Ficções Amazônicas, Aparecida Vilaça e Francisco Vilaça Gaspar. Capa: Paula Carvalho. Ilustrações internas: Paloma Ronai. 211 páginas. São Paulo: Todavia, 2022.
A Amazônia é o maior e
mais conhecido bioma brasileiro, que se estende por mais da metade do
território brasileiro e alguns países vizinhos da América do Sul. Região de
natureza poderosa, misteriosa e indomável, suscita, na mesma medida, paixões e
cobiças, não poucas neste caso, criminosas. Por si só já é um manancial
fantástico sem precisar que seja trabalhado explicitamente como uma expressão
da ficção especulativa. E é justamente nas bordas entre o mainstream e o fantástico que os Vilaça escreveram a coletânea Ficções Amazônicas.
O livro reúne 11
histórias, algumas mais longas e outras mais curtas, tendo como painel temático
de exploração imaginativa a Amazônia. Os textos ora flertam com o fantástico,
ora o assumem, embora num plano oblíquo, como recurso para o drama, ao invés de
condutor da narrativa em si. Nos dois casos, os autores mostram conhecimento de
base acadêmica – Aparecida é antropóloga da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e Francisco é doutor em
química, também pela UFRJ –, mas principalmente uma prosa fluente, limpa, agradável,
no qual tanto personagens brancos, como indígenas se movem em busca de
compreender as possíveis conexões dos mistérios da natureza e e sua cosmogonia com
o mundo cartesiano e materialista do homem urbano.
Desta forma, em “Cinco
amigos e um funeral”, um deles está com uma doença terminal e pede aos
companheiros que um último desejo aconteça em plena selva amazônica. É um texto
forte e surpreendente, que chega a chocar, pois o tal desejo é simplesmente ser
devorado pelos amigos após sua morte. Confesso que uma novela sobre canibalismo
não é o que eu esperava e talvez esta história pungente devesse, pelo seu
impacto, ter sido deixada para o final e não no início. Isso porque as
histórias subsequentes não apresentam o mesmo impacto dramático, embora a
maioria tenha outros méritos.
Contos como, por exemplo,
“O hipopótamo de Don Pablo”, “Garrincha da floresta” e “A epidemia”. Cada qual
aborda um aspecto particular do viver amazônico. Na primeira, o sumiço de um
hipopótamo – que originalmente pertencia ao zoológico do traficante colombiano Pablo
Escobar e foi transformado numa reserva após sua morte – cumpre uma função
fantástica na figura de uma mulher à procura dos seus filhos. “Garrincha da
floresta” versa, em sentido amplo, sobre as transformações físicas e
sobrenaturais no contato com elementos da natureza. E “A epidemia”, de uma
doença que acomete aos indígenas após contato com os brancos, ‘sujos’, com suas
impurezas externas e internas. Apesar do final um tanto inverossímil é uma
noveleta forte, que demonstra bem como levamos a corrupção, em muitos sentidos,
a povos e lugares que habitam uma espécie de outro universo filosófico, no qual
vale o ser e não o ter.
Duas outras histórias
acentuam o contraste entre o mundo natural e a sociedade civilizada. Primeiro
com “Bristol, Amazônia”, interessante variação sobre o tema do portal espacial que
conecta dois lugares de forma aparentemente fantástica, porque inexplicável. A
partir de uma balada na cidade inglesa de Bristol, duas garotas, uma inglesa e
uma salvadorenha, emergem, de repente, em um rio, onde são avistadas por uma
indígena adolescente. Esta, inclusive, já havia visto no mesmo local um ano
antes, um homem branco também surgir, mas nada contou a ninguém. Agora, ajuda e
abriga as duas forasteiras. Depois de algumas semanas, elas conseguem voltar
para suas casas. Mas a história ainda reservaria mais uma surpresa para a
nativa, em sua conexão com o estranho portal entre um rio e o banheiro de um
pub distantes milhares que quilômetros. Outra história semelhante é “Nova
Iorque, New York”, em que uma jovem bem-nascida de uma família tradicional de
Manaus, perto de se casar, foge da sua segurança material, para viver com o
indígena que a havia retratado num quadro. Pois os efeitos desta decisão, que a
conduziu a uma nova vida totalmente despojada no seio da natureza e seus
valores, reverberará em sua neta, quando ela viaja para a Big Apple, décadas
depois, e se depara, em uma galeria de arte, com uma exposição inusitada
retratando os trabalhos de seu avô.
Outras histórias a
trabalhar os contrastes entre os valores ocidentais e os muitos modos de vida
dos povos originários e o imaginário amazônico nele embutidos, se encontram em
“O general e o professor”, “Radiofonia” e “No rastro de Macunaíma”. Três boas
histórias, principalmente a primeira, mais assumidamente fantástica na figura
de um general venezuelano que, aparentemente, teria se tornado imortal, e
retornaria, de tempos em tempos, para ajudar os indígenas a se defender das
agressões e ameaças de políticos e garimpeiros. Já as outras duas, não tem o
mesmo efeito, embora não sejam destituídas de interesse. “Radiofonia” aborda
uma possível conexão provocada por sinais de rádio captados a partir da
experiência de um estudante de ocultismo, quando viaja para a Amazônia. Através
da sua imersão com uma erva, toma contato íntimo com espíritos xamânicos, e se
conecta com mais dois indígenas, nos quais cada um deles irá contribuir para
sua busca por conhecimento e transcendência. Já “No rastro de Macunaíma” fecha
o livro e, como indicado no título, faz alusão ao famoso personagem de Mário de
Andrade. No caso, da busca obsessiva de um colecionador por uma pedra chamada
muiraquitã que ele, sem saber como, perdeu. Vai reencontrá-la com um líder
indígena no meio da selva, que se acredita como filho de Deus. Embora haja uma
conclusão para a história, ela soa insatisfatória, meio gratuita, porque não
apresenta completude.
Inclusive, esta
característica meio que se repete em algumas das outras histórias, deixando uma
sensação de, “mas é só isso?”. E não no sentido de os autores contarem uma
história convencional, mas de explorarem um pouco mais suas possibilidades.
Isso chega a incomodar, por exemplo, no conto “Dezembro”, quando um doutorando
em Antropologia pega malária numa região remota na fronteira com a Colômbia, e
à espera de socorro, vai repassando sua vida. Há uma espécie de corte porque,
sem mais, a história acaba e fica-se sem saber o que afinal aconteceu com ele.
Outro aspecto da
coletânea é a falta de drama da maioria das histórias. Elas se resolvem – quando
o caso – sem grandes conflitos e contradições entre os personagens. Como se
houvesse um plano pré-estabelecido para colocá-los sob uma determinada
perspectiva. Como disse acima, a única história que foge deste roteiro é a
primeira. Os autores optaram por trabalharem em todas as narrativas por ações estanques
que convergem num certo momento, construindo um mosaico. A forma de fato é boa,
pois o texto é, como já dito, de primeira qualidade, mas o conteúdo dramático
me pareceu aquém do que poderia.
A dupla de autores
apresenta as possibilidades fantásticas de uma terra tão fascinante quanto
incompreendida, a partir, principalmente, de um viés etnográfico, fruto de suas
formações, principalmente de Aparecida. Mas esta base acadêmica se mostra mais
efetiva, em muitos casos, do que a uma desejada criação mais ousada e
fantástica. Por outro lado, o aspecto social e crítico se sobressai. Contundente,
contra o preconceito, a miséria e o abandono dos povos originários; de sua
captura por pastores e valores religiosos que conspurcam completamente suas
vidas e a rica conexão com a natureza. Da cobiça e exploração econômica do qual
a região é historicamente afetada e da falta de empenho e, mais recentemente,
contribuição ativa do governo federal num processo de desmatamento, tráfico de
madeira, garimpo ilegal e violências variadas aos povos originários, sua fauna
e flora únicas em todo o planeta.
Se a Amazônia já conta
com um corpus de tradição e prática razoavelmente relevante na literatura
brasileira – basta lembrar, rapidamente, dos Contos Amazônicos (1893), de Inglês de Sousa (1853-1918) e dos
romances de Márcio Souza –, podemos dizer que a ela também se acrescenta a
ficção científica e o horror, e não nos deixa mentir tanto com obras clássicas,
como A Amazônia Misteriosa (1925), de
Gastão Cruls (1888-1959), e A Mãe do
Sonho (1990), de Ivanir Calado, como em termos contemporâneos, por exemplo,
na ótima trilogia de novelas de Roberto de Sousa Causo: Terra Verde (2000), O Par
(2008) e Selva Brasil (2010). Mais recentemente foi lançada a instigante
antologia Encantarias, vol. 1: Histórias
de uma Amazônia Futurista (2020), organizada pelo coletivo Visagem, e
composta por seis contos de FC, que especulam com a ótica do porvir sobre os muitos
problemas da região. Isso só evidencia a urgência e atualidade do tema e o
quanto a literatura de FC brasileira e afins tem muito a acrescentar. Então,
neste sentido, a contribuição de Ficções
Amazônicas se dá, como dito antes, nas fronteiras entre o mainstream e o fantástico. E por esse
aspecto é um livro que deve ser conhecido.
– Marcello Simão Branco
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