Edgar Wilson tem um emprego peculiar: ele participa de uma equipe de trabalhadores que recolhe animais mortos das estradas e vicinais de uma região genérica no interior do país. Seu trabalho é dirigir a caminhonete da empresa ao local para onde os atendentes determinam, recolher as carcaças e levá-las para a sede da empresa, onde serão processadas num grande moedor para serem transformadas em adubo. Seu colega de trabalho é Tomás, um padre excomungado que, além de coletor de corpos, dá atendimento espiritual aos moribundos e nos acidentes que eventualmente atendem. A vida deles está longe de ser um mar de rosas: além do serviço medonho, cada um tem sua própria dor para carregar.
Mesmo assim, Edgar Wilson é um funcionário dedicado, que recolhe toda coisa morta que se lhe aparece pelo caminho. E é por causa desse hábito pouco saudável que se envolve numa complicada trama de assassinato e corrupção, ao encontrar o corpo de uma mulher enforcada no meio do mato.
Ninguém parece querer o defunto. Não há família procurando pela falecida, a polícia está sem condições de investigar a morte e o IML local não tem uma viatura para transportar o cadáver. Por achar uma indignidade deixar o corpo ser devorado pelos animais selvagens, Edgar Wilson decide guardá-lo no velho frízer sem uso no galpão da empresa, pelo menos até que a polícia possa vir buscá-lo. Mas os dias passam e nada das autoridades fazerem sua obrigação.
Para piorar ainda mais a situação, outro cadáver, desta vez de um homem, vem se juntar ao primeiro. Quando o frízer repentinamente para de funcionar, Edgar Wilson é intimado pela gerência da empresa a dar um destino aos dois corpos. Ainda incomodado com a possibilidade de não dar aos cadáveres um destino digno, Edgar e Tomás colocam os corpos no porta-malas de uma caravan e decidem levá-los eles mesmos para o IML da cidade. E é aí que os problemas realmente vão se complicar.
Esta é a história que a escritora Ana Paula Maia conta em seu sétimo romance Enterre seus mortos, publicado em 2018 pela Companhia das Letras. Nascida em Nova Iguaçu em 1977, Ana Paula estreou com o romance O habitante das falhas subterrâneas, publicado em 2003 pela Editora 7 Letras. Também é autora de Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos (2009), Carvão animal (2011) e Assim na terra como embaixo da terra (2017), entre outros romances que já ganharam edições na Alemanha, França, Itália, Estados Unidos, Espanha, Sérvia e Argentina. É, portanto, uma autora experiente, que domina bem as ferramentas narrativas. Seu estilo é brutalista e cruel, mas não chega a ser aterrorizante neste Enterre seus mortos, embora seja no terror que pareça mais adequadamente classificar este trabalho, embora a história tenha fortes aspectos de policial e até de faroeste.
Seguindo o conselho do mestre do horror Stephen King, na ausência do clima evidente de terror e de um monstro apavorante, Ana Paula evoca a escatologia e a morbidez com todo o requinte de seu arsenal, para causar nojo no leitor. Para obter resultados mais efetivos, associa as descrições de estripamentos e cheiros nauseantes aos alimentos que Edgar e Tomás consomem o tempo todo. Contudo, o efeito não é plenamente atingido e não incomoda a leitura, que progride com rapidez e leveza pois, de fato, Enterre seus mortos não é um romance, mas uma novela: é possível lê-la de cabo a rabo em pouco mais de duas horas.
Apesar do estilo naturalista, parece inadequado classificar a história como realista, devido a uma certa fabulação mais associada ao absurdismo e ao realismo fantástico. Isso porque, além da natureza improvável do trabalho de Edgar Wilson, e do fato das aves necrófagas serem insistentemente chamadas de abutres embora a história seja evidentemente passada no Brasil (o que temos aqui são urubus, que são de uma outra família), é um tanto bizarro que numa região onde nenhuma instituição funciona, na qual nem o IML nem a polícia cumprem suas obrigações fundamentais, um indivíduo de nuances marginais, fazendo uso irregular do equipamento de uma empresa privada que, contra todos os prognósticos, funciona com competência, faça sozinho e sem qualquer supervisão aquilo que é trabalho das autoridades. Numa perigosa leitura política, esse conceito legitima o discurso do neoliberalismo, que acusa o Estado de ser uma máquina funcional unicamente para promover corrupção, justifica a ação individual e condena toda a ação pública. Ainda bem que isso é apenas ficção e nunca aconteceria na vida real...
Quem tiver estômago fraco talvez não suporte bem a leitura de Enterre seus mortos, mas acredito que vale o esforço, pois o texto correto é fluido de Ana Paula Maia é muito bom e justifica plenamente a aventura. Para os especialistas, é um sopro de ar – ainda que não tão fresco, no caso – na recorrência de temas e estilos da nossa ficção fantástica.
— Cesar Silva
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