quinta-feira, 27 de agosto de 2020

O Alienado

    O Alienado, Cirilo S. Lemos. Arte e capa de Eriksama. Quadrinhos de Virgílio. 239 páginas. São Paulo: Editora Draco, 2012.
   
O final da leitura deste romance me deixou estupefato. Afinal estava diante de uma história interessante, complexa, mas com um sentimento de desconforto ante a incompreensão não só do desfecho, mas da trajetória inteira da leitura.
    Este é um tipo de ficção científica não muito comum, em especial no Brasil, mas que vem ganhando a cena nas últimas décadas: estrutura narrativa fragmentada, intercalada por vozes diferentes, um enredo que não parece buscar um rumo mais coerente enquanto a história se desenvolve, e discussão entre conceitos de identidade pessoal e realidade do mundo material. Claro que há autores consagrados que trabalharam questões como estas, e há ecos perceptíveis, aqui e ali, de Kafka e Philip K. Dick. Mas nota-se que Lemos procura por uma voz própria. Tem a seu favor, menos que uma história interessante, a qualidade intensa de sua prosa. Bons diálogos, boas escolhas de palavras, boa narração de cenas de ação, e com um rico apuro visual. Prova adicional desta criatividade é a intercalação da narrativa em prosa com sequências em quadrinhos muito expressivas, e que não são meros acessórios, mas integrados à boa qualidade da narrativa em prosa.
    Num futuro indefinido, mas não muito distante, existe uma metrópole chamada de Cidade-Centro. Nela acompanhamos a vida de Cosmo Kant, um sujeito que foi despedido do emprego, faz sessões de terapia, escreve um romance, briga com a esposa, e acaba internado num centro de reabilitação. Além desta sequência, que não é apresentada de forma linear, dada a proposta fragmentada do texto, temos ainda a descrição de infância e sua amizade com um menino mais velho, além de sua relação problemática com a mãe repressora e o pai ausente.
    Conforme o texto progride, há idas e vindas nestas situações, de tal maneira que a certo momento elas parecem se misturar umas às outras. Cosmo vai perdendo sua identidade, não sabe mais o que é real ou farsesco, numa situação provocada menos por ele, e mais pelo tal centro de reabilitação. Para aumentar esta indefinição, eventos descritos no seu romance começam a se tornar realidade e interagir com sua própria vida, como a presença dos inspetores que investigam a presença de um Forasteiro e uma misteriosa mulher, que estariam por trás de uma série de atentados terroristas, contra um governo ditatorial que afirma estar em guerra, não se sabe ao certo contra quem. O centro de reabilitação é composto pelos metafilósofos, que manipulam as memórias e reconstroem as identidades dos seus pacientes, com fins que não ficam inteiramente claros. Pelo menos não para mim e menos ainda para o infeliz do Cosmo Kant.
    O Alienado é um livro que trabalha de forma interessante a questão da identidade, como já ressaltado, mas principalmente a da memória. Até que ponto as lembranças refletem realmente situações como as vivemos? Se é fato que as pessoas costumam suavizar suas experiências passadas – e esconder suas tristezas –, e ter no futuro algum horizonte de melhora, o presente costuma ser mais difícil de lidar. Mas neste romance a impressão é que passado, presente e futuro estão embaralhados. Além do fato de tudo ser, muito provavelmente, manipulado, com objetivos obscuros. Ou então, tudo pode não passar da alucinação de um esquizofrênico. Vai da compreensão de cada um que ler a história.
    Neste contexto incerto os momentos de maior empatia estão no passado de Cosmo, de quando ele era um menino solitário e carente. Que tentava suprir a ausência do pai – um marinheiro que visitava a família duas vezes por ano –, com a amizade com um menino mais velho, leitor ávido de livros, inteligente e paquerador, mas também com suas dificuldades, com uma mãe que se prostituía. Talvez tenha as melhores sequências porque seja a única parte do romance com uma estrutura mais convencional do ponto de vista de sua compreensão. É como se depois de uma tragédia com a qual sua amizade é encerrada, ele adentrasse de modo abrupto o mundo real, cheio de injustiças e descontrole. Tanto de sua vida, como da sociedade repressora e altamente burocratizada em que vive.
    O Alienado foi finalista do Prêmio Argos 2013, uma indicação da receptividade positiva que teve entre os fãs e alguns dos poucos críticos interessados no gênero em nosso país. Seu romance mais recente é E de Exterminador (2015), que vai na linha das histórias dieselpunk, um subgênero da ficção científica retrofuturista, tal qual o steampunk. A distinção é que, enquanto no steampunk os veículos são movidos a vapor, no dieselpunk os veículos são movidos a diesel ou outro tipo de combustível. 
    Percebe-se em O Alienado uma força criativa e arrojo de estilo pouco comum em nossa FCB mas, não o vejo como uma história palatável para a maioria dos leitores do gênero, ou fora dele. Falta ao livro um sentido de causalidade e compreensão um pouco mais claro, que o torne mais inteligível para o leitor, e não creio que tais caraterísticas, se bem dosadas, pudessem comprometer a proposta literária, assumidamente pós-modernista em sua incerteza temática e fragmentação narrativa.
  – Marcello Simão Branco

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