quarta-feira, 18 de abril de 2018

Regresso a Zero

Regresso a Zero (Retour à “0”), de Stefan Wul. Tradução de Maria Adelaide Correia Freire e Raul Correia. Capa de Lima de Freitas. 177 páginas. Lisboa: Editora Livros do Brasil, Coleção Argonauta no. 54, 1959. Lançado originalmente em 1956.


No cenário da ficção científica europeia, a coleção francesa Fleuve Noir exerceu grande importância, ao revelar vários autores de seu país e com histórias voltadas, pelo menos em sua fase inicial, às aventuras e space operas, num tom assumidamente pulp.
Regresso a Zero apareceu na Fleuve Noir em seu número 78, no ano de 1956, como o livro de estréia de Stefan Wul (1922-2003), pseudônimo usado por Pierre Pairaul. Wul acabaria por se tornar um dos mais populares escritores franceses de ficção científica.
Se Wul estreou e publicou o restante de sua obra nesta célebre coleção de seu país, faz todo o sentido que quase todos seus livros tenham sido traduzidos e publicados em língua portuguesa, na equivalente portuguesa da coleção francesa, a Argonauta. Além disso, Regresso a Zero é o livro de Wul com mais edições em Portugal. Saiu também como Regresso a “0”, no Clube do Livro e com o mesmo título pela editora Nova Era, ambos em 1977.
A aventura nos leva ao futuro do século 37 (!), com um conflito bélico prestes a acontecer entre a Terra e a Lua. É que desde há alguns séculos todos os condenados por crimes graves eram deportados para o satélite, sem possibilidade de retorno. Com isso os proscritos acabaram por colonizar a Lua, criando uma sociedade autoritária, machista e potencialmente agressiva, pois para os dirigentes mais idosos, o principal objetivo a ser atingido é se vingar dos terráqueos, com uma invasão em grande escala.
O serviço secreto da Terra descobre os planos e envia para a Lua um espião para sabotar os planos ou, se possível, criar canais de diálogo que possibilite um acordo de paz. Desta forma, o físico nuclear Jâ Benal se faz passar por um condenado e é enviado ao nosso satélite natural.
Mal chega e descobre que sua tarefa não será fácil. Isso porque os selenitas não acolhem, de saída, os recém-chegados. Deixa que eles lutem pela sobrevivência num lugar inóspito e desconhecido por pelo menos 15 dias. Caso resista, só então é admitido como membro da nova sociedade.
Jâ Benal pousa numa região difícil e tem de lutar bravamente para sobreviver a uma região pantanosa e contra algumas espécies, especialmente os gorn, pequenos animais – semelhantes a porcos – extremamente agressivos, inteligentes e carnívoros. Benal é tocaiado pelos gorns num labirinto com cavernas subterrâneas onde vivem, mas termina por se safar, mas não sem antes sofrer um sério ferimento na perna. Vale comentar que a Lua descrita por Wul não guarda nenhum compromisso com a realidade científica, mesmo da época, mas isso não diminui o prazer e o envolvimento com as situações descritas.
Como já havia passado os 15 dias e ciente de que o novo membro era um eminente cientista, o governo lunar o recolhe e procede a uma operação de emergência. E é aqui que o romance atinge o clímax da inventividade: uma equipe de cirurgiões é miniaturizado e enviado para o interior do corpo de Benal. As páginas da preparação da cirurgia e da aventura dos médicos é puro sense of wonder. Impossível não lembrar do clássico filme Viagem Fantástica (Fantastic Voyage, 1966), dirigido por Richard Fleisher, e não especular de que possa ter sido inspirado no livro de Wul, escrito dez anos antes.
Pode até parecer estranho que tudo isso aconteça quando o tema principal é a disputa entre a Terra e a Lua pois, de fato, a missão de Benal só começa a ser efetivamente cumprida após estes interregnos iniciais, mas eles são os momentos mais inspirados do livro.
Benal é instalado com todas as condições para continuar seu trabalho de cientista, pois o governo lunar o quer como um aliado no desenvolvimento de suas armas para atacar a Terra. Até lhe entregam para viver em sua companhia uma linda loira, obviamente para amaciá-lo ainda mais.
O que Benal ignora é que o governo lunar sabe que ele é um espião, e quer saber até onde ele pretende ir com seus objetivos. Nira Slid, sua mulher, se apaixona por ele, e acaba por lhe contar tudo. Mas Benal não sabe mais como viver sem ela, e assim a toma como aliada para cumprir sua missão.
Primeiro ele procura Kam, cirurgião-chefe que o operou e um amante da paz para se aliar à sua causa, e buscar uma solução diplomática. Quando esta opção se revela infrutífera Benal parte para uma série de atos de sabotagem às instalações militares com o intuito de enfraquecer os objetivos bélicos dos selenitas.
O tema do uso da Lua como rival da Terra não é incomum no gênero, e certamente o romance mais conhecido é Revolta na Lua (The Moon of a Harsh Mistress, 1966), de Robert A. Heinlein (1907-1988), onde os lunares lutam por sua independência frente ao governo centralizador da Terra. Mas este Regresso a Zero segue uma linha mais despretensiosa, no qual o próprio título da obra só adquire significado no último capítulo por meio do desfecho da rivalidade entre terráqueos e selenitas.
Como um primeiro livro de uma carreira Regresso a Zero apresentou várias ideias interessantes que seriam desenvolvidas posteriormente, à exceção da cirurgia por miniaturização, uma verdadeira pérola de criatividade de realização narrativa. Assim, surge no livro temas como problemas ambientais na Terra, exploração do espaço, alteração da órbita de um corpo celeste, instrumentos de anti-gravidade, espécies alienígenas, colonização de um novo planeta e criação de uma nova civilização.
Embora trate de um tema sério de conflito político, suas possibilidades dramáticas nunca chegam a ser muito exploradas, pois o que conta mesmo é a criatividade e leveza da narrativa, mais preocupada em entreter, sem que isso possa significar, necessariamente, a diminuição de sua qualidade como obra literária. É que o foco é na aventura e no entretenimento, e nisso Wul se mostra exemplar.

– Marcello Simão Branco

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