O
Passa-Paredes (Le pasie-muraille), de Marcel Aymè.
Tradução e orelhas: Fernando Py. Capa: Ipojucan. 162 páginas. Rio de Janeiro:
Francisco Alves Editora, Coleção Mestres do Horror e da Fantasia, 1982.
Lançamento original de 1943.
O
conto “O Passa-Paredes”, que dá nome à coletânea, é o primeiro da lista e um
dos momentos mais brilhantes. Nele, um modesto funcionário de uma repartição
pública descobre, por acaso, que tem o poder de atravessar corpos sólidos. Após
o espanto, que o leva, inclusive a procurar um médico – e que lhe receita uns
comprimidos! –, se acostuma e passa a tirar proveito da situação. Não demora
para que aflore outra parte de sua personalidade. Se torna um exímio assaltante
que deixa bilhetinhos com o apelido Garou-Garou. Isso pega no imaginário do
povo e ele se torna muito conhecido, para desmoralização da polícia. Acaba
preso, mas sempre escapa… A história se tornou tão popular que ganhou até uma
estátua em Paris – ver imagem abaixo –, e recebeu três adaptações no cinema (duas francesas e uma
alemã), e uma minissérie na TV do seu país em 2016. Outra história sobre o mesmo tema do qual me lembro é o filme "Quarta Dimensão" (4D Man; 1959), de Irwin S. Yeaworth. Baseado num roteiro de Theodore Sturgeon, ao contrário do conto do francês, procura dar uma justificativa científica ao fenômeno de pessoas trespassarem objetos sólidos. É um filme de FC competente, mas sem a aura de meio de não se levar muito a sério de Aymé, o que garante a este parte do seu encanto.
Outra
história insólita e divertida é “As Sabines”, no qual uma jovem possui o dom da
ubiquidade. Como no conto anterior, ela se rende à tentação. Casada, mas entediada,
arruma um amante atrás do outro. E não só em Paris, mas em Londres, e mundo
afora. Chega a conviver com centenas ao mesmo tempo! É uma história que, mais
que a anterior, flerta com o absurdo, ainda mais acentuado pelo tom humorístico
– e ao mesmo tempo sarcástico – sobre o comportamento humano.
Em
dois outros contos, Aymè explora a questão da ética religiosa e o valor da doutrina
cristã. Em “A Lenda Poldova” e “O Oficial de Justiça”, o sobrenatural se insere
na chegada ao céu de uma beata – no primeiro conto –, e de um, justamente,
oficial de justiça, no segundo. Ambos, por motivos diferentes, têm dificuldades
em serem aceitos por São Pedro no Paraíso – no segundo conto até Deus é chamado
para resolver a controvérsia que se instala quando o oficial de justiça não é
aceito, exatamente por exercer de forma corretíssima o seu trabalho, o que
ocasionou a miséria e a humilhação de muita gente. Já o motivo da vetusta
cristã não ser aceita, é que como era tempo de guerra, priorizou-se permitir a
entrada dos mortos em batalha. Assim, quando ela morre de uma doença, ela é
barrada e não se conforma, por ter sido sempre um exemplo de retidão e
caridade. Mas quando descobre que o seu sobrinho ladrão e estuprador, morto na
guerra, é aceito ela resolve dar um jeito nem um pouco ético de adentrar no
céu.
O
tom mais socialmente crítico é ainda mais acentuado, e sem o fantástico, na
tocante noveleta “As Botas de Sete Léguas”, sobre a convivência de um menino
pobre com colegas mais ricos em uma escola, a partir do desejo de todos de
comprar as botas do título. Mas, do ponto de vista do fantástico e,
principalmente, do subgênero da FC da viagem no tempo, duas outras histórias que
se destacam: “O Cupom do Tempo” e “O Decreto”.
No
primeiro, devido à crise econômica e escassez de alimentos, o governo baixa uma
lei que delimita o tempo de vida de cada pessoa em cada mês. O critério é o da
relevância da profissão de cada um. Claro, tudo muito arbitrário. Assim, tem
gente que vai viver 5 dias, outros 10, e alguns o mês inteiro. Nos dias
faltantes as pessoas ‘morrem’, ou seja, literalmente evaporam, para reaparecer
no mês seguinte. Na história, acompanhamos as desventuras de um professor que
teve sua vida reduzida à metade por mês. Embora não haja explicação de como tal
situação seja possível – o que afasta o conto da FC e o vincula ao fantástico
–, lembra o romance O Mundo de um Só Dia
(Dayworld; 1985), de Philip José
Farmer (1918-2009). Neste livro, o problema da superpopulação é contornado, ao
se fazer cada pessoa viver só um dia por semana. Nos outros dias, ela fica em
animação suspensa.
Já
no conto “O Decreto”, a situação temporal que se manifesta é o do avanço dos
anos. De novo, é o governo que baixa uma medida que adiante em 17 anos o
calendário. Ou seja, de 1942 salta-se para 1959. Ação esdrúxula e sem efeito,
não? Não, porque após a mudança, as pessoas despertam, efetivamente, mais
velhas e com suas vidas alteradas, para melhor ou pior a depender de cada um. O
mais insólito, contudo, é o que passa um funcionário público ao visitar um
amigo que vive numa chácara, nos arrabaldes de Paris. Após uma forte chuva ele
se perde e se depara com a presença de soldados alemães. Incrédulo no início,
fica chocado ao descobrir que seu país está novamente invadido. Mas não: ele
voltou a 1942. Tenta achar o caminho de volta para Paris, mas mesmo lá constata
que os nazistas governam o país. Ele mesmo se pergunta se voltou mesmo à sua
época ou se este seria um universo paralelo em que a guerra não terminou,
apesar dele voltar a ser jovem novamente. É a melhor narrativa da coletânea e
no que, Aymè, que escreveu estes contos durante a ocupação nazista, elocubra de
forma instigante e angustiada uma saída para a humilhação e o pesadelo.
O
conto que conclui a coletânea é “Esperando” e destoa dos outros. Isso porque
mostra que a Segunda Guerra durou até 1972, e o povo passava por doenças e
fome. Numa fila para receber pão, várias pessoas contam sua história triste e
como suas vidas se tornaram miseráveis e sem esperança por causa do conflito. É
uma história bem triste e mostra que, no fim das contas, Aymè se rendeu ao
pessimismo pelo qual vivia a França no início dos anos 1940.
Afora
esta ótima coletânea, o autor publicou muito durante as décadas de 1940 a 1960,
quando faleceu. Muitos romances, contos, peças de teatro e roteiros para
cinema, no qual o elemento fantástico vez por outra se tornava um meio de
exploração da narrativa. No Brasil, além de O Passa-Paredes, teve
publicado os infanto-juvenis A Égua Verde (Le jument verte;
1933), pela Record em 1968; Histórias do Gato Sentado (1972), pela
Ediouro, e Os Bois (sem data), pela Anhambi, também sem data. E o
romance O Sobrado (La maison basse; 1935), pela editora Pontes,
em 2004.
Aymé
mostra nesta coletânea que uma virtude da arte de escrever e contar histórias
é, por meio de uma prosa simples e despojada, envolver o leitor e o fazer
refletir sobre questões sensíveis e próximas a cada um de nós. E com o
adicional, neste livro ao menos, de usar o recurso do fantástico e do
sobrenatural para acentuar os problemas e contradições da condição humana e
social. Um autor que merece mais atenção. No campo do fantástico e em geral.
—Marcello Simão Branco
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