Regresso a Zero (Retour à “0”), de
Stefan Wul. Tradução de Maria Adelaide Correia Freire e Raul Correia. Capa de
Lima de Freitas. 177 páginas. Lisboa: Editora Livros do Brasil, Coleção
Argonauta no. 54, 1959. Lançado originalmente em 1956.
No cenário da
ficção científica europeia, a coleção francesa Fleuve Noir exerceu grande
importância, ao revelar vários autores de seu país e com histórias voltadas,
pelo menos em sua fase inicial, às aventuras e space operas, num tom
assumidamente pulp.
Regresso a Zero apareceu na Fleuve Noir
em seu número 78, no ano de 1956, como o livro de estréia de Stefan Wul
(1922-2003), pseudônimo usado por Pierre Pairaul. Wul acabaria por se tornar um
dos mais populares escritores franceses de ficção científica.
Se Wul estreou
e publicou o restante de sua obra nesta célebre coleção de seu país, faz todo o
sentido que quase todos seus livros tenham sido traduzidos e publicados em
língua portuguesa, na equivalente portuguesa da coleção francesa, a Argonauta.
Além disso, Regresso a Zero é o livro
de Wul com mais edições em Portugal. Saiu também como Regresso a “0”, no Clube do Livro e com o mesmo título pela editora
Nova Era, ambos em 1977.
A aventura nos
leva ao futuro do século 37 (!), com um conflito bélico prestes a acontecer
entre a Terra e a Lua. É que desde há alguns séculos todos os condenados por
crimes graves eram deportados para o satélite, sem possibilidade de retorno.
Com isso os proscritos acabaram por colonizar a Lua, criando uma sociedade
autoritária, machista e potencialmente agressiva, pois para os dirigentes mais
idosos, o principal objetivo a ser atingido é se vingar dos terráqueos, com uma
invasão em grande escala.
O serviço
secreto da Terra descobre os planos e envia para a Lua um espião para sabotar
os planos ou, se possível, criar canais de diálogo que possibilite um acordo de
paz. Desta forma, o físico nuclear Jâ Benal se faz passar por um condenado e é
enviado ao nosso satélite natural.
Mal chega e
descobre que sua tarefa não será fácil. Isso porque os selenitas não acolhem,
de saída, os recém-chegados. Deixa que eles lutem pela sobrevivência num lugar
inóspito e desconhecido por pelo menos 15 dias. Caso resista, só então é
admitido como membro da nova sociedade.
Jâ Benal pousa
numa região difícil e tem de lutar bravamente para sobreviver a uma região
pantanosa e contra algumas espécies, especialmente os gorn, pequenos animais –
semelhantes a porcos – extremamente agressivos, inteligentes e carnívoros.
Benal é tocaiado pelos gorns num labirinto com cavernas subterrâneas onde
vivem, mas termina por se safar, mas não sem antes sofrer um sério ferimento na
perna. Vale comentar que a Lua descrita por Wul não guarda nenhum compromisso
com a realidade científica, mesmo da época, mas isso não diminui o prazer e o
envolvimento com as situações descritas.
Como já havia
passado os 15 dias e ciente de que o novo membro era um eminente cientista, o
governo lunar o recolhe e procede a uma operação de emergência. E é aqui que o
romance atinge o clímax da inventividade: uma equipe de cirurgiões é
miniaturizado e enviado para o interior do corpo de Benal. As páginas da
preparação da cirurgia e da aventura dos médicos é puro sense of wonder. Impossível não lembrar do clássico filme Viagem Fantástica (Fantastic Voyage, 1966), dirigido por Richard Fleisher, e não
especular de que possa ter sido inspirado no livro de Wul, escrito dez anos
antes.
Pode até
parecer estranho que tudo isso aconteça quando o tema principal é a disputa
entre a Terra e a Lua pois, de fato, a missão de Benal só começa a ser
efetivamente cumprida após estes interregnos iniciais, mas eles são os momentos
mais inspirados do livro.
Benal é
instalado com todas as condições para continuar seu trabalho de cientista, pois
o governo lunar o quer como um aliado no desenvolvimento de suas armas para
atacar a Terra. Até lhe entregam para viver em sua companhia uma linda loira,
obviamente para amaciá-lo ainda mais.
O que Benal
ignora é que o governo lunar sabe que ele é um espião, e quer saber até onde
ele pretende ir com seus objetivos. Nira Slid, sua mulher, se apaixona por ele,
e acaba por lhe contar tudo. Mas Benal não sabe mais como viver sem ela, e
assim a toma como aliada para cumprir sua missão.
Primeiro ele
procura Kam, cirurgião-chefe que o operou e um amante da paz para se aliar à
sua causa, e buscar uma solução diplomática. Quando esta opção se revela
infrutífera Benal parte para uma série de atos de sabotagem às instalações
militares com o intuito de enfraquecer os objetivos bélicos dos selenitas.
O tema do uso
da Lua como rival da Terra não é incomum no gênero, e certamente o romance mais
conhecido é Revolta na Lua (The Moon of a Harsh Mistress, 1966), de
Robert A. Heinlein (1907-1988), onde os lunares lutam por sua independência
frente ao governo centralizador da Terra. Mas este Regresso a Zero segue uma linha mais despretensiosa, no qual o
próprio título da obra só adquire significado no último capítulo por meio do
desfecho da rivalidade entre terráqueos e selenitas.
Como um
primeiro livro de uma carreira Regresso a
Zero apresentou várias ideias interessantes que seriam desenvolvidas
posteriormente, à exceção da cirurgia por miniaturização, uma verdadeira pérola
de criatividade de realização narrativa. Assim, surge no livro temas como
problemas ambientais na Terra, exploração do espaço, alteração da órbita de um
corpo celeste, instrumentos de anti-gravidade, espécies alienígenas,
colonização de um novo planeta e criação de uma nova civilização.
Embora trate
de um tema sério de conflito político, suas possibilidades dramáticas nunca
chegam a ser muito exploradas, pois o que conta mesmo é a criatividade e leveza
da narrativa, mais preocupada em entreter, sem que isso possa significar,
necessariamente, a diminuição de sua qualidade como obra literária. É que o
foco é na aventura e no entretenimento, e nisso Wul se mostra exemplar.
– Marcello Simão Branco
Nenhum comentário:
Postar um comentário