sábado, 14 de janeiro de 2023

Sob a Redoma

Sob a Redoma (Under the Dome), Stephen King. Tradução: Maria Beatriz de Medina. Capa: Fernanda Mello sobre design original de Rex Bonomelli. 954 páginas. Rio de Janeiro: Objetiva/Suma de Letras, 2012. Lançamento original em 2009.

 



Entre as várias características de Stephen King está o tamanho dos seus livros. A maioria é enorme e, ao que parece, conforme os anos avançaram e sua reputação – de vendas e prestígio – se consolidou, ele se sentiu livre para escrever histórias cada vez mais longas. Tal é o caso de Sob a Redoma. É o maior livro que li dele – e talvez mesmo o seu maior –, além de, provavelmente, o de mais páginas que li. Mas para quem gosta do autor, estes volumes grandes e pesados não intimidam. O contrário até. Pois podemos nos envolver profundamente no mundo criado por ele.

Sob a Redoma, especialmente, é extremamente vigoroso. Impressiona como ele consegue conduzir um enredo tão ambicioso, com tantos personagens e situações, sem pontas soltas ou perda de interesse. Não há barriga, expressão do jornalismo para uma parte do texto desnecessária ou que o interesse pela leitura tem uma queda. Não! A história flui de forma crescente, com muito drama, suspense e reviravoltas. Tudo isso torna cada vez mais difícil largar a leitura. Um clássico page turner.

Mas prazer talvez não seja a melhor palavra para exprimir o que se sente ao se envolver com esta história. Pois ela leva longe outras características marcantes de King: o sofrimento dos personagens, e a compaixão e dor que sentimos. Isso porque, como sabido, os personagens criados por ele são extremamente bem construídos. Mais humanos do que muitas pessoas reais que conhecemos, já se disse. E, com isso, nos tornamos cúmplices e participantes dos dramas pelos quais eles passam. Outra característica importante é a premissa do qual parte a história. De uma realidade cotidiana aparentemente banal e, no caso, bem provinciana, o fantástico se insere e a tudo desestrutura. Toda a realidade anterior tem de lidar com a nova situação. Neste caso tão surpreendente quanto chocante.

 Num dia qualquer de meados de outubro na cidadezinha de Chester´s Milll, no estado do Maine – como quase sempre ocorre no universo de King –, de forma súbita e arrebatadora uma cúpula invisível a envolve. Um helicóptero se choca, depois um caminhão e alguns carros. Pessoas tem suas mãos decepadas e alguns animais são cortados ao meio. Ninguém entende o que é o fenômeno, do que é feito e como e por que surgiu. Apenas que, para todos os efeitos, a cidade sob a redoma, está isolada do resto do mundo.

A partir daí, King desenvolve um amplo painel do que pode ocorrer à comunidade quando confrontada com uma situação limite. Tudo o que mantém as pessoas controladas é desafiado: as leis, simples regras de convivência, o papel do Estado, valores éticos e morais. E, neste caso, a começar pelos próprios agentes responsáveis por manter “a lei e a ordem”. Isso porque, um dos políticos que administra a cidade, aproveita a crise, para dar vazão a suas tendências autoritárias e, mais que isso, homicidas.

A pequena Chester´s Mill tem apenas 3 mil habitantes, pouco mais que uma vila. E nos EUA cidades tão pequenas não são governadas por um prefeito. A responsabilidade cabe a três vereadores. Eles administram e as leis são votadas numa assembleia com os próprios habitantes. Soa democrático, mas, no caso, ocorre uma concentração de poder nas mãos de um dos vereadores, Big Jim Rennie. Ele assume a liderança, mas deturpa completamente a situação, se tornando cada vez mais poderoso, nem que com isso, fomente o pânico e a desordem para conseguir mais poder. Isso porque, desta forma, ele pode esconder os crimes do qual é responsável. Na verdade, ele é um poderoso traficante de drogas, produzidas num laboratório oculto numa estação de rádio religiosa. E com a participação do próprio pastor da cidade. Com a redoma, ele tem de proteger o segredo desta ilicitude. E não hesita em perseguir e eliminar possíveis opositores. Como se percebe, mais terrível que a própria redoma, é o homem o grande problema da Chester´s Mill aprisionada.

Dale Barbara, um tenente reformado do Exército e veterano condecorado da Guerra do Iraque, trabalha fazendo sanduíches populares numa lanchonete. Contudo, após se envolver numa briga com o namorado – e seus comparsas – de uma garçonete que havia flertado com ele, tenta ir embora da cidade, mas acaba preso dentro da redoma. Assim, seus inimigos o infernizam, e um deles é Junior, filho de Big Jim. Só por aí, a vida de Barbie – como é pejorativamente chamado – não seria fácil, e ele se tornará o principal obstáculo do poderoso vereador. Principalmente, quando o Exército resolve reincorpora-lo ao serviço, e com a patente de coronel. A cidadezinha é colocada em estado de sítio pelo presidente Obama, autorizando que Barbara se torne o novo comandante, pelo menos até resolver a crise.

O decreto federal não é obedecido por Rennie, ainda mais depois que dois mísseis cruise se chocam com a redoma e não a rompem. Ele percebe que talvez esta situação demore ou seja definitiva, se nem a força militar mais poderosa do mundo tenha poder para resolvê-la. Assim, sente-se livre para executar seu plano de se tornar o dono absoluto da cidade. Aparelhando a polícia com dezenas de jovens inexperientes, baixando decretos polêmicos, como o fechamento do mercado da cidade, fomentando o pânico e a confusão – roubando, por exemplo, os geradores do hospital –, e, claro, perseguindo impiedosamente quem tenha coragem de questioná-lo. O primeiro da lista é Barbara, mas também a jornalista Julia Shumway e o médico assistente Rusty Everett, além de outros que, aos poucos, percebem o terror a que estão sujeitos sob tal tipo de liderança. Mas o alvo principal é Barbara. E ele é acusado por quatro assassinatos que, obviamente, não cometeu. Mas sim Rennie – para calar quem sabia dos seus podres –, e seu filho – duas garotas, uma delas a garçonete. Com o requinte de praticar necrofilia com elas. O objetivo é tornar Barbara o culpado não só pelas mortes, mas também pela própria redoma, através de uma teoria da conspiração de que ele teria participado de uma experiência mal sucedida do governo americano.

King elabora uma profunda reflexão sobre quem são realmente as pessoas em situações críticas, em que a luta pela sobrevivência aflora de maneira dramática. Do quanto as pessoas são realmente boas ou más; altruístas ou egoístas; solidárias ou individualistas; empáticas ou psicopatas. E é particularmente interessante, como são mostrados os pensamentos dos personagens. Mesmo os de índole decente, apresentam sentimentos ruins. Isso porque, estas dicotomias, estão no fundo presentes em cada um de nós, pois ninguém é totalmente uma coisa ou outra o tempo todo. E isso me recordou do romance O Senhor das Moscas (Lord of Flies; 1954), de William Golding (1911-1993), no qual um grupo de crianças tem de sobreviver numa ilha desabitada após serem os únicos sobreviventes de um acidente aéreo. O resultado é chocante, quando algumas delas se tornam cruéis na tentativa de liderar as demais. Assim, King está a refletir sobre o quanto os valores, instituições e leis que mantém a civilização são tênues, embora, de fato, só ilustre o quanto são importantes. É como disse um dos formuladores da Constituição norte-americana Alexander Hamilton (1755-1804): “Se os homens fossem anjos, não precisariam de leis”.

King é hábil e maduro no desenvolvimento destas questões, e talvez o fato de ter retomado a história quase 30 anos depois ajude a entender. Isso porque o romance é um projeto antigo, elaborado pela primeira vez em 1976, e depois, numa segunda vez no início dos anos 1980, com o título inicial de The Cannibals. Ele conta que escreveu apenas 75 páginas e desistiu com receio de encarar uma obra muito ambiciosa e complexa. Pois a obra foi finalmente retomada em 2007, e o resultado final mostra que ele tomou a decisão correta.

Mas a premissa fantástica da história requer uma resposta. Afinal, o que é a redoma? Um campo de força que circula todo o território da cidade, com alguns quilômetros de altura e de profundidade, que se mostra inexpugnável até a mísseis balísticos. Tem de ser gerado por alguma fonte de energia, e assim, Barbara lidera a busca em encontrar, eventualmente, algum tipo de gerador ou coisa parecida. Que acaba sendo encontrado numa fazenda desabitada. No caso, uma caixa preta do tamanho de um notebook com o peso de algumas toneladas, e que emite uma luz piscante e que gera radiação ao seu redor. Barbara e alguns outros, ao olharem dentro da caixa avistam estranhos seres, cabeças de couro de aspecto infantil. Não há certeza de quem são, mas deduzem, com propriedade, que são extraterrestres.

Como lembra Julia Shumway, a partir de uma experiência traumática na infância, é como se os habitantes de Chester´s Mill fossem formigas aprisionadas. Tal como algumas crianças levadas fazem. A metáfora é duplamente satisfatória. Primeiro, porque seriam crianças as mais propensas a executar uma experiência cruel como esta, como se fosse uma brincadeira, por que não teriam, ainda, amadurecido em suas personalidades e valores do que é certo ou errado. Com conceitos morais ainda a serem desenvolvidos. E em segundo lugar, porque mostraria o quanto nós, seres humanos, somos insignificantes em relação ao universo como um todo. Em nossa mesquinharia e arrogância muitas vezes perdemos a noção do quão frágeis somos diante de forças e situações que podem se tornar totalmente sem controle de nossa parte.

Este romance massivo – que conta com uma bem-vinda lista de personagens e o próprio mapa da cidade –, foi de certa forma ignorado pelos fãs mais tradicionais de FC, talvez pela vinculação principal de King com o gênero horror. Mas não se engane: é um romance de FC. Mas isso é um pormenor. Como disse antes, o que importa e assombra é a força narrativa do autor e personagens tão críveis que sentimos por eles o que sentiríamos por pessoas próximas. Um livro poderoso e que rendeu uma minissérie com 39 episódios, entre 2013 e 2015.  Com dois títulos no Brasil, O Domo e Under the Dome: Prisão Invisível, foi bem realizada, mas aquém do potencial explorado no romance. Pois esta é uma daquelas histórias das mais intensas e para serem lembradas com muita emoção.

Marcello Simão Branco

 

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