Este momento histórico marcou a segunda metade do século XX. É como o mundo se organizou politica e militarmente como resultado da Segunda Guerra Mundial, no qual sob os espojos da derrota nazista e da decadência dos países imperialistas (Reino Unido e França), emergiu duas superpotências que passaram a liderar e dividir a geopolítica em duas vertentes opostas: Os Estados Unidos, com capitalismo e democracia liberal; e a União Soviética, com socialismo e totalitarismo político. Mas como vai mostrar Noboa em seu trabalho, o que mais acentuou o clima de rivalidade entre norte-americanos e soviéticos foi a possibilidade de uma guerra nuclear. Mas se ocorresse teria sido, muito provavelmente, o último dos grandes conflitos bélicos da humanidade.
O livro é consequência de uma dissertação de mestrado defendida pelo autor no curso de História Social, na Universidade de São Paulo, em 2010. Lembro que em algum momento de 2009 o autor me procurou para consultar sobre uma lista de filmes básicos do cinema norte-americano de FC. Me enviou uma ótima lista que mantenho até hoje. Assim, quando em 2014 soube que sua pesquisa tinha sido publicada, não tive dúvidas e fui atrás da obra, literalmente “caçando” o livro pela internet. Tive até de ligar para a obscura editora LCTE dizendo do meu interesse pelo livro. Ao que parece, até eles estavam surpresos pelo contato. Não deveriam porque o livro é ótimo. E uma prova institucional disso é o financiamento parcial que recebeu da Fapesp. Um selo de qualidade na publicação de obras acadêmicas.
Após uma boa introdução sobre o contexto de desenvolvimento da bomba atômica, o cenário inicial da Guerra Fria e as mudanças pelo qual passou o cinema de Hollywood nos anos 1950, o autor parte para uma discussão sobre alguns conceitos que caracterizam a ficção científica, sua relação com o fantástico e, mais especificamente, o modo como evoluiu o cinema de FC nos EUA. Aqui, para chegar propriamente ao tema do livro: como o cinema do gênero abordou a problemática política da disputa ideológica entre o Ocidente e a chamada Cortina de Ferro.
Ao invés de ir pela solução mais comum, de comentar vários filmes, Noboa optou por enfatizar apenas quatro deles: O Dia em que a Terra Parou (The Day the Earth Stood Still;1951), Vampiros de Almas (Invasion of the Body Snatchers; 1956), A Bolha (The Blob; 1958) e Limite de Segurança (Fail Safe; 1964). Talvez do ponto de vista didático teria sido mais interessante a primeira opção, mas o enfoque em quatro filmes representativos, vistos em conjunto, tornou o trabalho mais profundo na análise e sólido em suas considerações.
O Dia em que a Terra Parou, dirigido por Robert Wise (1914-2005) é, dos quatro, o mais importante para a FC. Baseado na noveleta “Adeus ao Mestre” (“Farewell to the Master”; 1940), de Harry Bates,1 subverte o clichê do alienígena hostil. Ao invés, ele vem à Terra para impor a paz entre a nações, cessando a corrida armamentista que poderia levar a uma guerra e ameaçar a segurança, até mesmo, das outras civilizações próximas no universo. Como pontua Noboa chama a atenção a forma como o processo de conhecimento e convencimento do alienígena Klaatu sai pelas margens, ou seja, depois de ser mal sucedido em contatar as autoridades, busca ajuda no povo comum e, posteriormente, na comunidade científica. É como se a chance de solução do problema tivesse de ser buscada na sociedade, pois a esfera da política estaria contaminada com a rivalidade e paranóia em relação ao inimigo. Neste filme não há uma vinculação direta com o comunismo em si, mas com a ameaça que representa o então recente desenvolvimento das armas nucleares, de parte a parte. Assim sendo, o filme serve como um interessante indicativo para as possíveis consequências que estariam por vir, anos à frente, quando, justamente, o mundo viveria sob o risco de um confronto nuclear. Klaatu envia sua mensagem de paz, mas na forma de um ultimato. De fato, talvez para cessar a corrida armamentista naquele momento, só seria possível um poder externo e superior.
Do enfoque das possíveis consequências da rivalidade em si, o filme a seguir é o que discute o aspecto ideológico de forma mais profunda. Como se sabe, Vampiros de Almas trata de uma invasão extraterrestre numa pequena cidade, em que vagens se transformam em copias perfeitas, assumindo a identidade e existências das pessoas. Dirigido por Don Siegel (1912-1991) e baseado no romance de mesmo nome de Jack Finney (1911-1995), foi interpretado, principalmente, como um alerta contra o possível avanço do comunismo na sociedade norte-americana. As novas pessoas não teriam emoções, seriam todas disciplinadas e sem livre-arbítrio, como se seguissem algum comando. O filme é extremamente efetivo em trabalhar a forma como as pessoas vão mudando seu comportamento, e a luta de um casal para evitar a situação e denunciar este estado de coisas. Mas esta é a análise mais conhecida. O que Noboa acrescenta na obra são outras três possíveis: o alienígena como ameaça às mudanças políticas e liberdades constitucionais, a radiação como invasora de corpos e a ameaça alienígena aos valores patriarcais do homem branco. Na primeira, inverte-se a paranóia anticomunista. É o discurso machartista que persegue o indivíduo e sua liberdade de pensar e agir; no segundo, há uma denúncia dos experimentos científicos e militares em torno da tecnologia nuclear2 e na terceira, uma crítica ao conservadorismo machista da sociedade norte-americana. Todas são interessantes mas creio que as duas primeiras tem mais a dizer sobre a proposta da obra, tanto o romance, como o filme. Pois se a interpretação mais comum é aquela do anti-comunismo, ao meu ver, a segunda é a mais reveladora, pois mostraria como a sociedade tinha se tornado paranóica e desta forma – e não pelos supostos valores igualitários do comunismo –, é que o modo de vida americano e sua democracia, estavam sendo corroídos.
Por uma outra via, mas também nesta linha, é que Noboa selecionou A Bolha como o terceiro filme a ser analisado. Dirigido por Irvin Yeaworth (1926-2004), é mais identificado como um filme B e para adolescentes, de fato, não foi tão levado a sério à época, mas ganhou relevância e o status de cult décadas depois. Isso porque, como mostra o autor do livro, A Bolha insinua suas relações com o tema da Guerra Fria de uma forma diferente. Interna aos valores em mudança da sociedade norte-americana, da grande prosperidade do país no pós-guerra, mas que aprofundou também várias contradições, como a desigualdade social, as relações entre homens e mulheres, a luta dos negros por seus direitos civis e políticos e o conflito de gerações entre pais e filhos. Nesse sentido é o filme menos diretamente relacionado com a Guerra Fria enquanto fenômeno político-ideológico da época, mas como os EUA lidavam com suas próprias tensões neste contexto. Assim, o elemento catalizador é a queda de um meteoro, que trará a chegada da bolha, uma criatura assassina vinda do espaço. Pois parte destas contradições sociais ficarão expostas no enfrentamento do problema maior, que é a destruição da bolha. Interessante que, assim como nos dois filmes anteriores, o plano de ação principal para a resolução do drama se situa na sociedade e não no ambiente político dos governos ou dos militares. Estaria aí, de certa forma, a recorrência de uma crítica à incapacidade do ambiente institucional de se aproximar dos problemas ao nível dos cidadãos, para de fato protegê-los de ameaças concretas, e não de questões fora de suas realidades cotidianas, aquelas vinculadas à disputa macro entre os países e suas supostas razões de Estado, para garantir a tal da “segurança nacional”.
Desta forma, o contraponto é justamente o último filme analisado, Limite de Segurança, dirigido por Sidney Lumet (1924-2011) e, assim como o filme de Wise e o de Siegel, também baseado numa história previamente publicada. Neste, a ação se passa inteiramente no ambiente político e militar, no qual, devido a um erro técnico, caças norte-americanos armados com armas nucleares se dirigem para destruir Moscou. Embora a premissa possa ser questionada como pouco verossímil, na verdade o filme realiza uma crítica contundente à tecnologia e ameaça de que decisões humanas sejam entregues a máquinas, por mais sofisticadas que sejam. Ainda mais numa questão sensível como esta. De fato, o filme explora de forma intensa o drama para evitar uma guerra, e dos quatro é o mais realista, o que dialoga de forma mais próxima com a situação da época. A narrativa realmente incomoda pelo alto nível de suspense embutido e surpreende com o desfecho. Como aponta Noboa, contra as convenções do cinema comercial norte-americano.
Após analisar de forma exaustiva os quatro filmes, Noboa ainda apresenta no capítulo final instigantes discussões sobre as relações entre os filmes, onde torna mais claras as diferentes críticas e perspectivas que cada filme adota sobre os temas do militarismo, tecnicismo e conformismo, que permeiam as obras e o contexto geral, principalmente nos EUA dos anos da Guerra Fria, em especial nas décadas de 1950 e 1960.
Neste trabalho acadêmico está bem ilustrado os dois temas mais caros ao autor, que os discute por meio do cinema: a ficção científica e a sociedade norte-americana. O pano de fundo para as extensas discussões sobre os filmes, mais que à Guerra Fria e suas consequências em si, é sobre as características e rumos dos EUA naquela época histórica. Tanto é assim que ele continuou nesta seara em sua tese de doutorado, defendida na mesma USP em 2019. Com o título de O Futuro e o Passado estão Além da Imaginação: A Viagem no Tempo e os EUA no Contexto do Segundo Pós-Guerra, ele mantém o mesmo tema geral, mas com um novo enfoque: a viagem no tempo (no lugar da ficção científica em geral) e da série de TV Além da Imaginação (no lugar do cinema). Ou seja, mergulha num subgênero da FC e numa série de TV. Tive um contato apenas breve com a obra, que pode ser baixada no site www.teses.usp, mas sugere que o autor explora, de forma mais abrangente, os valores culturais dos EUA, ao associar o tema da viagem no tempo – por meio dos episódios da série –, com a relação de tradição versus modernidade, conservadorismo versus radicalismo, numa sociedade que cada vez mais expunha suas contradições, que se tornariam mais agudas e dramáticas nos anos 1960.
Igor Carastan Noboa é professor de História da rede municipal em São Paulo e do Centro Universitário Sumaré, e faço votos para que esta tese de doutorado também seja publicada. É um pesquisador e crítico talentoso, e que mostra o potencial da ficção científica como meio privilegiado de interpretação da realidade social e histórica. E vem a se juntar a outros bons pesquisadores que nesta última década tem apresentado trabalhos acadêmicos, tendo o gênero como campo de pesquisa. Que esta tendência se consolide e que os melhores trabalhos – como este resenhado aqui – possam ser publicados e colocados à disposição dos leitores em geral.
– Marcello Simão Branco
1Publicado na antologia Máquinas que Pensam: Obras-Primas da Ficção Científica (Machines that Think: The Best Science Fiction Stories about Robots and Computers), organizado por Isaac Asimov, Patricia S. Warrick e Martin H. Greenberg, publicado pela editora L&PM em 1985, e como Histórias de Robôs, em três volumes, 2005.
2A meu ver o filme mais impactante a abordar este aspecto nos anos 1950 foi O Incrível Homem que Encolheu (The Incredible Shrinking Man, 1957), de Jack Arnold (1916-1992), em que um homem, sob o efeito de um gás radioativo, diminui inexoravelmente de tamanho. Foi baseado num romance homônimo de Richard Matheson (1926-2013).
https://en.wikipedia.org/wiki/Fail_Safe_(2000_film)
ResponderExcluirEstranho ele não escolher "A hora final" baseado no livro de Nevil Shute, ja que aborda tanto o ponto de vista dos militares quanto dos civis, talvez por ser um filme pouco comentado.
ResponderExcluirMuito obrigado pela postagem! Fico feliz que as pesquisas vão sendo reconhecidas por quem realmente entende! 😃 abraços!
ResponderExcluirOi Igor, parabéns por seu trabalho. E continue suas pesquisas!
ResponderExcluir