O
Auto da Maga Josefa, Paola Siviero. Capa e ilustrações
internas: Vito Quintans. 221 páginas. Belo Horizonte: Autêntica/Gutenberg,
2021.
O escritor Jeronymo
Monteiro (1908-1970) afirmou na introdução de sua antologia clássica O Conto Trágico (1960), que quando
realizou a pesquisa, se surpreendeu com uma dificuldade em encontrar histórias
de horror de autores nacionais, pois imaginava que pelo fato do brasileiro ser
tão crente e místico, existiriam em profusão.
Como eu e Cesar Silva
dissemos em “Trajetória e Caracterização de uma Ficção de Horror Brasileira”, introdução
da antologia As Melhores Histórias
Brasileiras do Horror (2018), esta dificuldade não está relacionada ao
enorme imaginário místico e sobrenatural do brasileiro, mas a uma certa
resistência e desestimulo do ambiente literário e editorial em incentivar o seu
desenvolvimento.
Em todo caso, nossos
autores sempre escreveram histórias de horror e fantástico em grande
quantidade, muitas vezes inseridas em outros contextos e com outras
classificações, digamos, literariamente mais ‘nobres’. Mas conforme comprovamos
em nossa antologia – e outras recentemente montadas – há um corpus
sólido de obras importantes que consolidam o horror brasileiro como um gênero
não só bastante praticado, mas com indiscutível qualidade.
Pois, ao ler este O Auto da Maga Josefa esta constatação
só foi reforçada. Esta coletânea de contos interligados, ou se quiserem, um
romance fix-up, é uma das melhores
leituras de horror e fantástico brasileiro dos últimos anos. Talvez destas duas
décadas do século XXI.
Paola Siviero apresenta
um mundo encantado e assustador que não está longe de nós, embora se apresente
de forma surpreendente e, por vezes, assustadora. Estou me referindo ao
Nordeste, a região historicamente mais pobre do Brasil, atrasada
economicamente, corrompida politicamente e amaldiçoada – o termo cabe neste
contexto – em termos climáticos. Isso sem falar no preconceito que o povo
nordestino tem de lidar com os das regiões economicamente mais
desenvolvidas, do Sul e do Sudeste.
A autora mostra como, num
lugar historicamente tão desfavorável, as explicações fantásticas e
sobrenaturais fazem mais sentido. É como se as aventuras do caçador de demônios
Toninho, da maga Josefa – filha do capeta – e de Véia, uma mula secular, nos
mostrasse o Brasil do passado, do horror com a marca rural do século XIX e
início do XX. Mas também de como este Brasil dos grotões, da miséria material e
do infortúnio do destino, ainda existe, mesmo que as histórias ocorram no
início dos anos 1960.
Em suas primeiras
aventuras como caçador, Toninho conhece Josefa, uma mulher misteriosa e
poderosa. Que impõe respeito e temor. Juntos, cada qual com seu motivo
particular, decidem juntar forças para enfrentar os seres e eventos
sobrenaturais e fantásticos que se misturam à realidade do interior do
Nordeste. Em dez narrativas, perambulam pelo sertão e pelo agreste, lidando com
destemor e alguma imprudência com lobisomem, zumbi, vampira, dragão, gênio,
golem, chupa-cabra, o próprio diabo, entre outros seres fantásticos e malignos
que levam o pânico e a desgraça ao povo simples, para o qual não há uma linha
de separação entre o mundo dito natural e o sobrenatural. Como que a explicar a
própria dureza de suas vidas, os eventos e os próprios seres fazem parte de seu
imaginário e sua realidade.
Se numa coletânea há
sempre alguns contos melhores e outros nem tanto, em O Auto da Maga Josefa é difícil fazer esta distinção. O nível médio
das aventuras de Toninho e Josefa é muito bom. Histórias de horror e fantástico
em que a maior qualidade está no equilíbrio entre a criatividade, a prosa limpa
e fluente, a verossimilhança dos lugares e das pessoas, e uma boa dose de bom
humor. Sim, apesar de estarmos diante de situações muitas vezes violentas e
assustadoras, o relacionamento entre Josefa, Toninho e Véia é engraçado, dadas
as particularidades de cada personagem, muito bem construídos em suas motivações
e angústias. Principalmente a maga Josefa que, para além da profissão em si,
tem uma justificativa pessoal, uma missão do qual depende seu próprio destino
quando deixar este mundo.
Em sua “Nota da autora”,
Siviero conta que este conjunto de histórias nasceu de uma provocação num
debate entre escritores. De provar que seria possível escrever histórias
fantásticas e de horror com personagens e temas brasileiros. Ora, esta é uma
velha questão, defendida de forma arrojada dentro de um subgênero da ficção
especulativa, a ficção científica. Do fim dos anos 1980 para cá, com o
lançamento do Movimento Antropofágico da Ficção Científica Brasileira, de Ivan
Carlos Regina, toda uma geração de autores enveredou por esta linha. De certa
forma, é até surpreendente que na segunda década do século XXI ainda paire na
concepção de alguns autores uma dúvida como esta. Mas, em todo caso, assim como
já feito antes não só na FC, mas também no horror e na fantasia, este O Auto da Maga Josefa comprova a
viabilidade desta proposta. Aliás, mais que isso: mostra que esta é a melhor
concepção para a construção de uma ficção especulativa brasileira de qualidade
e relevância para a nossa história e cultura, além de trazer também uma voz
própria do que nós podemos mostrar como uma verve brasileira para o
fantástico. Pois para um autor alcançar a universalidade com sua literatura (ou
arte) nada melhor do que abordar a sua realidade, o seu entorno, a sua
história, o seu povo.
A primeira edição de O Auto da Maga Josefa saiu pela pequena
editora Dame Blanche, especializada em publicar jovens autores brasileiros nos
gêneros fantásticos, e o êxito ao ser premiada em 2019 com o Le Blanc e o
Odisseia Fantástica, além de ser finalista do Argos – os três principais
prêmios da literatura fantástica brasileira – levou a editora Autêntica a se
interessar em relançar a obra. Aliás, é uma edição muito bonita, com a
ilustração de capa e a de cada história a cargo do talento de Vito Quintans.
Vale a pena adquirir esta edição também porque há um bônus: um livrinho no
formato do cordel com mais uma aventura, “Conjurações e Terra Seca”, que se
passa, inclusive, cinco anos depois da última história do livro – e claro, com
inspiradas ilustrações de Quintans.
Fico a pensar que as
aventuras de Josefa e Toninho poderiam render muitas outras histórias – como
num seriado –, pois o potencial do fantástico e do sobrenatural sugerido neste
universo ficcional nordestino é inesgotável. Mas seja por qual projeto Paola
Siviero optar, acredito que a chance dela nos brindar com outras boas histórias
é muito grande. Pois sua maior virtude é ser uma ótima contadora de histórias.
—Marcello Simão Branco
Nenhum comentário:
Postar um comentário