamos a corrupção, em muitos sentidos, a povos e lugares que habitam uma espécie de outro universo filosófico, no qual vale o ser e não o ter.

Duas outras histórias acentuam o contraste entre o mundo natural e a sociedade civilizada. Primeiro com “Bristol, Amazônia”, interessante variação sobre o tema do portal espacial que conecta dois lugares de forma aparentemente fantástica, porque inexplicável. A partir de uma balada na cidade inglesa de Bristol, duas garotas, uma inglesa e uma salvadorenha, emergem, de repente, em um rio, onde são avistadas por uma indígena adolescente. Esta, inclusive, já havia visto no mesmo local um ano antes, um homem branco também surgir, mas nada contou a ninguém. Agora, ajuda e abriga as duas forasteiras. Depois de algumas semanas, elas conseguem voltar para suas casas. Mas a história ainda reservaria mais uma surpresa para a nativa, em sua conexão com o estranho portal entre um rio e o banheiro de um pub distantes milhares que quilômetros. Outra história semelhante é “Nova Iorque, New York”, em que uma jovem bem-nascida de uma família tradicional de Manaus, perto de se casar, foge da sua segurança material, para viver com o indígena que a havia retratado num quadro. Pois os efeitos desta decisão, que a conduziu a uma nova vida totalmente despojada no seio da natureza e seus valores, reverberará em sua neta, quando ela viaja para a Big Apple, décadas depois, e se depara, em uma galeria de arte, com uma exposição inusitada retratando os trabalhos de seu avô.

Outras histórias a trabalhar os contrastes entre os valores ocidentais e os muitos modos de vida dos povos originários e o imaginário amazônico nele embutidos, se encontram em “O general e o professor”, “Radiofonia” e “No rastro de Macunaíma”. Três boas histórias, principalmente a primeira, mais assumidamente fantástica na figura de um general venezuelano que, aparentemente, teria se tornado imortal, e retornaria, de tempos em tempos, para ajudar os indígenas a se defender das agressões e ameaças de políticos e garimpeiros. Já as outras duas, não tem o mesmo efeito, embora não sejam destituídas de interesse. “Radiofonia” aborda uma possível conexão provocada por sinais de rádio captados a partir da experiência de um estudante de ocultismo, quando viaja para a Amazônia. Através da sua imersão com uma erva, toma contato íntimo com espíritos xamânicos, e se conecta com mais dois indígenas, nos quais cada um deles irá contribuir para sua busca por conhecimento e transcendência. Já “No rastro de Macunaíma” fecha o livro e, como indicado no título, faz alusão ao famoso personagem de Mário de Andrade. No caso, da busca obsessiva de um colecionador por uma pedra chamada muiraquitã que ele, sem saber como, perdeu. Vai reencontrá-la com um líder indígena no meio da selva, que se acredita como filho de Deus. Embora haja uma conclusão para a história, ela soa insatisfatória, meio gratuita, porque não apresenta completude.

Inclusive, esta característica meio que se repete em algumas das outras histórias, deixando uma sensação de, “mas é só isso?”. E não no sentido de os autores contarem uma história convencional, mas de explorarem um pouco mais suas possibilidades. Isso chega a incomodar, por exemplo, no conto “Dezembro”, quando um doutorando em Antropologia pega malária numa região remota na fronteira com a Colômbia, e à espera de socorro, vai repassando sua vida. Há uma espécie de corte porque, sem mais, a história acaba e fica-se sem saber o que afinal aconteceu com ele.

Outro aspecto da coletânea é a falta de drama da maioria das histórias. Elas se resolvem – quando o caso – sem grandes conflitos e contradições entre os personagens. Como se houvesse um plano pré-estabelecido para colocá-los sob uma determinada perspectiva. Como disse acima, a única história que foge deste roteiro é a primeira. Os autores optaram por trabalharem em todas as narrativas por ações estanques que convergem num certo momento, construindo um mosaico. A forma de fato é boa, pois o texto é, como já dito, de primeira qualidade, mas o conteúdo dramático me pareceu aquém do que poderia.

A dupla de autores apresenta as possibilidades fantásticas de uma terra tão fascinante quanto incompreendida, a partir, principalmente, de um viés etnográfico, fruto de suas formações, principalmente de Aparecida. Mas esta base acadêmica se mostra mais efetiva, em muitos casos, do que a uma desejada criação mais ousada e fantástica. Por outro lado, o aspecto social e crítico se sobressai. Contundente, contra o preconceito, a miséria e o abandono dos povos originários; de sua captura por pastores e valores religiosos que conspurcam completamente suas vidas e a rica conexão com a natureza. Da cobiça e exploração econômica do qual a região é historicamente afetada e da falta de empenho e, mais recentemente, contribuição ativa do governo federal num processo de desmatamento, tráfico de madeira, garimpo ilegal e violências variadas aos povos originários, sua fauna e flora únicas em todo o planeta.

Se a Amazônia já conta com um corpus de tradição e prática razoavelmente relevante na literatura brasileira – basta lembrar, rapidamente, dos Contos Amazônicos (1893), de Inglês de Sousa (1853-1918) e dos romances de Márcio Souza –, podemos dizer que a ela também se acrescenta a ficção científica e o horror, e não nos deixa mentir tanto com obras clássicas, como A Amazônia Misteriosa (1925), de Gastão Cruls (1888-1959), e A Mãe do Sonho (1990), de Ivanir Calado, como em termos contemporâneos, por exemplo, na ótima trilogia de novelas de Roberto de Sousa Causo: Terra Verde (2000), O Par (2008) e  Selva Brasil (2010). Mais recentemente foi lançada a instigante antologia Encantarias, vol. 1: Histórias de uma Amazônia Futurista (2020), organizada pelo coletivo Visagem, e composta por seis contos de FC, que especulam com a ótica do porvir sobre os muitos problemas da região. Isso só evidencia a urgência e atualidade do tema e o quanto a literatura de FC brasileira e afins tem muito a acrescentar. Então, neste sentido, a contribuição de Ficções Amazônicas se dá, como dito antes, nas fronteiras entre o mainstream e o fantástico. E por esse aspecto é um livro que deve ser conhecido.

– Marcello Simão Branco


terça-feira, 15 de novembro de 2022

Vultos Sobre o Sol

 Vultos Sobre o Sol (Shadows in the Sun; 1954), de Chad Oliver. Tradução: José Sanz. Capa: Orestes de Oliveira Filho. 175 páginas. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1974. Lançado originalmente em 1954.

 


O tema da invasão alienígena é um dos mais populares e abordados na ficção científica. A partir do paradigma da invasão clássica de A Guerra dos Mundos (The War of the Worlds; 1898), de H.G. Wells (1866-1946), tanto esta vertente bélica, como muitas variáveis se desenvolveram. Tal como este Vultos Sobre o Sol, do escritor e antropólogo Chad Oliver (1928-1993).

O jovem Paul Ellery está a fazer um estudo de campo em Jefferson Springs, uma das muitas e inexpressivas cidadezinhas do interior dos Estados Unidos, com seus costumes e valores aparentemente padronizados e conservadores. Isso era o que Ellery esperava como hipótese de pesquisa, dentro do seu campo de atuação, a Antropologia. Mas após alguns meses vivendo no local, ele está inseguro e cheio de dúvidas. É que, apesar das aparências indicarem o que ele esperava de uma cidade como esta, na verdade as coisas não eram o que pareciam. Isso porque, conforme constatara, todos os moradores moravam na cidade há no máximo quinze anos. E não havia registro dos habitantes anteriores. Até que, numa certa noite, ao rodar com seu carro pelos arrabaldes, avistou o que parecia ser uma nave. E dela saíram alguns dos respeitáveis cidadãos de Jefferson Springs!

Com veio a saber logo depois, Paul Ellery havia visto uma nave extraterrestre. Isso, de fato, resolvia em parte suas dúvidas, mas logo o encaminhou para desdobramentos muito mais perturbadores. O que fazer? Isso de fato era o que ele pensava que fosse? Após investigações posteriores sem nada comprovar, ele é visitado em seu quarto de hotel por dois homens com aspecto estranho, que solicitam que ele os acompanhe. O receio foi vencido pela curiosidade, e Paul Ellery se deixou conduzir. Quando percebeu, entrou na mesma nave esférica que havia visto e de lá foi levado a uma nave muito maior que estava na órbita da Terra.

Um dos extraterrestres, chamado John, lhe contou em detalhes a verdade: Jefferson Springs era, na realidade uma colônia que servia como ponte de entrada para uma espécie humanoide alienígena viver na Terra. Tinham como objetivo ocupar, no máximo, 15% da superfície do planeta; meta que também seguiam com relação a outros planetas também por eles colonizados. Isso porque, havia um problema insolúvel de superpopulação humana na galáxia, que se espalhava por uma miríade de mundos, organizados numa espécie de federação interplanetária. Assim, para minorar o problema, estabeleciam colônias de moradores em planetas com as condições climáticas semelhantes aos de suas origens. Em tese, não interfeririam com a vida nativa, até onde isso fosse possível. Mas como Paul poderia ter certeza disso? E de todas estas informações fantásticas?

A partir daí o antropólogo chega à conclusão de que sua vida e seus objetivos não tinham mais sentido. Mas será mesmo que tudo isso era verdade? De fato, há um quê de paranoia que perpassa a trama e a angústia do protagonista. Nesse sentido, Vultos Sobre o Sol se insere dentro da temática das invasões no contexto dos anos 1950: paranoia, desumanização, substituição dos nativos por cópias, conservadorismo dos costumes, colônia no interior rural do país. Todos estes tópicos presentes neste tipo de história que, de certa forma, serviu como uma metáfora dos receios norte-americanos diante da ameaça comunista representado pela União Soviética: igualitarismo, perda da identidade individual, coletivismo econômico, autoritarismo político etc. Neste aspecto, a obra mais conhecida é Os Invasores de Corpos (The Invasion of the Body Snatchers; 1955), de Jack Finney (1911-1995), de fato um romance que inclui todos estes aspectos de forma contundente e exemplar. Talvez por isso mesmo, adaptada três vezes ao cinema. Mas o romance de Oliver foi escrito um pouco antes, mostrando que o tema estava pairando no imaginário do país, apenas à espera para desabrochar na obra mais madura que Finney veio a escrever.

Mas isso não significa que o livro de Chad Oliver não esteja à altura do mais conhecido. Não só o antecipou, mas, principalmente, pelas possibilidades que abriu ao tema da invasão insidiosa, sub-reptícia, oculta e, por isso mesmo, difícil de ser vista e comprovada. Os humanoides dão duas opções a Paul Ellery: aderir à sua cultura e ser, aos poucos, convertido culturalmente como um deles; ou continuar a viver sua vida, pois não seria incomodado. Ele acaba aceitando, talvez de forma resignada demais, a primeira das ofertas. Procura se integrar à comunidade de Jefferson Springs, mas no íntimo espera descobrir algum ponto fraco que possa leva-lo a justificar a decisão pela outra opção. No fundo, o que ele procura é encontrar uma maneira de recuperar os valores e motivações de sua vida anterior. É nesta luta interior e de uma solidão angustiante que o romance tira o seu maior interesse.

Mas talvez outras ações pudessem ser tomadas. Isso porque Paul Ellery é, talvez, racional demais – por ser um cientista? –, em reconhecer que ninguém o levaria a sério, que seria ridicularizado. Lembrei aqui da cultuada série de TV Os Invasores (The Invaders; 1967-1968), criada por Larry Cohen (1936-2019). O arquiteto David Vincent descobre que a Terra está sendo invadida, mas ao invés de se conformar ou tentar entender os motivos dos alienígenas, resolve lutar para desmascará-los e derrotá-los. Mesmo que quase ninguém o leve a sério. Isso porque, numa situação como esta, teórica e provavelmente, a reputação pessoal seja menos importante do que os fatos em si e suas consequências. Mas Paul Ellery segue apenas a opção de tentar achar alguma brecha por dentro. Como já dito, menos para desbaratar os reais objetivos de um império interestelar do que para encontrar alguma motivação para seguir sua vida. O que, de qualquer forma, poderá encaminhá-lo a uma revelação, de certa forma surpreendente, na conclusão da história.

Vultos Sobre o Sol é um romance competente de FC sobre o tema da invasão e, mais que isso, dos efeitos possíveis dos choques culturais causados pelo encontro de duas culturas muito desiguais, principalmente em termos tecnológicos. Aqui é encantador como Oliver cita e explora situações aqui mesmo da Terra, quando do contato da chamada civilização com culturas indígenas, fazendo uso de seu próprio conhecimento teórico e empírico como pesquisador acadêmico. Afinal, em tese, nossa civilização estaria em condição semelhante ao dos indígenas, caso tivesse contato com uma espécie alienígena muito mais avançada em termos tecnológico e de alcance estelar.

Marcello Simão Branco


terça-feira, 25 de outubro de 2022

Curva de argumento

 


Miguel Carqueija

 

            Em pleno Porto Espacial de Jacarepaguá, o Capitão Barbosa e seu imediato Zé Peroba caminhavam pela Alameda J das lojas. Barbosa ia fazendo compras e aos poucos enchendo a sua mochila de couro. A certa altura virou-se para o outro e indagou:

            — E afinal, Peroba, você não vai comprar nada?

            — Com que dinheiro, Capitão? — respondeu o imediato, com cara de réu.

            — Ora essa, com o seu!

            — Capitão Barbosa, o senhor ganha dez vezes mais do que eu, e além disso...

            — Que dez vezes o que! São só oito! Ou você esquece que eu sou o comandante da Antaprise? Não posso ganhar salário de mendigo!

            Qualquer resposta do Peroba ficou entalada na garganta. Barbosa prosseguiu:

            — Já gastou todo o seu salário?

            — Bem, capitão, sabe aquele joguinho...

            — É por isso que eu não jogo! Que isso lhe sirva de lição! Ah, vamos ver aqueles mangás ali!

            Entraram os dois numa mangazeria. Ler quadrinhos japoneses era uma das manias do velho Barbosa. Peroba suspirou de enfado, já preparado para passar horas naquele estabelecimento.

            O velho Isolino, dono do negócio, quase grunhiu, pois Barbosa demorava muito para escolher, ficava olhando centenas de mangás. E realmente já estavam lá há quase uma hora quando subitamente, ao tentar puxar um número de “Confusão cósmica”, Barbosa esbarrou com outra mão. Voltou-se e deparou...

            — Arquibaldo!

            — Barbosa!

            — Que faz aqui? Largue o meu mangá!

            — Que quer dizer? Largue você! Eu peguei primeiro!

            — Sem essa! Eu peguei primeiro!

            — É meu!

            — Não, seu pilantra, é meu!

            — Pilantra é você! Lembro muito bem da barbeirada que você fez há dez anos, danificando a Antaprise...

            — Você é que fez a barbeiragem! O meu papagaio de estimação ficou gago de susto...

            — Senhores, por favor — interveio o Isolino — não rasguem a revista! Me dêem isso aqui!

            Isolino pegou a revista e colocou-a na caixa, aos cuidados da Arlete.

            — Um deles vai comprar. Guarde enquanto isso!

            Zé Peroba se aproximou da caixa, interessado em puxar conversa. Afinal, ela era uma senegalesa linda...

            — Parado aí! Nem pense em se apossar do mangá!

            Peroba se virou: era o Bicudo, primeiro oficial do Capitão Arquibaldo.

            — Você também por aqui?

            — E daí? Você também, não é?

            — Por favor, senhores! — exclamou implorativamente o dono do local, vendo que os quatro estavam prestes a se engalfinharem por causa de uma revista. — Só restou esse exemplar desse número, mas posso encomendar outro... vocês já espantaram todos os fregueses...

            — Pois eu não vou esperar! Eu quero esse! — gritou o Capitão Barbosa.

            — Egoísta! Eu é que não vou esperar! Eu quero esse!

            Arquibaldo e Barbosa agarraram-se mutuamente e foram ao chão, derrubando uma estante repleta, para maior desespero de Isolino e pânico de Arlete e Júlia, as duas funcionárias. No instante seguinte Zé Peroba e Bicudo também se engalfinharam.

            — Parem! Ordeno que parem! Acabem com essa briga imediatamente! Eu resolvo esse assunto!

            Pararam todos instantaneamente, espantadíssimos. Surgira uma figura estranhíssima, um sujeito alto, hirsuto, descabelado, trajado de maneira antiquada e de aspecto feroz.

            —Quem é você? — perguntou o Capitão Barbosa, esforçando-se por se levantar.

            — Ora, quem sou eu! Então não me reconhece, Capitão Barbosa? Eu sou o famoso psiquiatra, o Doutor Mexilhão!

            — Nunca ouvi falar. Por favor, não gosto de ser interrompido quando estou brigando! Aliás, como sabe o meu nome?

            — Está escrito no seu crachá!

            — Ah, tá. Ora bolas! Esqueci de guardá-lo — assim dizendo, Barbosa colocou o objeto num dos grandes bolsos da jaqueta.

            — O que quer o senhor? — quis saber o Capitão Arquibaldo. — Não marquei nenhuma consulta, muito menos consigo.

            Pondo as mãos atrás das costas o Dr. Mexilhão, que por sinal carregava uma vasta mochila de magiplast, acercou-se dos dois beligerantes:

            — Isso não é problema, posso dar uma contulta grátis e dupla como propaganda dos meus inestimáveis serviços. Podem se considerar privilegiados. Você é o Capitão Arquibaldo, não é?

            — Como você sabe? Não carrego nenhum crachá.

            — Está bordado na sua jaqueta.

            Arquibaldo enrubesceu.

            — Avisei a mamãe que não precisava fazer isso.

            — O que eu percebi é que vocês dois são um caso preocupante de regressão milenar.

            — O que quer dizer com isso? — indagou Barbosa.

            — Que vocês, sendo comandantes de astronaves, na ponta do progresso, comportam-se como dois trogloditas, é isso que eu quis dizer.

            — Mais respeito! — exigiu o Capitão Barbosa. — Não sabe quem eu sou? O que eu fiz?

            — É claro! — e Mexilhão fungou. — Você é o capitão que ao aterrissar com sua nave abalroou a torre de controle no Astroporto de São Paulo...

            — Bem, bem, isto é, quero dizer...

            — E eu? — berrou Arquibaldo. — Eu não sou um palhaço, sou um respeitável comandante espacial!

            — Eu bem sei — disse Mexilhão, sarcástico. — Você só pousou por engano no campo de futebol, acabou com a partida e ainda incendiou o gramado.

            — Eu... ãh... como é que você sabe?

            — Sou um homem bem informado! Agora se me dão licença, darei uma solução imediata a esse ridículo litígio e garanto que os dois sairão daqui como amigos!

            — Está bem, falastrão. Quero ver que espécie de solução você vai dar.

            — De acordo — acrescentou Barbosa.

            — O que você acha? — consultou Peroba ao Bicudo.

            — Não sei. Isso está esquisito — e Bicudo deu de ombros.

            Isolino dirigiu-se ao Mexilhão:

            — Meu senhor, se puder apaziguar os ânimos eu ficarei eternamente grato!

            — Não precisa tanto, então agora eu vou agir!

            Chegou para a Arlete:

            — Empreste-me a revista, por favor.

            Arlete, meio assustada, olhou para Júlia, que não falou nada, depois para Isolino e este assentiu. Então ela entregou. Barbosa e Arquibaldo, intrigados, não tiravam os olhos do barbudo psiquiatra.

            — Preciso de uma mesa vazia — rosnou Mexilhão para Isolino.

            — É pra já, senhor.

            Colocou alguns livros num espaço qualquer numa estante, e mostrou a mesa:

            — Serve essa, senhor?

            — É de madeira. Ótimo. Agora pode se afastar.

            Sem muita vontade de contrariá-lo o Sr. Isolino se afastou um pouco e o médico depositou o mangá sobre a mesa. Então pôs-se a folheá-lo.

            — Não está pensando em ler o mangá, eu presumo — observou Barbosa.

            — Claro que não. Detesto mangás! Só estou querendo achar o meio. São 240 páginas... está bem, então tem que ser na 120.

            Abriu o mangá nas páginas 120-121, deixou-o assim escancarado sobre a mesa e recuou ligeiramente. Então buscou no interior de sua japona e lá de dentro retirou uma machadinha. E antes que alguém pudesse — ou ousasse — detê-lo ele desceu a lâmina sobre o mangá, partindo-o ao meio certeiramente e de quebra partindo a mesa em duas partes.

            Novas pessoas que se haviam arriscado a entrar na livraria saíram correndo. As outras sete pessoas que lá já estavam ficaram todas congeladas e mudas. Impassível, Mexilhão guardou a machadinha, abaixou-se, recolheu os dois pedaços da revista e aproximou-se dos apatetados astronautas.

            — Peguem! Metade para cada um!

            Como em transe eles pegaram e Mexilhão se aprumou.

            — Bem, cumpri o meu dever. Agora tenho que ir, outro dever me chama!

            — Mas... mas... mas... peraí... — balbuciou Barbosa.

            — Não se preocupem! Não cobro nada pela consulta! Foi uma amostra grátis!

            Arquibaldo, ainda em estado de choque, murmurou:

            — Mas espere aí... que idéia foi essa...

            — Na verdade a idéia original não foi minha, eu aproveitei de Salomão. Até mais, senhores e senhoritas!

            Disse isso e foi embora.

            Alguns segundos depois eles começaram a acordar do aturdimento. Isolino foi o primeiro a falar:

            — Alguém pode me dizer quem vai me pagar o prejuízo?

            Disse isso e desmaiou, sendo amparado pela Júlia, a garota holandesa, que buscou os sais num dos bolsos do infeliz livreiro.

            — Capitão, vamos continuar a briga? — indagou Zé Peroba, olhando para o Bicudo.

            — É claro que não, seu idiota! Vamos é pegar aquele calhorda! Afinal temos a obrigação de “pagá-lo” pelo excelente serviço!

            — E o que vamos fazer com isso? — perguntou Arquibaldo. O Capitão Barbosa foi taxativo:

            — Arquibaldo, decididamente eu não quero um mangá pela metade! Pode ficar com a minha parte!

            Entregou a metade do mangá para o outro. Este, menos perfeccionista, entregou as duas metades ao Bicudo.

            — Bicudo, guarde na sua mochila, eu pego na nave! Ainda bem que eu tenho durex! Agora, Barbosa, me ajude! Vamos nós dois atrás daquele safado e dar uma sova nele!

            — É claro, amigo! Se é que vamos conseguir encontrá-lo, ele leva grande vantagem!

            — Não importa, amigo! Vamos tentar pelo menos!

            — Esperem aí! — gritou a aflita Arlete, enquanto Júlia ligava para os paramédicos. — O mangá precisa ser pago!

            — Acha mesmo — escandiu Arquibaldo — que eu vou pagar por uma revista partida ao meio a machado? Passem bem!

            — Acho melhor irmos atrás deles, você e eu — disse Bicudo a Peroba. — Aquele maluco está armado de machadinha!

            — Preferia não ir, mas você tem razão. Não posso deixar que o meu capitão seja fatiado, por mais idiota que ele seja!

            — Vocês dois sabem qual é o pior nisso tudo? — gemeu a Arlete.

            — Não, o que? — disseram eles em uníssono.

            — Muito simples. Tenho certeza que este nosso desacordado patrão quando acordar vai descontar o mangá do nosso ordenado!

            — Que já é uma miséria — completou a Júlia.

            — Vamos rachar a despesa — disse Peroba, incapaz de resistir ao choro de duas garotas. — Bicudo, você dá a sua parte?

            Eles rapidamente pagaram e Arlete agradeceu mas ainda perguntou:

            — Mas e a mesa?

            Os dois se entreolharam.

            — Ah, não! — disse o Bicudo. — Ninguém vai levar a mesa! Vocês se entendem com o Isolino!

            Bicudo e Peroba saíram correndo, tentando encontrar os capitães.

            — Numa coisa pelo menos o malucão estava certo — lembrou Zé Peroba.

            — Em que?

            — Ora! Que os dois iam sair daqui como amigos!

 

NOTA – Chama-se “curva de argumento” uma figura literária que consiste numa súbita e radical mudança de rumo numa história, com o surgimento imprevisto de um novo fato ou personagem, como neste caso, com a inusitada aparição do Doutor Mexilhão. Ele tem sua própria série e esta é a primeira vez que interage com o Capitão Barbosa.

 

Rio de Janeiro, 13 de março a 3 de abril de 2020.

 

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quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Atentado em Itaipu

Atentado em Itaipu, de Martins de Oliveira. Capa: Cirton Genaro. 183 páginas. São Paulo: Alfa-Omega, coleção Biblioteca Alfa-Omega de Cultura Universal – Serie 2ª. – Volume 30. Lançado originalmente em 1983.


Os romances de ficção política com uma vertente de ação e aventura não se constituem numa prática habitual na literatura brasileira. Em sua maioria, costumam ter por características principais a reflexão e a crítica às mazelas do país, em termos históricos ou conjunturais. Assim, por meio da indicação do escritor Roberto de Sousa Causo, cheguei a este Atentado em Itaipu, de Martins de Oliveira. Desde já, um romance eletrizante de conspirações e planos mirabolantes, daqueles difíceis de largar a leitura. Mas não só: situado no contexto político da época, o período final da ditadura militar brasileira.

No início dos anos 1980 o país vivia os últimos eventos da abertura, processo político iniciado em 1974 pelo presidente Ernesto Geisel, com o objetivo de reduzir a repressão, controlar os órgãos de informação – eufemismo para os setores do governo que prenderam, torturaram e mataram –, e encaminhar o país para um processo “lento, gradual e seguro” de recondução dos civis à administração do Brasil. Olhando em retrospectiva, o processo foi tortuoso, mas bem sucedido do ponto de vista dos governantes, numa transição política regada a muitos pactos e negociações, que colocou um civil da oposição no poder, Tancredo Neves e depois de sua morte inesperada, José Sarney – e impediu qualquer punição aos militares.

Mas, como sabemos, nem todos desejavam que a ‘revolução’ de 1964 tivesse este desfecho. Tanto principalmente à direita – com militares radicais –, como à esquerda – com militantes e grupelhos revolucionários –, os objetivos eram outros: a retomada do autoritarismo mais ideológico e repressivo por um lado, e uma última tentativa de tomada de poder para instaurar no país um governo socialista, por outro. Assim, no plano político, um dos principais méritos do romance é mostrar como o processo de liberalização do regime autoritário embora, como dito, tenha sido exitoso do ponto de vista dos seus proponentes, foi inseguro e sujeito a retrocessos que poderiam ter levado o país a um outro rumo, longe da democracia finalmente conseguida – basta lembrar da tentativa de bomba no RioCentro, em 1981, felizmente mal sucedida. Pois é neste contexto que o livro explora a premissa assustadora anunciada em seu título. Um plano para explodir a maior usina hidrelétrica do mundo, provocando uma guerra com a Argentina e, com o caos instalado, permitir à esquerda revolucionária uma tentativa decisiva de chegar ao poder.

A usina de Itaipu é atualmente a segunda maior do mundo, atrás apenas da Três Gargantas, da China. Mas até 2012 foi a maior do planeta. E os números deixam claro porque: A barragem principal tem 1234 metros de cumprimento, produz cerca de 14 milhões de megawatts, com um volume aproximado de 30 bilhões de metros cúbicos de água, altura máxima de 196 metros, com uma área de 1460 quilômetros quadrados, e 18 turbinas em seu total. Eivado de muita controvérsia desde o seu projeto e realização – entre 1975 e 1982 – quase virou um contencioso militar grave com a Argentina. Inicialmente o país platino queria fazer parte do projeto; depois de negada sua participação, realizada apenas entre Brasil e Paraguai, os argentinos ameaçaram retaliar militarmente, dentro do contexto bélico da época, já que também eles viviam sob ditadura militar. Pois, de fato, se abertas as comportas parte importante do território do país seria inundado, com consequências graves até Buenos Aires. Na visão bélica e paranoica dos anos 1970, Itaipu não era apenas uma hidrelétrica que geraria energia para todo o Paraguai e mais da metade do Brasil, poderia ser, no limite, uma arma estratégica poderosíssima. Esta não é a única abordagem deste tema, pois lembramos do conto “A Pedra que Canta” (1991), de Henrique Flory, no qual a usina é usada como arma após a invasão argentina à região sul do Brasil, com as catastróficas consequências esperadas.

No romance de Oliveira, a trama política se divide, justamente, entre os setores marginalizados àquela altura, dos radicais de direita e de esquerda. Com a Lei de Anistia de 1979, voltaram ao Brasil vários exilados do regime autoritário, entre eles Waldimir Esteves, o Tocha, um terrorista internacionalmente conhecido, com ações executadas em várias guerrilhas mundo afora e com estreitos laços com o regime socialista cubano. Descrente da abertura, e do modelo de redemocratização ‘burguesa’ que se anunciava, ao voltar ao país não perde tempo e tenta reconstruir uma rede de militantes com objetivos subversivos. No mínimo para desgastar a ditadura, abrindo espaço para movimentos que possam, ao menos aproximar a esquerda do poder. De outro lado, um grupo radical dos linhas-duras militares, liderado pelo general Rubens Messias, cria o grupo Alfa: para conspirar com o objetivo de sabotar a abertura em curso, especialmente quando estava para ser votada uma emenda à Constituição que restauraria, para o mesmo ano, a eleição direta para presidente. Ao contrário do que aconteceu em nossa linha histórica, a emenda é aprovada, o que faz com que o governo entre em negociações para chegar a um candidato de oposição mais palatável aos seus interesses, o que incentiva uma ação ainda mais radical dos conspiradores da caserna: assassinar o presidente que teria traído os ideais da “revolução”.

Numa reunião com seus aliados, Tocha conhece um engenheiro que trabalha em Itaipu e que odeia os militares, porque estes o confundiram com seu irmão, e o torturaram barbaramente no início dos anos 1970. Ele, então, sugere o plano audacioso de dinamitar a usina, o que faz com que os olhos de Tocha brilhem: poderia ser um plano perfeito, ainda que de execução muito difícil, para permitir que a esquerda chegasse ao poder. Ele, então, planeja meticulosamente o atentado e consegue ajuda do regime de Fidel Castro, com financiamento e explosivos altamente sofisticados.

O leitor percebe que, pela ousadia e gravidade de ambos os planos conspiratórios, o interesse da leitura é garantido. Mas Martins de Oliveira, médico cardiologista e professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem uma prosa extremamente hábil para amarrar os planos de ambos os lados, e não só: o contexto político é extremamente condizente com o que ocorria na época. Desta forma, ações que, em tese, teriam muita chance de dar errado – como reconhecem os próprios personagens do livro –, ganha ares de verossimilhança e muito suspense.

Se no começo da resenha afirmei que não há uma tradição de romances de ficção política no Brasil, Martins de Oliveira é uma exceção. Antes de Atentado em Itaipu, ele estreou com Outono Vermelho, pela Globo de Porto Alegre, em 1966, mostrando o que poderia acontecer se os comunistas tivessem chegado ao poder no Brasil. Ora, isto é história alternativa! Pelo que sei, os poucos especialistas brasileiros neste subgênero não incluem esta obra. E outro romance de sua autoria explora a chegada ao Vaticano de um Papa marxista, em Os Vinte Dias de Outubro, da Record, em 1982. Outro exercício instigante de ficção especulativa política. Desnecessário dizer que ambos os livros devem ser conhecidos, ainda mais depois da leitura deste ótimo tecnothriller político que flerta com a ficção científica.

Pois no contexto do gênero, Atentado em Itaipu se situa ao lado de outros romances de ficção política especulativa dos anos 1980, que procuraram imaginar cenários possíveis para um Brasil pós-ditadura, no que eu chamei de ‘ficções da abertura’, no artigo “Ventos de Mudança: A Ficção Científica Brasileira e a Transição Democrática”, de 2013. Livros como A Invasão (1979), de José Antonio Severo; Não Verás País Nenhum (1982), de Ignácio de Loyola Brandão; A Ordem do Dia (1984), de Márcio Souza; Horizonte de Eventos (1984), de Jorge Luiz Calife; Silicone XXI (1985), de Alfredo Sirkis. Além destes, outro que descobri após a publicação do artigo é O Outro Lado do Protocolo (1985), de Paulo de Souza Ramos. Provavelmente deve haver alguns outros. O que só evidencia que a pesquisa sobre a presença de temas de FC no mainstream literário brasileiro continua a ser um campo a ser explorado, como neste ótimo Atentado em Itaipu.

Marcello Simão Branco