terça-feira, 25 de outubro de 2022

Curva de argumento

 


Miguel Carqueija

 

            Em pleno Porto Espacial de Jacarepaguá, o Capitão Barbosa e seu imediato Zé Peroba caminhavam pela Alameda J das lojas. Barbosa ia fazendo compras e aos poucos enchendo a sua mochila de couro. A certa altura virou-se para o outro e indagou:

            — E afinal, Peroba, você não vai comprar nada?

            — Com que dinheiro, Capitão? — respondeu o imediato, com cara de réu.

            — Ora essa, com o seu!

            — Capitão Barbosa, o senhor ganha dez vezes mais do que eu, e além disso...

            — Que dez vezes o que! São só oito! Ou você esquece que eu sou o comandante da Antaprise? Não posso ganhar salário de mendigo!

            Qualquer resposta do Peroba ficou entalada na garganta. Barbosa prosseguiu:

            — Já gastou todo o seu salário?

            — Bem, capitão, sabe aquele joguinho...

            — É por isso que eu não jogo! Que isso lhe sirva de lição! Ah, vamos ver aqueles mangás ali!

            Entraram os dois numa mangazeria. Ler quadrinhos japoneses era uma das manias do velho Barbosa. Peroba suspirou de enfado, já preparado para passar horas naquele estabelecimento.

            O velho Isolino, dono do negócio, quase grunhiu, pois Barbosa demorava muito para escolher, ficava olhando centenas de mangás. E realmente já estavam lá há quase uma hora quando subitamente, ao tentar puxar um número de “Confusão cósmica”, Barbosa esbarrou com outra mão. Voltou-se e deparou...

            — Arquibaldo!

            — Barbosa!

            — Que faz aqui? Largue o meu mangá!

            — Que quer dizer? Largue você! Eu peguei primeiro!

            — Sem essa! Eu peguei primeiro!

            — É meu!

            — Não, seu pilantra, é meu!

            — Pilantra é você! Lembro muito bem da barbeirada que você fez há dez anos, danificando a Antaprise...

            — Você é que fez a barbeiragem! O meu papagaio de estimação ficou gago de susto...

            — Senhores, por favor — interveio o Isolino — não rasguem a revista! Me dêem isso aqui!

            Isolino pegou a revista e colocou-a na caixa, aos cuidados da Arlete.

            — Um deles vai comprar. Guarde enquanto isso!

            Zé Peroba se aproximou da caixa, interessado em puxar conversa. Afinal, ela era uma senegalesa linda...

            — Parado aí! Nem pense em se apossar do mangá!

            Peroba se virou: era o Bicudo, primeiro oficial do Capitão Arquibaldo.

            — Você também por aqui?

            — E daí? Você também, não é?

            — Por favor, senhores! — exclamou implorativamente o dono do local, vendo que os quatro estavam prestes a se engalfinharem por causa de uma revista. — Só restou esse exemplar desse número, mas posso encomendar outro... vocês já espantaram todos os fregueses...

            — Pois eu não vou esperar! Eu quero esse! — gritou o Capitão Barbosa.

            — Egoísta! Eu é que não vou esperar! Eu quero esse!

            Arquibaldo e Barbosa agarraram-se mutuamente e foram ao chão, derrubando uma estante repleta, para maior desespero de Isolino e pânico de Arlete e Júlia, as duas funcionárias. No instante seguinte Zé Peroba e Bicudo também se engalfinharam.

            — Parem! Ordeno que parem! Acabem com essa briga imediatamente! Eu resolvo esse assunto!

            Pararam todos instantaneamente, espantadíssimos. Surgira uma figura estranhíssima, um sujeito alto, hirsuto, descabelado, trajado de maneira antiquada e de aspecto feroz.

            —Quem é você? — perguntou o Capitão Barbosa, esforçando-se por se levantar.

            — Ora, quem sou eu! Então não me reconhece, Capitão Barbosa? Eu sou o famoso psiquiatra, o Doutor Mexilhão!

            — Nunca ouvi falar. Por favor, não gosto de ser interrompido quando estou brigando! Aliás, como sabe o meu nome?

            — Está escrito no seu crachá!

            — Ah, tá. Ora bolas! Esqueci de guardá-lo — assim dizendo, Barbosa colocou o objeto num dos grandes bolsos da jaqueta.

            — O que quer o senhor? — quis saber o Capitão Arquibaldo. — Não marquei nenhuma consulta, muito menos consigo.

            Pondo as mãos atrás das costas o Dr. Mexilhão, que por sinal carregava uma vasta mochila de magiplast, acercou-se dos dois beligerantes:

            — Isso não é problema, posso dar uma contulta grátis e dupla como propaganda dos meus inestimáveis serviços. Podem se considerar privilegiados. Você é o Capitão Arquibaldo, não é?

            — Como você sabe? Não carrego nenhum crachá.

            — Está bordado na sua jaqueta.

            Arquibaldo enrubesceu.

            — Avisei a mamãe que não precisava fazer isso.

            — O que eu percebi é que vocês dois são um caso preocupante de regressão milenar.

            — O que quer dizer com isso? — indagou Barbosa.

            — Que vocês, sendo comandantes de astronaves, na ponta do progresso, comportam-se como dois trogloditas, é isso que eu quis dizer.

            — Mais respeito! — exigiu o Capitão Barbosa. — Não sabe quem eu sou? O que eu fiz?

            — É claro! — e Mexilhão fungou. — Você é o capitão que ao aterrissar com sua nave abalroou a torre de controle no Astroporto de São Paulo...

            — Bem, bem, isto é, quero dizer...

            — E eu? — berrou Arquibaldo. — Eu não sou um palhaço, sou um respeitável comandante espacial!

            — Eu bem sei — disse Mexilhão, sarcástico. — Você só pousou por engano no campo de futebol, acabou com a partida e ainda incendiou o gramado.

            — Eu... ãh... como é que você sabe?

            — Sou um homem bem informado! Agora se me dão licença, darei uma solução imediata a esse ridículo litígio e garanto que os dois sairão daqui como amigos!

            — Está bem, falastrão. Quero ver que espécie de solução você vai dar.

            — De acordo — acrescentou Barbosa.

            — O que você acha? — consultou Peroba ao Bicudo.

            — Não sei. Isso está esquisito — e Bicudo deu de ombros.

            Isolino dirigiu-se ao Mexilhão:

            — Meu senhor, se puder apaziguar os ânimos eu ficarei eternamente grato!

            — Não precisa tanto, então agora eu vou agir!

            Chegou para a Arlete:

            — Empreste-me a revista, por favor.

            Arlete, meio assustada, olhou para Júlia, que não falou nada, depois para Isolino e este assentiu. Então ela entregou. Barbosa e Arquibaldo, intrigados, não tiravam os olhos do barbudo psiquiatra.

            — Preciso de uma mesa vazia — rosnou Mexilhão para Isolino.

            — É pra já, senhor.

            Colocou alguns livros num espaço qualquer numa estante, e mostrou a mesa:

            — Serve essa, senhor?

            — É de madeira. Ótimo. Agora pode se afastar.

            Sem muita vontade de contrariá-lo o Sr. Isolino se afastou um pouco e o médico depositou o mangá sobre a mesa. Então pôs-se a folheá-lo.

            — Não está pensando em ler o mangá, eu presumo — observou Barbosa.

            — Claro que não. Detesto mangás! Só estou querendo achar o meio. São 240 páginas... está bem, então tem que ser na 120.

            Abriu o mangá nas páginas 120-121, deixou-o assim escancarado sobre a mesa e recuou ligeiramente. Então buscou no interior de sua japona e lá de dentro retirou uma machadinha. E antes que alguém pudesse — ou ousasse — detê-lo ele desceu a lâmina sobre o mangá, partindo-o ao meio certeiramente e de quebra partindo a mesa em duas partes.

            Novas pessoas que se haviam arriscado a entrar na livraria saíram correndo. As outras sete pessoas que lá já estavam ficaram todas congeladas e mudas. Impassível, Mexilhão guardou a machadinha, abaixou-se, recolheu os dois pedaços da revista e aproximou-se dos apatetados astronautas.

            — Peguem! Metade para cada um!

            Como em transe eles pegaram e Mexilhão se aprumou.

            — Bem, cumpri o meu dever. Agora tenho que ir, outro dever me chama!

            — Mas... mas... mas... peraí... — balbuciou Barbosa.

            — Não se preocupem! Não cobro nada pela consulta! Foi uma amostra grátis!

            Arquibaldo, ainda em estado de choque, murmurou:

            — Mas espere aí... que idéia foi essa...

            — Na verdade a idéia original não foi minha, eu aproveitei de Salomão. Até mais, senhores e senhoritas!

            Disse isso e foi embora.

            Alguns segundos depois eles começaram a acordar do aturdimento. Isolino foi o primeiro a falar:

            — Alguém pode me dizer quem vai me pagar o prejuízo?

            Disse isso e desmaiou, sendo amparado pela Júlia, a garota holandesa, que buscou os sais num dos bolsos do infeliz livreiro.

            — Capitão, vamos continuar a briga? — indagou Zé Peroba, olhando para o Bicudo.

            — É claro que não, seu idiota! Vamos é pegar aquele calhorda! Afinal temos a obrigação de “pagá-lo” pelo excelente serviço!

            — E o que vamos fazer com isso? — perguntou Arquibaldo. O Capitão Barbosa foi taxativo:

            — Arquibaldo, decididamente eu não quero um mangá pela metade! Pode ficar com a minha parte!

            Entregou a metade do mangá para o outro. Este, menos perfeccionista, entregou as duas metades ao Bicudo.

            — Bicudo, guarde na sua mochila, eu pego na nave! Ainda bem que eu tenho durex! Agora, Barbosa, me ajude! Vamos nós dois atrás daquele safado e dar uma sova nele!

            — É claro, amigo! Se é que vamos conseguir encontrá-lo, ele leva grande vantagem!

            — Não importa, amigo! Vamos tentar pelo menos!

            — Esperem aí! — gritou a aflita Arlete, enquanto Júlia ligava para os paramédicos. — O mangá precisa ser pago!

            — Acha mesmo — escandiu Arquibaldo — que eu vou pagar por uma revista partida ao meio a machado? Passem bem!

            — Acho melhor irmos atrás deles, você e eu — disse Bicudo a Peroba. — Aquele maluco está armado de machadinha!

            — Preferia não ir, mas você tem razão. Não posso deixar que o meu capitão seja fatiado, por mais idiota que ele seja!

            — Vocês dois sabem qual é o pior nisso tudo? — gemeu a Arlete.

            — Não, o que? — disseram eles em uníssono.

            — Muito simples. Tenho certeza que este nosso desacordado patrão quando acordar vai descontar o mangá do nosso ordenado!

            — Que já é uma miséria — completou a Júlia.

            — Vamos rachar a despesa — disse Peroba, incapaz de resistir ao choro de duas garotas. — Bicudo, você dá a sua parte?

            Eles rapidamente pagaram e Arlete agradeceu mas ainda perguntou:

            — Mas e a mesa?

            Os dois se entreolharam.

            — Ah, não! — disse o Bicudo. — Ninguém vai levar a mesa! Vocês se entendem com o Isolino!

            Bicudo e Peroba saíram correndo, tentando encontrar os capitães.

            — Numa coisa pelo menos o malucão estava certo — lembrou Zé Peroba.

            — Em que?

            — Ora! Que os dois iam sair daqui como amigos!

 

NOTA – Chama-se “curva de argumento” uma figura literária que consiste numa súbita e radical mudança de rumo numa história, com o surgimento imprevisto de um novo fato ou personagem, como neste caso, com a inusitada aparição do Doutor Mexilhão. Ele tem sua própria série e esta é a primeira vez que interage com o Capitão Barbosa.

 

Rio de Janeiro, 13 de março a 3 de abril de 2020.

 

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quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Atentado em Itaipu

Atentado em Itaipu, de Martins de Oliveira. Capa: Cirton Genaro. 183 páginas. São Paulo: Alfa-Omega, coleção Biblioteca Alfa-Omega de Cultura Universal – Serie 2ª. – Volume 30. Lançado originalmente em 1983.


Os romances de ficção política com uma vertente de ação e aventura não se constituem numa prática habitual na literatura brasileira. Em sua maioria, costumam ter por características principais a reflexão e a crítica às mazelas do país, em termos históricos ou conjunturais. Assim, por meio da indicação do escritor Roberto de Sousa Causo, cheguei a este Atentado em Itaipu, de Martins de Oliveira. Desde já, um romance eletrizante de conspirações e planos mirabolantes, daqueles difíceis de largar a leitura. Mas não só: situado no contexto político da época, o período final da ditadura militar brasileira.

No início dos anos 1980 o país vivia os últimos eventos da abertura, processo político iniciado em 1974 pelo presidente Ernesto Geisel, com o objetivo de reduzir a repressão, controlar os órgãos de informação – eufemismo para os setores do governo que prenderam, torturaram e mataram –, e encaminhar o país para um processo “lento, gradual e seguro” de recondução dos civis à administração do Brasil. Olhando em retrospectiva, o processo foi tortuoso, mas bem sucedido do ponto de vista dos governantes, numa transição política regada a muitos pactos e negociações, que colocou um civil da oposição no poder, Tancredo Neves e depois de sua morte inesperada, José Sarney – e impediu qualquer punição aos militares.

Mas, como sabemos, nem todos desejavam que a ‘revolução’ de 1964 tivesse este desfecho. Tanto principalmente à direita – com militares radicais –, como à esquerda – com militantes e grupelhos revolucionários –, os objetivos eram outros: a retomada do autoritarismo mais ideológico e repressivo por um lado, e uma última tentativa de tomada de poder para instaurar no país um governo socialista, por outro. Assim, no plano político, um dos principais méritos do romance é mostrar como o processo de liberalização do regime autoritário embora, como dito, tenha sido exitoso do ponto de vista dos seus proponentes, foi inseguro e sujeito a retrocessos que poderiam ter levado o país a um outro rumo, longe da democracia finalmente conseguida – basta lembrar da tentativa de bomba no RioCentro, em 1981, felizmente mal sucedida. Pois é neste contexto que o livro explora a premissa assustadora anunciada em seu título. Um plano para explodir a maior usina hidrelétrica do mundo, provocando uma guerra com a Argentina e, com o caos instalado, permitir à esquerda revolucionária uma tentativa decisiva de chegar ao poder.

A usina de Itaipu é atualmente a segunda maior do mundo, atrás apenas da Três Gargantas, da China. Mas até 2012 foi a maior do planeta. E os números deixam claro porque: A barragem principal tem 1234 metros de cumprimento, produz cerca de 14 milhões de megawatts, com um volume aproximado de 30 bilhões de metros cúbicos de água, altura máxima de 196 metros, com uma área de 1460 quilômetros quadrados, e 18 turbinas em seu total. Eivado de muita controvérsia desde o seu projeto e realização – entre 1975 e 1982 – quase virou um contencioso militar grave com a Argentina. Inicialmente o país platino queria fazer parte do projeto; depois de negada sua participação, realizada apenas entre Brasil e Paraguai, os argentinos ameaçaram retaliar militarmente, dentro do contexto bélico da época, já que também eles viviam sob ditadura militar. Pois, de fato, se abertas as comportas parte importante do território do país seria inundado, com consequências graves até Buenos Aires. Na visão bélica e paranoica dos anos 1970, Itaipu não era apenas uma hidrelétrica que geraria energia para todo o Paraguai e mais da metade do Brasil, poderia ser, no limite, uma arma estratégica poderosíssima. Esta não é a única abordagem deste tema, pois lembramos do conto “A Pedra que Canta” (1991), de Henrique Flory, no qual a usina é usada como arma após a invasão argentina à região sul do Brasil, com as catastróficas consequências esperadas.

No romance de Oliveira, a trama política se divide, justamente, entre os setores marginalizados àquela altura, dos radicais de direita e de esquerda. Com a Lei de Anistia de 1979, voltaram ao Brasil vários exilados do regime autoritário, entre eles Waldimir Esteves, o Tocha, um terrorista internacionalmente conhecido, com ações executadas em várias guerrilhas mundo afora e com estreitos laços com o regime socialista cubano. Descrente da abertura, e do modelo de redemocratização ‘burguesa’ que se anunciava, ao voltar ao país não perde tempo e tenta reconstruir uma rede de militantes com objetivos subversivos. No mínimo para desgastar a ditadura, abrindo espaço para movimentos que possam, ao menos aproximar a esquerda do poder. De outro lado, um grupo radical dos linhas-duras militares, liderado pelo general Rubens Messias, cria o grupo Alfa: para conspirar com o objetivo de sabotar a abertura em curso, especialmente quando estava para ser votada uma emenda à Constituição que restauraria, para o mesmo ano, a eleição direta para presidente. Ao contrário do que aconteceu em nossa linha histórica, a emenda é aprovada, o que faz com que o governo entre em negociações para chegar a um candidato de oposição mais palatável aos seus interesses, o que incentiva uma ação ainda mais radical dos conspiradores da caserna: assassinar o presidente que teria traído os ideais da “revolução”.

Numa reunião com seus aliados, Tocha conhece um engenheiro que trabalha em Itaipu e que odeia os militares, porque estes o confundiram com seu irmão, e o torturaram barbaramente no início dos anos 1970. Ele, então, sugere o plano audacioso de dinamitar a usina, o que faz com que os olhos de Tocha brilhem: poderia ser um plano perfeito, ainda que de execução muito difícil, para permitir que a esquerda chegasse ao poder. Ele, então, planeja meticulosamente o atentado e consegue ajuda do regime de Fidel Castro, com financiamento e explosivos altamente sofisticados.

O leitor percebe que, pela ousadia e gravidade de ambos os planos conspiratórios, o interesse da leitura é garantido. Mas Martins de Oliveira, médico cardiologista e professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tem uma prosa extremamente hábil para amarrar os planos de ambos os lados, e não só: o contexto político é extremamente condizente com o que ocorria na época. Desta forma, ações que, em tese, teriam muita chance de dar errado – como reconhecem os próprios personagens do livro –, ganha ares de verossimilhança e muito suspense.

Se no começo da resenha afirmei que não há uma tradição de romances de ficção política no Brasil, Martins de Oliveira é uma exceção. Antes de Atentado em Itaipu, ele estreou com Outono Vermelho, pela Globo de Porto Alegre, em 1966, mostrando o que poderia acontecer se os comunistas tivessem chegado ao poder no Brasil. Ora, isto é história alternativa! Pelo que sei, os poucos especialistas brasileiros neste subgênero não incluem esta obra. E outro romance de sua autoria explora a chegada ao Vaticano de um Papa marxista, em Os Vinte Dias de Outubro, da Record, em 1982. Outro exercício instigante de ficção especulativa política. Desnecessário dizer que ambos os livros devem ser conhecidos, ainda mais depois da leitura deste ótimo tecnothriller político que flerta com a ficção científica.

Pois no contexto do gênero, Atentado em Itaipu se situa ao lado de outros romances de ficção política especulativa dos anos 1980, que procuraram imaginar cenários possíveis para um Brasil pós-ditadura, no que eu chamei de ‘ficções da abertura’, no artigo “Ventos de Mudança: A Ficção Científica Brasileira e a Transição Democrática”, de 2013. Livros como A Invasão (1979), de José Antonio Severo; Não Verás País Nenhum (1982), de Ignácio de Loyola Brandão; A Ordem do Dia (1984), de Márcio Souza; Horizonte de Eventos (1984), de Jorge Luiz Calife; Silicone XXI (1985), de Alfredo Sirkis. Além destes, outro que descobri após a publicação do artigo é O Outro Lado do Protocolo (1985), de Paulo de Souza Ramos. Provavelmente deve haver alguns outros. O que só evidencia que a pesquisa sobre a presença de temas de FC no mainstream literário brasileiro continua a ser um campo a ser explorado, como neste ótimo Atentado em Itaipu.

Marcello Simão Branco


quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Fronteiras da Eternidade

 

Fronteiras da Eternidade (The Edge of Forever), Chad Oliver. Tradução: José Sanz. Capa: Myriam Graber. Introdução: William F. Nolan. 280 páginas. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1973. Publicado originalmente em 1971.

 


Esta coletânea publica algumas das principais histórias curtas do autor surgidas no início de sua carreira, na década de 1950. Como ele mesmo afirma no posfácio que escreveu a este livro, são narrativas dele quando jovem, com menos de 30 anos, no começo de sua carreira acadêmica, como professor de Antropologia.

Chad Oliver, na verdade, é o nome artístico de Symmes Chadwick Oliver (1928-1993), um ávido leitor e fã de FC na adolescência. Como informa William F. Nolan (1928-2021) na ótima introdução “Os Mundos de Chad Oliver”, ele conheceu a FC por causa de uma febre reumática, que o fez ficar de cama por muito tempo. Bem aproveitado, ao menos, lendo diversas pulp magazines. Na verdade, ele não apenas as lia, mas se tornou um dos maiores missivistas dos anos 1940.

Em quase todas as histórias desta coletânea, temos personagens antropólogos. “Talvez mais que o desejável”, como ele refletiu, anos depois. Mas compreensível, pelo fato de as duas atividades estarem em formação e desenvolvimento, a de escritor de FC e a de antropólogo. Assim, Oliver é normalmente classificado como um escritor de FC soft e não está incorreto. É um nome importante, pioneiro mesmo, ao incluir na ficção científica uma abordagem culturalmente crítica e embasada por pesquisas em antropologia. Como ressaltou o crítico da revista Locus Gary K. Wolfe, “Oliver foi o responsável por introduzir de forma consistente temas antropológicos na FC norte-americana a partir dos anos 1950, tendo uma importância comparável à de Ursula K. Le Guin neste particular.” (Megalon n. 30, maio 1994). Isso não é pouca coisa, embora, nos dias de hoje, seu nome esteja relativamente esquecido.

Fronteiras da Eternidade – belo título, aliás –, contém seis histórias abordando o impacto sobre os seres humanos de contatos com outras formas de vida e cultura, além dos significados sociais do desbravamento do espaço sideral e, principalmente, algumas experiências de desenvolvimento de novas culturas. Processos de manipulação que, como se verá e o próprio autor reconhece em seu posfácio, muito polêmicos.

A primeira história é “Transfusão” (“Transfusion”), primeiramente publicada em Astounding Science Fiction, junho de 1959. Um antropólogo viaja no tempo e descobre, para seu espanto, que os hominídeos de 25 mil anos atrás desapareceram sem deixar rastros. É como se toda a linha evolutiva da humanidade tivesse sido abortada, e não houvesse um início da presença humana na Terra. Mas Ben Hazard e um colega planejam e executam várias missões de retorno a períodos ainda mais distantes. E descobrem uma resposta chocante, quando testemunham 50 casais de humanos sendo deixados na Terra por uma gigantesca astronave, conduzida por humanoides. É uma história fascinante, embora um pouco rocambolesca, em que surge a tese de que a humanidade teria origem alienígena e fruto de uma experiência. Adeptos de teorias da conspiração e ufologia deverão gostar.

A noveleta seguinte também lida com experiências de manipulações culturais. Em “Um Amigo para o Homem” (“A Friend to Man”), primeiro vista na edição de março de 1954 de Universe Science Fiction, dois casais vivem no interior de uma cúpula em Ganimedes. Fazem parte de uma experiência para verificar como se dá a rotina e os possíveis efeitos psicológicos de viver em isolamento num ambiente alienígena. Eles têm todo o conforto material, mas, aos poucos, passam a sofrer efeitos psicológicos. Dizem ter visões de efeitos naturais da Terra, tornam-se deprimidos uns, paranoicos outros. E a ansiedade só aumenta por saberem que passarão muito tempo antes de chegar uma nave da Terra para levá-los de volta. Até que, recebem uma visita inesperada de um viajante espacial. Mas até que ponto é verdade ou não passa de imaginação?

A novela seguinte seja, talvez, a mais controversa em termos de interferência e mudança no destino de pessoas. “Trabalho de Campo” (“Field Expedient”), foi primeiro publicada em janeiro de 1955 de Astounding Science Fiction. No século XXII a Terra vive, finalmente, sob um governo mundial. E, de certa forma, a utopia hegeliana do ´fim da História´, tal qual atualizada por Francis Fukuyama em 1989, se tornou realidade. O mundo inteiro se ocidentalizou. Com o mesmo governo e sistema econômico. Além de mesmos padrões culturais. Mas esta estabilidade trouxe certa acomodação em algumas áreas, como por exemplo, o abandono da exploração do espaço. Neste contexto, um velho multibilionário excêntrico resolve financiar um projeto secreto de colonização de uma nova sociedade em Vênus. Muito questionável, porém, já que tal sociedade é composta por crianças, cedidas pelos pais a uma certa Fundação. Não sem certa pressão psicológica e omissão dos poderes públicos. Mas qual será o resultado do intento: Que tipo de sociedade emergirá? Conseguirá tirar a Terra de sua decadência? Embora interessante, é uma história inverossímil e que poderia ser melhor desenvolvida.

“A Formiga e o Olho” (“The Ant and Eye”), apareceu primeiro em outra edição de Astounding Science Fiction, abril de 1953. Aqui o tema é assumidamente político e, digamos, menos culturalista. Mas o que chama a atenção é a maneira estranha como é contada. Não do ponto de vista do estilo, por sinal, sempre limpo e agradável, mas pelo tom de conspiração. Muito questionável ou não bem desenvolvido no argumento. Em 2034, um antropólogo que faz pesquisas em Meran, um planeta que orbita a estrela de Procion, recebe um chamado urgente para voltar à Terra. Robert Quinton trabalha para uma agência da ONU, oficialmente voltada ao comércio internacional e interestelar. Mas que tem uma atividade secreta que estuda, com computação estatística, possíveis cenários de crises para a humanidade. Quinton deverá liderar uma missão para arruinar a carreira política de um certo Donald Weston. Isso porque, segundo o resultado de um relatório elaborado por supercomputadores com 90% de risco de acerto, este homem poderá levar à extinção da humanidade. Não é dito como, mas se intui que se tornaria presidente dos Estados Unidos e provocaria uma guerra nuclear. Mas com que direito uma agência pública, pra começar oculta, toma decisões sobre atividades políticas legitimadas eleitoralmente? Além disso, devemos seguir inquestionavelmente decisões tomadas por máquinas? É certo que se o risco for tão grave, algo deve ser feito, mas resta saber como, de maneira a não conspurcar decisões coletivas de base democrática. De fato, uma questão difícil, em outra história em que o tema da manipulação se faz presente.

Assim como em “O Primeiro nas Estrelas” (“First to the Stars”), a história mais antiga do livro, publicada em julho de 1952 em Astounding Science Fiction, com o título de “Stardust”. É uma novela empolgante sobre uma nave de gerações, dada como perdida a 200 anos e aparentemente sem vida a bordo, que é reencontrada por uma nave estelar. As ações das duas naves se alternam e os da Viking, a nave descoberta, só vão se tornando clara aos poucos, deixando uma sensação de estranhamento efetiva no leitor. Isso porque, após a nave ter sofrido um acidente e perder o rumo de seu destino, vaga sem rumo habitada por sobreviventes, descendentes dos tripulantes originais. Não há luz, em boa parte não há gravidade artificial, e a comida é racionada. Vive-se, assim, num ambiente perigoso e sem comando definido, com comunidades lutando entre si, quase como numa guerra. Assim, quando os tripulantes da Wilson Langford a descobrem, enviam uma missão para, primeiro descobrir se há vida, e em caso positivo o que fazer com ela? Resgatar os tripulantes da nave avariada, trazendo, com isso, um problema de desorientação cultural, já que eles jamais viveram outra realidade que a de um vaso espacial sem luz? Ou, deve-se tentar consertar a nave para que possa retomar seu destino original, de estabelecer uma colônia num planeta semelhante à Terra, que orbita a estrela de Capella, a 42 anos-luz de nosso planeta? É a melhor história do livro, excelente exemplar no tema dos problemas que podem surgir numa viagem espacial.

“Didn´t He Ramble” é o título de uma canção de Louis Armstrong, que concluí a coletânea. Foi publicada originalmente em abril de 1957 de The Magazine of Fantasy and Science Fiction. Um outro multibilionário idoso e entediado contrata o serviço de uma empresa que simula realidades artificiais. Theodore Pearsall deixa sua esposa e sua fortuna na Terra, e parte para viver seu sonho final num pequeno asteroide, transformado na Nova Orleans do início do século XX. Isso porque, Pearsall é uma grande fã de jazz e deseja ver e sentir como surgiram alguns dos seus ídolos como, por exemplo, Armstrong. É uma história bonita e melancólica, que destoa do contexto mais ativo e algo otimista das anteriores.

Fronteiras da Eternidade apareceu numa coleção de FC da editora Expressão e Cultura, sob a organização do célebre fã e editor José Sanz (1915-1987), que marcou a cena cultural brasileira nos anos 1960 e 1970, e nota-se o capricho da tradução, o cuidado com as referências bibliográficas, a bela capa – veja acima –, enfim, a diferença quando estamos diante de um livro publicado por alguém que amou o gênero. Não sei se Chad Oliver chegou a receber um exemplar – é bem possível que sim – e, se for o caso, deve ter gostado. Outros livros do autor foram publicados no Brasil, três romances: Os Senhores do Sonho (Unearthly Neighbors; 1960) (Edições GRD, 1964) e mais dois sob os cuidados de Sanz: No Limiar de Novos Mundos (The Shores of Another Sea; 1971) (Expressão e Cultura, 1971) e Vultos sobre o Sol (Shadows in the Sun; 1954) (Expressão e Cultura, 1974). Assim, para os poucos interessados em descobrir um novo autor, entre os muitos talentos esquecidos da FC, vale a pena conhecer este.  E em especial Fronteiras da Eternidade, pois é muito representativa não só da primeira fase de Oliver na FC, mas de suas contribuições pioneiras ao gênero. Pois explora de forma instigante as relações sobre alteridade, reconhecimento e relativismo cultural, tão caros a um gênero especulativo como a FC, e que tem se tornado cada vez mais relevantes neste século XXI.

 

Marcello Simão Branco

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O Passa-Paredes

O Passa-Paredes (Le pasie-muraille), de Marcel Aymè. Tradução e orelhas: Fernando Py. Capa: Ipojucan. 162 páginas. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, Coleção Mestres do Horror e da Fantasia, 1982. Lançamento original de 1943.


Marcel Aymè (1902-1967), escritor pouco notado no Brasil, se destacou principalmente em seu país, a França, na segunda metade do século passado. Chama a atenção nesta coletânea de dez histórias, uma prosa limpa e coloquial, o humor e a fina ironia, um trânsito muito competente entre o cotidiano e o fantástico, além do caráter crítico ao seu tempo. Época dramática, em plena ocupação alemã durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

O conto “O Passa-Paredes”, que dá nome à coletânea, é o primeiro da lista e um dos momentos mais brilhantes. Nele, um modesto funcionário de uma repartição pública descobre, por acaso, que tem o poder de atravessar corpos sólidos. Após o espanto, que o leva, inclusive a procurar um médico – e que lhe receita uns comprimidos! –, se acostuma e passa a tirar proveito da situação. Não demora para que aflore outra parte de sua personalidade. Se torna um exímio assaltante que deixa bilhetinhos com o apelido Garou-Garou. Isso pega no imaginário do povo e ele se torna muito conhecido, para desmoralização da polícia. Acaba preso, mas sempre escapa… A história se tornou tão popular que ganhou até uma estátua em Paris  ver imagem abaixo , e recebeu três adaptações no cinema (duas francesas e uma alemã), e uma minissérie na TV do seu país em 2016. Outra história sobre o mesmo tema do qual me lembro é o filme "Quarta Dimensão" (4D Man; 1959), de Irwin S. Yeaworth. Baseado num roteiro de Theodore Sturgeon, ao contrário do conto do francês, procura dar uma justificativa científica ao fenômeno de pessoas trespassarem objetos sólidos. É um filme de FC competente, mas sem a aura de meio de não se levar muito a sério de Aymé, o que garante a este parte do seu encanto.

Outra história insólita e divertida é “As Sabines”, no qual uma jovem possui o dom da ubiquidade. Como no conto anterior, ela se rende à tentação. Casada, mas entediada, arruma um amante atrás do outro. E não só em Paris, mas em Londres, e mundo afora. Chega a conviver com centenas ao mesmo tempo! É uma história que, mais que a anterior, flerta com o absurdo, ainda mais acentuado pelo tom humorístico – e ao mesmo tempo sarcástico – sobre o comportamento humano.

Em dois outros contos, Aymè explora a questão da ética religiosa e o valor da doutrina cristã. Em “A Lenda Poldova” e “O Oficial de Justiça”, o sobrenatural se insere na chegada ao céu de uma beata – no primeiro conto –, e de um, justamente, oficial de justiça, no segundo. Ambos, por motivos diferentes, têm dificuldades em serem aceitos por São Pedro no Paraíso – no segundo conto até Deus é chamado para resolver a controvérsia que se instala quando o oficial de justiça não é aceito, exatamente por exercer de forma corretíssima o seu trabalho, o que ocasionou a miséria e a humilhação de muita gente. Já o motivo da vetusta cristã não ser aceita, é que como era tempo de guerra, priorizou-se permitir a entrada dos mortos em batalha. Assim, quando ela morre de uma doença, ela é barrada e não se conforma, por ter sido sempre um exemplo de retidão e caridade. Mas quando descobre que o seu sobrinho ladrão e estuprador, morto na guerra, é aceito ela resolve dar um jeito nem um pouco ético de adentrar no céu.

O tom mais socialmente crítico é ainda mais acentuado, e sem o fantástico, na tocante noveleta “As Botas de Sete Léguas”, sobre a convivência de um menino pobre com colegas mais ricos em uma escola, a partir do desejo de todos de comprar as botas do título. Mas, do ponto de vista do fantástico e, principalmente, do subgênero da FC da viagem no tempo, duas outras histórias que se destacam: “O Cupom do Tempo” e “O Decreto”.

No primeiro, devido à crise econômica e escassez de alimentos, o governo baixa uma lei que delimita o tempo de vida de cada pessoa em cada mês. O critério é o da relevância da profissão de cada um. Claro, tudo muito arbitrário. Assim, tem gente que vai viver 5 dias, outros 10, e alguns o mês inteiro. Nos dias faltantes as pessoas ‘morrem’, ou seja, literalmente evaporam, para reaparecer no mês seguinte. Na história, acompanhamos as desventuras de um professor que teve sua vida reduzida à metade por mês. Embora não haja explicação de como tal situação seja possível – o que afasta o conto da FC e o vincula ao fantástico –, lembra o romance O Mundo de um Só Dia (Dayworld; 1985), de Philip José Farmer (1918-2009). Neste livro, o problema da superpopulação é contornado, ao se fazer cada pessoa viver só um dia por semana. Nos outros dias, ela fica em animação suspensa.

Já no conto “O Decreto”, a situação temporal que se manifesta é o do avanço dos anos. De novo, é o governo que baixa uma medida que adiante em 17 anos o calendário. Ou seja, de 1942 salta-se para 1959. Ação esdrúxula e sem efeito, não? Não, porque após a mudança, as pessoas despertam, efetivamente, mais velhas e com suas vidas alteradas, para melhor ou pior a depender de cada um. O mais insólito, contudo, é o que passa um funcionário público ao visitar um amigo que vive numa chácara, nos arrabaldes de Paris. Após uma forte chuva ele se perde e se depara com a presença de soldados alemães. Incrédulo no início, fica chocado ao descobrir que seu país está novamente invadido. Mas não: ele voltou a 1942. Tenta achar o caminho de volta para Paris, mas mesmo lá constata que os nazistas governam o país. Ele mesmo se pergunta se voltou mesmo à sua época ou se este seria um universo paralelo em que a guerra não terminou, apesar dele voltar a ser jovem novamente. É a melhor narrativa da coletânea e no que, Aymè, que escreveu estes contos durante a ocupação nazista, elocubra de forma instigante e angustiada uma saída para a humilhação e o pesadelo.

O conto que conclui a coletânea é “Esperando” e destoa dos outros. Isso porque mostra que a Segunda Guerra durou até 1972, e o povo passava por doenças e fome. Numa fila para receber pão, várias pessoas contam sua história triste e como suas vidas se tornaram miseráveis e sem esperança por causa do conflito. É uma história bem triste e mostra que, no fim das contas, Aymè se rendeu ao pessimismo pelo qual vivia a França no início dos anos 1940.

Afora esta ótima coletânea, o autor publicou muito durante as décadas de 1940 a 1960, quando faleceu. Muitos romances, contos, peças de teatro e roteiros para cinema, no qual o elemento fantástico vez por outra se tornava um meio de exploração da narrativa. No Brasil, além de O Passa-Paredes, teve publicado os infanto-juvenis A Égua Verde (Le jument verte; 1933), pela Record em 1968; Histórias do Gato Sentado (1972), pela Ediouro, e Os Bois (sem data), pela Anhambi, também sem data. E o romance O Sobrado (La maison basse; 1935), pela editora Pontes, em 2004.

Aymé mostra nesta coletânea que uma virtude da arte de escrever e contar histórias é, por meio de uma prosa simples e despojada, envolver o leitor e o fazer refletir sobre questões sensíveis e próximas a cada um de nós. E com o adicional, neste livro ao menos, de usar o recurso do fantástico e do sobrenatural para acentuar os problemas e contradições da condição humana e social. Um autor que merece mais atenção. No campo do fantástico e em geral.

Marcello Simão Branco


sexta-feira, 15 de julho de 2022

O Auto da Maga Josefa

O Auto da Maga Josefa, Paola Siviero. Capa e ilustrações internas: Vito Quintans. 221 páginas. Belo Horizonte: Autêntica/Gutenberg, 2021.

 


O escritor Jeronymo Monteiro (1908-1970) afirmou na introdução de sua antologia clássica O Conto Trágico (1960), que quando realizou a pesquisa, se surpreendeu com uma dificuldade em encontrar histórias de horror de autores nacionais, pois imaginava que pelo fato do brasileiro ser tão crente e místico, existiriam em profusão.

Como eu e Cesar Silva dissemos em “Trajetória e Caracterização de uma Ficção de Horror Brasileira”, introdução da antologia As Melhores Histórias Brasileiras do Horror (2018), esta dificuldade não está relacionada ao enorme imaginário místico e sobrenatural do brasileiro, mas a uma certa resistência e desestimulo do ambiente literário e editorial em incentivar o seu desenvolvimento.

Em todo caso, nossos autores sempre escreveram histórias de horror e fantástico em grande quantidade, muitas vezes inseridas em outros contextos e com outras classificações, digamos, literariamente mais ‘nobres’. Mas conforme comprovamos em nossa antologia – e outras recentemente montadas – há um corpus sólido de obras importantes que consolidam o horror brasileiro como um gênero não só bastante praticado, mas com indiscutível qualidade.

Pois, ao ler este O Auto da Maga Josefa esta constatação só foi reforçada. Esta coletânea de contos interligados, ou se quiserem, um romance fix-up, é uma das melhores leituras de horror e fantástico brasileiro dos últimos anos. Talvez destas duas décadas do século XXI.

Paola Siviero apresenta um mundo encantado e assustador que não está longe de nós, embora se apresente de forma surpreendente e, por vezes, assustadora. Estou me referindo ao Nordeste, a região historicamente mais pobre do Brasil, atrasada economicamente, corrompida politicamente e amaldiçoada – o termo cabe neste contexto – em termos climáticos. Isso sem falar no preconceito que o povo nordestino tem de lidar com os das regiões economicamente mais desenvolvidas, do Sul e do Sudeste.

A autora mostra como, num lugar historicamente tão desfavorável, as explicações fantásticas e sobrenaturais fazem mais sentido. É como se as aventuras do caçador de demônios Toninho, da maga Josefa – filha do capeta – e de Véia, uma mula secular, nos mostrasse o Brasil do passado, do horror com a marca rural do século XIX e início do XX. Mas também de como este Brasil dos grotões, da miséria material e do infortúnio do destino, ainda existe, mesmo que as histórias ocorram no início dos anos 1960.

Em suas primeiras aventuras como caçador, Toninho conhece Josefa, uma mulher misteriosa e poderosa. Que impõe respeito e temor. Juntos, cada qual com seu motivo particular, decidem juntar forças para enfrentar os seres e eventos sobrenaturais e fantásticos que se misturam à realidade do interior do Nordeste. Em dez narrativas, perambulam pelo sertão e pelo agreste, lidando com destemor e alguma imprudência com lobisomem, zumbi, vampira, dragão, gênio, golem, chupa-cabra, o próprio diabo, entre outros seres fantásticos e malignos que levam o pânico e a desgraça ao povo simples, para o qual não há uma linha de separação entre o mundo dito natural e o sobrenatural. Como que a explicar a própria dureza de suas vidas, os eventos e os próprios seres fazem parte de seu imaginário e sua realidade.

Se numa coletânea há sempre alguns contos melhores e outros nem tanto, em O Auto da Maga Josefa é difícil fazer esta distinção. O nível médio das aventuras de Toninho e Josefa é muito bom. Histórias de horror e fantástico em que a maior qualidade está no equilíbrio entre a criatividade, a prosa limpa e fluente, a verossimilhança dos lugares e das pessoas, e uma boa dose de bom humor. Sim, apesar de estarmos diante de situações muitas vezes violentas e assustadoras, o relacionamento entre Josefa, Toninho e Véia é engraçado, dadas as particularidades de cada personagem, muito bem construídos em suas motivações e angústias. Principalmente a maga Josefa que, para além da profissão em si, tem uma justificativa pessoal, uma missão do qual depende seu próprio destino quando deixar este mundo.

Em sua “Nota da autora”, Siviero conta que este conjunto de histórias nasceu de uma provocação num debate entre escritores. De provar que seria possível escrever histórias fantásticas e de horror com personagens e temas brasileiros. Ora, esta é uma velha questão, defendida de forma arrojada dentro de um subgênero da ficção especulativa, a ficção científica. Do fim dos anos 1980 para cá, com o lançamento do Movimento Antropofágico da Ficção Científica Brasileira, de Ivan Carlos Regina, toda uma geração de autores enveredou por esta linha. De certa forma, é até surpreendente que na segunda década do século XXI ainda paire na concepção de alguns autores uma dúvida como esta. Mas, em todo caso, assim como já feito antes não só na FC, mas também no horror e na fantasia, este O Auto da Maga Josefa comprova a viabilidade desta proposta. Aliás, mais que isso: mostra que esta é a melhor concepção para a construção de uma ficção especulativa brasileira de qualidade e relevância para a nossa história e cultura, além de trazer também uma voz própria do que nós podemos mostrar como uma verve brasileira para o fantástico. Pois para um autor alcançar a universalidade com sua literatura (ou arte) nada melhor do que abordar a sua realidade, o seu entorno, a sua história, o seu povo.

A primeira edição de O Auto da Maga Josefa saiu pela pequena editora Dame Blanche, especializada em publicar jovens autores brasileiros nos gêneros fantásticos, e o êxito ao ser premiada em 2019 com o Le Blanc e o Odisseia Fantástica, além de ser finalista do Argos – os três principais prêmios da literatura fantástica brasileira – levou a editora Autêntica a se interessar em relançar a obra. Aliás, é uma edição muito bonita, com a ilustração de capa e a de cada história a cargo do talento de Vito Quintans. Vale a pena adquirir esta edição também porque há um bônus: um livrinho no formato do cordel com mais uma aventura, “Conjurações e Terra Seca”, que se passa, inclusive, cinco anos depois da última história do livro – e claro, com inspiradas ilustrações de Quintans.

Fico a pensar que as aventuras de Josefa e Toninho poderiam render muitas outras histórias – como num seriado –, pois o potencial do fantástico e do sobrenatural sugerido neste universo ficcional nordestino é inesgotável. Mas seja por qual projeto Paola Siviero optar, acredito que a chance dela nos brindar com outras boas histórias é muito grande. Pois sua maior virtude é ser uma ótima contadora de histórias.

Marcello Simão Branco

 


sexta-feira, 17 de junho de 2022

Invasão!

Invasão! (Footfall), de Larry Niven e Jerry Pournelle. Tradução: Ana Paula Simões Silva. Capa: Antônio Jeremias. 649 páginas. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, Coleção Mundos da Ficção Científica, n. 45, 1989. Lançamento original de 1985.

 


Este é, provavelmente, o maior romance sobre o tema da invasão alienígena já escrito. São quase 700 páginas na versão brasileira, ante 495 da norte-americana. Este tamanho não é casual, pois a proposta dos autores é contar uma história de tons épicos, ao mesmo tempo dramática e realista, apesar de ser ficção científica.

Em maio de 1995 astrônomos baseados no Havaí percebem que há uma nave alienígena em direção à Terra. Na verdade, os extraterrestres se estabeleceram no Sistema Solar em setembro de 1976, quando orbitaram o Sol e se dirigiram para uma lua de Saturno, onde ficaram escondidos. Ocultos, terminaram pacientemente os preparativos para o objetivo final da missão: invadir e viver em outro planeta, a Terra, escolhida por dois motivos práticos. O planeta que oferece as condições de vida mais semelhantes à de seu mundo na estrela mais próxima. Que ele já seja habitado, não é objeto de consideração moral por parte deles. Se irão alterar ou destruir formas de vida do planeta e, mesmo, modificar sua própria atmosfera.

Os fithp, seres semelhantes a filhotes de elefantes, com duas trombas frontais e couraças nas costas, se locomovem de forma ereta, chegando a cerca de três metros. São originários de um planeta de Alfa Centauri, a estrela mais próxima da Terra, planeta que eles chamam de Winterhome. Resolveram deixar seu habitat, chamado por eles de Homeworld, por causa de uma guerra global em que os que perderam tiveram como punição o exílio. Isso, apesar de, como eles dizem, a vida ter ficado inviabilizada em seu mundo. Viajaram numa nave gigantesca, com cerca de 2.500 km de extensão e 600 m de largura, se dividindo em duas categorias: os sleepers (os que saíram do planeta) e os spaceborn (os que nasceram na própria nave durante a viajem e a conduziram a seu destino), também chamados de o rebanho viajante. A missão começou, pelo tempo da Terra, em 1915. Ou seja, levaram 80 anos para completá-la.

A descoberta da chegada de uma civilização extraterrestre é explorada de forma verossímil, numa mistura de grande expectativa e incerteza. Quem são eles? De onde são e por que vieram? Seriam pacíficos ou não? No mundo de Niven & Pournelle a Terra ainda vive a Guerra Fria, com grande rivalidade entre os EUA e a URSS. E em parte devido a este contexto conflitivo, não se constrói uma convergência comum para lidar com a questão, tão inédita como potencialmente perigosa. Alguns políticos e militares – de ambos os lados – chegam mesmo a achar que um dos lados poderia se aliar com os alienígenas, e propõe até um ataque nuclear preventivo contra o inimigo. Por cerca da metade do livro, militares e políticos dos dois lados planejam suas duplas estratégias: 1) como lidar com o possível invasor? e 2) como lidar com o inimigo interno? Mas com a iminente chegada dos fithp, um deputado norte-americano – entusiasta da exploração do espaço –, é convidado para ir à Kosmograd, a estação orbital soviética, que serviria como primeiro elo de contato com os visitantes.

Em abril de 1995 a Thuktun Flishthy parte da lua de Saturno e, um mês depois, chega à Terra. Destrói a Kosmograd e não responde às tentativas de comunicação humana que, aliás, já estavam sendo feitas desde a sua descoberta. Com isso, para espanto e choque, a humanidade percebe que está sendo invadida, e nada mais será como antes em sua história.

Como já dito, é um romance massivo e que dá voz a dezenas de personagens – tem até uma lista deles e que não inclui todos! São muitas situações e histórias de vida entremeadas, numa estrutura de enredo que lembra o de uma telenovela. Até a invasão propriamente dita, por exemplo, cerca de um terço é dedicado às estratégias de mobilização e às vidas cotidianas de várias pessoas. É, assim, uma espécie de romance mosaico que tira sua força, principalmente, do tema maior, mas com particularidades da vida de pessoas comuns, algumas delas desnecessárias.

Contudo, o tipo de invasão dos fithp não é dos mais convencionais. Eles estabelecem sua supremacia do espaço. Com sua poderosa nave e dezenas de outras menores, disparam raios laser para destruir a infraestrutura e as instalações militares, principalmente dos EUA e da URSS. Assim, estradas, pontes, represas, sistemas de comunicação e energia são dizimados. Isso desestabiliza quase totalmente a rede de comando militar e a presença do Estado, levando à confusão, desinformação, desmobilização e anarquia. Os alienígenas estabelecem uma base inicial no estado norte-americano do Kansas, que é posteriormente destruída – assim como todo o território –, com mísseis intercontinentais soviéticos, numa ação conjunta dos dois antigos rivais. A estratégia dos invasores não é uma invasão terrestre clássica, mas sim subjugar os humanos e fazê-los de escravos, ou como eles dizem, novos membros do rebanho viajante.

Um aspecto curioso do livro é a presença de escritores de FC. Convocados pelo presidente dos EUA, eles formam “A Equipe da Ameaça”, um grupo de especialistas para aconselhamento sobre as razões da invasão e o possível comportamento dos alienígenas. Uma homenagem é feita explicitamente a Robert A. Heinlein (1907-1988), na figura do líder do grupo, o escritor Robert Anson. O perfil mostrado dos autores de FC no livro é de pessoas inteligentes e um tanto impertinentes e arrogantes. Estaria próximo da verdade ou, no fundo, é inconscientemente como Niven & Pournelle se enxergam?

De outro lado, os fithp também têm seus especialistas no comportamento da ‘presa’, como eles chamam os humanos. Contudo, o grau de conhecimento deles é muito pequeno, sendo constituído praticamente depois do contato inicial. Ora, por que não houve um grupo de pesquisa sobre a humanidade desde a chegada, dezenove anos antes? Talvez por se acharem muito superiores. Mas, aos poucos, com a convivência com os humanos que fazem de prisioneiros, percebem que cometeram um erro.

Os elefantídeos têm uma mentalidade de comportamento coletivo. Não tomam decisões importantes de forma individual, mas sempre em relação ao grupo a que pertencem. Não necessariamente através de consultas, mas respeitando as tradições e a ética entre eles. Além de se subdividirem entre os nativos – que detém a liderança – e os viajantes, há entre estes os dissidentes. Este subgrupo se insurge e questiona a invasão de outro planeta. Defendem que eles vivam no interior da nave, já que não conheceram outro ambiente de vida. Assim como a decisão tomada de invadir um mundo já habitado sem consideração moral alguma sobre as consequências, o motivo deles também é prático.

Como parte do plano de dominação, os alienígenas atiram um ‘foot’ em direção à Terra – um enorme meteoro que cai no Oceano Índico e destrói a Índia, além de provocar maremotos e chuvas globais de água salgada. Com isso, bilhões de seres humanos e animais são mortos e o próprio clima se torna mais temperado, bem de acordo com o de Homeworld. Tudo isso para que eles, possam viver na superfície da Terra, por isso, aliás, nomeada por eles de Winterhome – o mesmo nome de sua estrela de origem.

Parece que tudo está perdido, mas, secretamente, o governo dos EUA planeja e executa a missão Orion: a construção de uma nave espacial – chamada de Michael – cheia de armas laser e ogivas nucleares para combater os fithp. O nome não é casual, pois faz uma ilação óbvia com a passagem bíblica da expulsão de Lúcifer do Paraíso. É vencer ou perecer.

Invasão! contribui de forma efetiva para o subgênero, de certa forma, atualizando A Guerra dos Mundos (The War of the Worlds; 1898), de H.G. Wells (1866-1946), o clássico de referência sobre o assunto. Se não tem a originalidade e o brilho literário do inglês, a dupla norte-americana é competente na condução de uma história cheia de drama, suspense e reviravoltas. O que talvez tenha ficado datado para além do necessário é o clima de rivalidade e paranoia da Guerra Fria, e os autores poderiam ter feito um esforço especulativo melhor sobre os desdobramentos deste contexto, já desacelerado quando escreveram o livro.

Este romance, em nossa língua, apareceu primeiro em Portugal, com o título de A Pegada (tradução literal), em dois volumes pela Gradiva, em 1987. Foi finalista do Prêmio Hugo 1986 e best-seller do The New York Times por semanas, e não foi a primeira parceria entre Larry Niven e Jerry Pournelle (1933-2017). Antes escreveram outro romance de FC apocalíptica, Lucifer´s Hammer (1977), sobre um cometa em rota de colisão com a Terra, e também The Mote in the God´s Eye (1974), sobre contato com alienígenas, num contexto de futuro distante. Ambos também bem recebidos pelos críticos e leitores. Estes autores, cada um com uma carreira solo importante, especialmente Larry Niven, fazem parte de uma corrente à extrema direita na FC norte-americana, abordando em suas ficções contextos favoráveis ao capitalismo, contra o Estado e com individualismo extremo. Tal postura os fez, inclusive, a participar dos governos republicanos de Ronald Reagan (1981-1989) e de George W. Bush (2001-2011), na condição de conselheiros de política externa.

Outra reflexão interessante de Invasão! é a de que não há base racional para considerarmos que uma civilização extraterrestre tecnologicamente muito mais avançada do que a nossa seria, necessariamente, pacífica. Tal tese foi muito aventada nos anos da Guerra Fria, lembro de Carl Sagan (1934-1996), a defendendo, de que uma condição necessária para a conquista do espaço, deveria passar pela superação de nossos problemas políticos e morais. Ora, mas em nossa própria História a norma é a de povos tecnológica e militarmente mais avançados conquistarem, dominarem e, mesmo, destruírem, os povos nativos. Claro que não devemos imaginar que seres de outros lugares do universo se movam pela mesma lógica e ação, mas também não temos como assegurar o contrário. Assim, Niven & Pournelle, com sua veia militarista e politicamente conservadora, estabeleceram um contraponto importante, neste debate candente, especialmente naquela época. Gostemos ou não de suas motivações ou visão de mundo.

 Marcello Simão Branco