Algo Sinistro vem
por Aí (Something Wicked
this Way Comes), Ray Bradbury. 293 páginas. Tradução de Jorge Luiz
Calife. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
Entre os principais livros de Ray Bradbury (1920-2012) Something Wicked
this Way Comes foi o mais tardio a
ser publicado no Brasil. E o mestre nos insere mais uma vez em uma
pequena cidade do interior americano neste seu romance, publicado originalmente
no já distante ano de 1962.
Romances, por sinal, são minoria na obra deste contista por excelência.
Além deste escreveu Fahrenheit 451, um libelo a favor da liberdade e da civilização,
publicado em 1953 – um livro, aliás, cada vez mais valorizado. Aqui no Brasil,
desde 2017, inspira o nome de uma ótima revista de resenhas, a 451; nos EUA recebe em 2018 uma nova adaptação
audiovisual, numa minissérie da HBO.
Alguém pode lembrar-se do celebrado As Crônicas Marcianas
(1950), mas em verdade este livro é o que se costuma chamar de fix-up –
um romance com pequenas histórias interligadas – e não propriamente uma única
história longa, como o caso deste Algo Sinistro Vem por Aí, uma de suas
obras mais longas – pelo menos no fantástico.
Esta história tem ecos diretos de sua obra-prima O País de Outubro
(1955), uma das mais belas coletâneas já escritas, pois também acontece em um
certo outubro. Bradbury começa o livro situando este mês em relação aos outros porque,
para ele, seria tão especial e diferente, que poderia ser interpretado à luz do
fantástico. As aulas já recomeçaram há um mês, já deu tempo dos jovens se
reencontrarem e se acostumarem com a situação, estamos em pleno outono no
hemisfério norte, e o desfecho promete uma inesquecível noite de Halloween.
Nesta cidadezinha não identificada, tão igual a centenas pelo interior
profundo dos Estados Unidos, mas que poderia ser em qualquer país, o tal
Halloween chegou antes no ano em questão. É a súbita chegada de um parque de
diversões. Especialmente na vida de dois garotos, Will Halloway e James
Nightshade, que ficam imediatamente fascinados. Verão pouco depois que a vida
deles e de outros habitantes nunca mais será a mesma.
Não tarda para que eles adentrem ao parque e tomem contato com
situações muito além de uma simples diversão para uma cidadezinha sem graça do
interior. Coisas insólitas acontecem, primeiro com pessoas próximas a eles,
como a professora Foley e o vendedor de para-raios. Mas sobretudo depois da
experiência do carrossel, ao verem um homem girar para trás e rejuvenescer,
eles estão como que tomados por um outro mundo, como num caminho sem volta.
Não é um parque normal, se é que algum é, mas possui poderes e modifica
as pessoas, realizando, de alguma forma, seus desejos inconfessáveis. Os
artistas e seres bizarros do parque disso se aproveitam para atrair, seduzir e,
finalmente, capturar aqueles mais curiosos ou sensíveis às suas tentações.
O homem ilustrado – que já havia protagonizado um belo romance fix-up,
Uma Sombra Passou por Aqui (1951) –, retorna neste livro como o mestre
de cerimônias do parque, também chamado de Senhor Dark. Suas inúmeras
ilustrações móveis pelo corpo fascinam a todos e ele como que hipnotiza os que dele
se aproximam. Há ainda o Esqueleto, a Bruxa, o Anão, e o Senhor Cooger, que
depois de ir para frente no carrossel quase morre de tão velho e numa sequencia
fantástica – presenciada pelos garotos –, é ressuscitado em uma cadeira
elétrica.
O romance é dividido em três partes: chegadas, buscas e partidas. A
primeira fala basicamente do parque de diversão e o que desperta em alguns dos
personagens. Desta forma, ele não é apresentado em termos narrativos, com suas
atrações e personagens numa sequencia linear. Estes surgem por meio da
interação com os habitantes da cidade, o que torna o relato mais intimista e
particularizado, isto é, a partir do sentimento e ponto de vista de cada um que
interage com, por exemplo, a sala dos espelhos, o carrossel, a bruxa ou o
temível homem ilustrado.
As “Buscas” da segunda parte são realizadas pelos seres, que saem do
parque pelas altas horas da noite, em perseguição aos dois garotos. É que eles
perceberam o que este parque de fato representa, muito mais do que uma simples
e inocente diversão. Os seres querem as pessoas, recrutá-las como suas
possíveis novas atrações, seduzindo-as com os poderes que oferece, como o mais
irresistível deles, a fonte da juventude.
Will e Jim contam com a ajuda de Charles, o pai de Will, um solitário
zelador da biblioteca pública da cidade. Pesquisando nos jornais antigos eles
descobrem que o parque já esteve outras vezes por lá, e que retorna em média a
cada 50 ou 60 anos. Quase depois de uma geração inteira de vida da própria
cidade. Com a memória coletiva esmaecida o parque retorna, captura alguns
poucos dos seus habitantes, mantém para os demais a fachada de um parque de
diversões como os outros e parte para outras paragens da mesma forma que chegou
neste, para depois de anos retornar ao mesmo local.
Charles, Will e Jim se defrontam com os seres da noite, tanto no
interior da biblioteca, nas ruas escuras da cidade e, principalmente, no
interior do parque para onde são fatalmente levados. Em “Partidas” temos uma
viagem de autodescoberta sobre os valores importantes da vida: humildade,
desprendimento, solidariedade, confiança e, sobretudo, alegria. Pois como os
três descobrem, a única arma de que dispõe é a alegria, é o bem-estar, pois o
Senhor Dark e seus seguidores são fortes e quase imortais porque se alimentam
da inveja, do egoísmo, da vaidade e da maldade humana.
É uma história rica em significados que, por si mesma, já evoca imagens
fortes no imaginário das pessoas. A atração por um parque de diversão – ou de
um circo – é como uma abertura para que entremos em um mundo de fantasia, de
realização de sonhos e anseios impossíveis de se alcançar na vida cotidiana,
tão modorrenta e cheia de responsabilidades.
A escolha de uma dupla de garotos de 14 anos é oportuna, ainda mais por
eles estarem na adolescência, aquela fase da vida onde somos invadidos por
várias dúvidas, curiosidades, angústias e possibilidades. Remete à ideia de que
a iminência da vida adulta é cheia de riscos e de que é hora de caminhar
sozinho. Também por aí se pode interpretar que a chegada de uma atração
estranha a uma cidade pequena e de hábitos previsíveis, representa um risco de
desestruturação da ordem.
Por este aspecto, também o ato do tal parque ser do mal poderia
ser interpretado de uma forma conservadora, no sentido de que não devemos ir
muito longe em nossas fantasias, porque elas nos tiram do eixo e nos levam para
caminhos errados ou que não mais controlamos. Dizendo de outra forma, tornar-se
adulto ou ir embora com o parque. Mas com Bradbury tal viés não se dá, porque
os próprios seres de outono são carentes, solitários e contraditórios. Pois se
alimentam de nossas fraquezas e isso é o que está subjacente na obra: a
valorização da amizade, da confiança e, principalmente, o sentimento de
alegria. Para muito além de regras e códigos do que é socialmente visto como
“certo”.
O posfácio é interessante porque Bradbury revela a razão de dedicar o
livro ao ator e dançarino Gene Kelly (1912-1996). É que o autor escreveu um
roteiro para Kelly dirigir. Mas este não encontrou nenhum produtor que se
interessasse, fazendo com que Bradbury transformasse o roteiro em um romance.
Posteriormente, em 1983, foi produzido o longa-metragem, dirigido por Jack
Clayton (1921-1995).
– Marcello Simão Branco
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