Sob
a Redoma (Under the Dome), Stephen King. Tradução: Maria
Beatriz de Medina. Capa: Fernanda Mello sobre design original de Rex Bonomelli. 954 páginas. Rio de Janeiro:
Objetiva/Suma de Letras, 2012. Lançamento original em 2009.
Entre as várias
características de Stephen King está o tamanho dos seus livros. A maioria é
enorme e, ao que parece, conforme os anos avançaram e sua reputação – de vendas
e prestígio – se consolidou, ele se sentiu livre para escrever histórias cada
vez mais longas. Tal é o caso de Sob a
Redoma. É o maior livro que li dele – e talvez mesmo o seu maior –, além
de, provavelmente, o de mais páginas que li. Mas para quem gosta do autor,
estes volumes grandes e pesados não intimidam. O contrário até. Pois podemos
nos envolver profundamente no mundo criado por ele.
Sob
a Redoma, especialmente, é extremamente vigoroso. Impressiona
como ele consegue conduzir um enredo tão ambicioso, com tantos personagens e
situações, sem pontas soltas ou perda de interesse. Não há barriga, expressão
do jornalismo para uma parte do texto desnecessária ou que o interesse pela
leitura tem uma queda. Não! A história flui de forma crescente, com muito
drama, suspense e reviravoltas. Tudo isso torna cada vez mais difícil largar a
leitura. Um clássico page turner.
Mas prazer talvez não
seja a melhor palavra para exprimir o que se sente ao se envolver com esta
história. Pois ela leva longe outras características marcantes de King: o
sofrimento dos personagens, e a compaixão e dor que sentimos. Isso porque, como
sabido, os personagens criados por ele são extremamente bem construídos. Mais
humanos do que muitas pessoas reais que conhecemos, já se disse. E, com isso,
nos tornamos cúmplices e participantes dos dramas pelos quais eles passam. Outra
característica importante é a premissa do qual parte a história. De uma
realidade cotidiana aparentemente banal e, no caso, bem provinciana, o
fantástico se insere e a tudo desestrutura. Toda a realidade anterior tem de
lidar com a nova situação. Neste caso tão surpreendente quanto chocante.
Num dia qualquer de meados de outubro na
cidadezinha de Chester´s Milll, no estado do Maine – como quase sempre ocorre
no universo de King –, de forma súbita e arrebatadora uma cúpula invisível a
envolve. Um helicóptero se choca, depois um caminhão e alguns carros. Pessoas
tem suas mãos decepadas e alguns animais são cortados ao meio. Ninguém entende
o que é o fenômeno, do que é feito e como e por que surgiu. Apenas que, para
todos os efeitos, a cidade sob a redoma, está isolada do resto do mundo.
A partir daí, King
desenvolve um amplo painel do que pode ocorrer à comunidade quando confrontada
com uma situação limite. Tudo o que mantém as pessoas controladas é desafiado:
as leis, simples regras de convivência, o papel do Estado, valores éticos e
morais. E, neste caso, a começar pelos próprios agentes responsáveis por manter
“a lei e a ordem”. Isso porque, um dos políticos que administra a cidade,
aproveita a crise, para dar vazão a suas tendências autoritárias e, mais que
isso, homicidas.
A pequena Chester´s Mill
tem apenas 3 mil habitantes, pouco mais que uma vila. E nos EUA cidades tão
pequenas não são governadas por um prefeito. A responsabilidade cabe a três
vereadores. Eles administram e as leis são votadas numa assembleia com os
próprios habitantes. Soa democrático, mas, no caso, ocorre uma concentração de
poder nas mãos de um dos vereadores, Big Jim Rennie. Ele assume a liderança,
mas deturpa completamente a situação, se tornando cada vez mais poderoso, nem
que com isso, fomente o pânico e a desordem para conseguir mais poder. Isso
porque, desta forma, ele pode esconder os crimes do qual é responsável. Na
verdade, ele é um poderoso traficante de drogas, produzidas num laboratório
oculto numa estação de rádio religiosa. E com a participação do próprio pastor
da cidade. Com a redoma, ele tem de proteger o segredo desta ilicitude. E não
hesita em perseguir e eliminar possíveis opositores. Como se percebe, mais
terrível que a própria redoma, é o homem o grande problema da Chester´s Mill
aprisionada.
Dale Barbara, um tenente
reformado do Exército e veterano condecorado da Guerra do Iraque, trabalha fazendo
sanduíches populares numa lanchonete. Contudo, após se envolver numa briga com
o namorado – e seus comparsas – de uma garçonete que havia flertado com ele,
tenta ir embora da cidade, mas acaba preso dentro da redoma. Assim, seus
inimigos o infernizam, e um deles é Junior, filho de Big Jim. Só por aí, a vida
de Barbie – como é pejorativamente chamado – não seria fácil, e ele se tornará
o principal obstáculo do poderoso vereador. Principalmente, quando o Exército
resolve reincorpora-lo ao serviço, e com a patente de coronel. A cidadezinha é
colocada em estado de sítio pelo presidente Obama, autorizando que Barbara se
torne o novo comandante, pelo menos até resolver a crise.
O decreto federal não é
obedecido por Rennie, ainda mais depois que dois mísseis cruise se chocam com a redoma e não a rompem. Ele percebe que
talvez esta situação demore ou seja definitiva, se nem a força militar mais
poderosa do mundo tenha poder para resolvê-la. Assim, sente-se livre para
executar seu plano de se tornar o dono absoluto da cidade. Aparelhando a
polícia com dezenas de jovens inexperientes, baixando decretos polêmicos, como
o fechamento do mercado da cidade, fomentando o pânico e a confusão – roubando,
por exemplo, os geradores do hospital –, e, claro, perseguindo impiedosamente
quem tenha coragem de questioná-lo. O primeiro da lista é Barbara, mas também a
jornalista Julia Shumway e o médico assistente Rusty Everett, além de outros
que, aos poucos, percebem o terror a que estão sujeitos sob tal tipo de
liderança. Mas o alvo principal é Barbara. E ele é acusado por quatro assassinatos
que, obviamente, não cometeu. Mas sim Rennie – para calar quem sabia dos seus
podres –, e seu filho – duas garotas, uma delas a garçonete. Com o requinte de
praticar necrofilia com elas. O objetivo é tornar Barbara o culpado não só
pelas mortes, mas também pela própria redoma, através de uma teoria da
conspiração de que ele teria participado de uma experiência mal sucedida do
governo americano.
King elabora uma profunda
reflexão sobre quem são realmente as pessoas em situações críticas, em que a
luta pela sobrevivência aflora de maneira dramática. Do quanto as pessoas são
realmente boas ou más; altruístas ou egoístas; solidárias ou individualistas;
empáticas ou psicopatas. E é particularmente interessante, como são mostrados
os pensamentos dos personagens. Mesmo os de índole decente, apresentam
sentimentos ruins. Isso porque, estas dicotomias, estão no fundo presentes em
cada um de nós, pois ninguém é totalmente uma coisa ou outra o tempo todo. E
isso me recordou do romance O Senhor das
Moscas (Lord of Flies; 1954), de
William Golding (1911-1993), no qual um grupo de crianças tem de sobreviver
numa ilha desabitada após serem os únicos sobreviventes de um acidente aéreo. O
resultado é chocante, quando algumas delas se tornam cruéis na tentativa de
liderar as demais. Assim, King está a refletir sobre o quanto os valores,
instituições e leis que mantém a civilização são tênues, embora, de fato, só
ilustre o quanto são importantes. É como disse um dos formuladores da
Constituição norte-americana Alexander Hamilton (1755-1804): “Se os homens
fossem anjos, não precisariam de leis”.
King é hábil e maduro no
desenvolvimento destas questões, e talvez o fato de ter retomado a história
quase 30 anos depois ajude a entender. Isso porque o romance é um projeto
antigo, elaborado pela primeira vez em 1976, e depois, numa segunda vez no
início dos anos 1980, com o título inicial de The Cannibals. Ele conta que escreveu apenas 75 páginas e desistiu
com receio de encarar uma obra muito ambiciosa e complexa. Pois a obra foi
finalmente retomada em 2007, e o resultado final mostra que ele tomou a decisão
correta.
Mas a premissa fantástica
da história requer uma resposta. Afinal, o que é a redoma? Um campo de força
que circula todo o território da cidade, com alguns quilômetros de altura e de
profundidade, que se mostra inexpugnável até a mísseis balísticos. Tem de ser
gerado por alguma fonte de energia, e assim, Barbara lidera a busca em
encontrar, eventualmente, algum tipo de gerador ou coisa parecida. Que acaba
sendo encontrado numa fazenda desabitada. No caso, uma caixa preta do tamanho
de um notebook com o peso de algumas
toneladas, e que emite uma luz piscante e que gera radiação ao seu redor.
Barbara e alguns outros, ao olharem dentro da caixa avistam estranhos seres,
cabeças de couro de aspecto infantil. Não há certeza de quem são, mas deduzem,
com propriedade, que são extraterrestres.
Como lembra Julia
Shumway, a partir de uma experiência traumática na infância, é como se os
habitantes de Chester´s Mill fossem formigas aprisionadas. Tal como algumas
crianças levadas fazem. A metáfora é duplamente satisfatória. Primeiro, porque
seriam crianças as mais propensas a executar uma experiência cruel como esta,
como se fosse uma brincadeira, por que não teriam, ainda, amadurecido em suas
personalidades e valores do que é certo ou errado. Com conceitos morais ainda a
serem desenvolvidos. E em segundo lugar, porque mostraria o quanto nós, seres
humanos, somos insignificantes em relação ao universo como um todo. Em nossa
mesquinharia e arrogância muitas vezes perdemos a noção do quão frágeis somos
diante de forças e situações que podem se tornar totalmente sem controle de
nossa parte.
Este romance massivo –
que conta com uma bem-vinda lista de personagens e o próprio mapa da cidade –,
foi de certa forma ignorado pelos fãs mais tradicionais de FC, talvez pela
vinculação principal de King com o gênero horror. Mas não se engane: é um romance
de FC. Mas isso é um pormenor. Como disse antes, o que importa e assombra é a
força narrativa do autor e personagens tão críveis que sentimos por eles o que
sentiríamos por pessoas próximas. Um livro poderoso e que rendeu uma minissérie
com 39 episódios, entre 2013 e 2015. Com
dois títulos no Brasil, O Domo e Under the Dome: Prisão Invisível, foi bem
realizada, mas aquém do potencial explorado no romance. Pois esta é uma
daquelas histórias das mais intensas e para serem lembradas com muita emoção.
—Marcello
Simão Branco
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