PKD é um autor singular. Mais conhecido pelo livro Sonham androides com ovelhas elétricas, que deu origem ao filme Blade Runner: O caçador de andróides, de Ridley Scott, lançado em 1982 (ano da morte do autor) e um fracasso de bilheteria que aos poucos ganhou status de cult, Dick foi um autor prolífico no período da New Wave da fc americana. Seus romances e contos inspiraram uma leva de filmes e série de tv (como O vingador do futuro, Paycheck, Minority report, O homem do castelo alto e Electric dreams, entre outros), e pode dar a impressão que se trata de um escritor popular. Não é.
PKD tem o desagradável hábito de escrever histórias difíceis. Seu estilo é desconfortável, muitas vezes beirando o insuportável, e seus temas são complexificados a um ponto hiperbólico. São raras as histórias do autor que permitem uma interpretação sequer objetiva, muito menos fácil. Além do mais, tem momentos de profunda incorreção moral, intolerância e até algum chauvinismo. Mesmo assim, consegue flutuar acima de seus pecados graças a criatividade galopante que não faz concessões aos leitores. Ler e, principalmente, publicar PKD pode até não ser muito lucrativo, mas garante uma boa reputação, semelhante como ao que acontece com Willian Gibson, um dos pais do cyberpunk.
A primeira vez que tive um PKD nas mãos foi uma experiência frustrante. Estava com catorze anos e em minha primeira fase de interesse na fc, quando encontrei um livro do autor no acervo da biblioteca pública, Espaço eletrônico (The unteleported man), na edição da Bruguera de 1971. Li o livro inteiro mas não entendi absolutamente nada. Não era um problema com o livro, mas com o leitor: eu não estava pronto para ele. E há muitos livros de PKD que são assim, então é difícil recomendar o autor para leitores iniciantes no gênero.
Contudo, entre tantas histórias indecifráveis, sempre há alguma que pode ser lida com menor esforço. Uma dessas é O tempo desconjuntado (Time out of joint), novela de 1959 publicada no Brasil em 2018 pelo selo Suma da Editora Companhia das Letras. O romance teve uma edição portuguesa em 1985, sob o título de O homem mais importante do mundo, mas até então estava inédito aqui.
Conta a história de Ragle Gumm, homem fracassado, de meia idade, que vive na casa da irmã e passa os dias resolvendo quebra-cabeças de um concurso do jornal local. Gumm está quebrando os recordes de acertos do concurso, o que pode lhe render uma bolada em prêmios que talvez resolva sua vida, além de alguma fama, mas também o mantém socialmente isolado.
Gumm está inquieto com a repetição de fenômenos visuais estranhos e recordações incongruentes, que até podem ser frutos de estresse por sua concentração nos enigmas diários cada vez mais complexos. Depois de testemunhar o desaparecimento de uma barraca de refrigerantes no parque – que deixou em seu lugar apenas um pedaço de papel com as palavras "barraca de refrigerantes" –, ele tem absoluta certeza que está enlouquecendo. Tudo fica ainda pior quando ele encontra, num terreno baldio, uma lista telefônica com números que não deveriam existir. Acossado pela paranoia, Gumm está disposto a comprometer sua fama e fortuna para descobrir o que há por trás dessa realidade que fica cada vez mais estranha.
A edição da Suma é caprichada, impressa em papel pólen e encadernada em capa dura. A tradução é de Braulio Tavares, um especialista no gênero, e a maravilhosa capa é de Deco Farkas.
Se eu tivesse que indicar um livro de PKD para alguém que nunca leu o autor, por certo que indicaria O tempo desconjuntado. Não que seja um texto fácil, mas em se tratando de PKD, não dá para fazer por menos que isso.
— Cesar Silva
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