por
Marcello Simão Branco
Faz três anos agora em janeiro que estive
na Europa com minha esposa, a Rossana Arouck.
Foi minha primeira viagem ao velho continente e escolhemos como locais de
visitação a Itália – por motivos sentimentais, afinal sou neto de italianos por
parte de mãe – e a Alemanha, por causa da Sandra, uma amiga de muitos anos da Rossana, que mora por lá.
Viajamos num voo da Air France sob alguma
tensão, pois dias antes Paris havia sofrido o brutal e covarde atentado que
vitimou os cartunistas do jornal satírico Charlie
Hebdo. Chegamos à cidade no domingo de 11 de janeiro, justamente no dia
marcado para a grande manifestação de desagravo contra a barbárie e à liberdade
de expressão e consciência convocada por François Hollande, presidente do país.
A tentação de se juntar ao evento era obviamente grande, mas como o aeroporto
Charles de Gaulle é longe do Centro e o tempo de conexão era de apenas algumas
horas resolvemos ficar dentro do aeroporto. Vimos, contudo, soldados armados
com fuzis no interior do local, o que certamente não é rotina, ilustrando o
clima tenso que o país vivia. Pude, ao menos, pegar um exemplar de uma edição
especial do Le Monde com a manchete
“Marcher Contre La Terreur”, que era fartamente distribuído. Além disso, na
livraria dentro do aeroporto não resisti e comprei o “Space Adventure Model
Kit”, uma caixa com miniaturas da conquista da Lua, com o Saturno V, carros e
jipes lunares, o módulo de descida, bandeirinhas e astronautas. Sem querer,
começava também minha incursão espacial e de ficção científica que prosseguiria
por toda a viagem.
Aterrisamos em Roma na noite do mesmo
dia e por lá ficamos por mais três. Conseguimos visitar e conhecer o básico,
como o Coliseu, as ruínas do Forum Romano e os jardins do Palatino, além de uma
tarde no Vaticano. Roma pulsa nervosamente sua vida cotidiana como toda grande
metrópole, mas tem em paralelo uma imponência e beleza histórica que
impressiona. É uma sensação única entrar num lugar como o Coliseu, visitar as
ruínas da residência de Augusto, o primeiro imperador, ou ainda contemplar
arcos como os de Constantino e Tito. Nem precisaria, mas a enorme quantidade de
turistas do mundo inteiro – especialmente chineses! – só reforça este
sentimento. Apesar da fama de certa desorganização dos italianos – mais um
clichê que não se confirma – a cidade é bem sinalizada, os serviços de apoio e
informação aos turistas profissionalizados, e há um cuidado visível de manutenção
dos marcos históricos. Inclusive, perto do Coliseu vimos um sítio arqueológico
que soube ter sido descoberto recentemente, por onde passaria uma linha de
metrô, que terá de ser desviada, pois lá estão as ruínas de parte da Domus
Aurea, o antigo palácio de Nero.
Ficamos hospedados próximos ao principal
terminal rodoviário, Termini, e lá pude visitar livrarias e bancas de jornais.
Há uma quantidade expressiva de histórias em quadrinhos, sendo que Tex e Martin Mystére são muito presentes, assim como uma revista de
suspense e horror chamada Diabolik.
Achei exemplares mais recentes da coleção de ficção científica Urania. Na
esperança de encontrar um livro de um autor italiano de FC publicado na coleção,
Glauco de Bona, que com o romance Cuori
Strappati venceu o Prêmio Urania 2014 para o melhor livro de FC nativa publicado
no país, não comprei nenhum exemplar desta coleção em Roma. Mas não saí de mãos
vazias, pois comprei num sebo o livro Roma
Segreta, de Pierluigi Marrone, para aqueles que já conhecem bem os pontos
históricos da cidade, e procuram por lugares menos conhecidos. Só para matar a
curiosidade, claro, pois não é o meu caso.
Gostamos tanto da cidade que queríamos
ficar mais um dia. Mas como não foi possível trocar de um dia para o outro a
passagem de trem à Florença, partimos com vontade de voltar à capital eterna
algum dia. Pelo menos cumprimos o ritual de jogar a moeda sobre os ombros na
Fontana de Trevi – que, aliás, estava em reforma. Quem sabe?
Em duas horas estávamos no berço
artístico do Renascimento, pois os trens que cruzam a Itália são muito rápidos,
ainda que não sejam os famosos TGVs, como os de França e Japão.
Ao contrário de Roma, Florença é uma
cidade pequena, e seu centro histórico é belíssimo com suas construções
medievais, em especial as catedrais, museus e palácios que estão por toda
parte. Ficamos três dias na cidade e pude, enfim, comprar exemplares de fantascienza – como é chamada a ficção
científica na Itália. Primeiro procurei na rede de livrarias Feltrinelli mas,
de forma surpreendente, não tinha exemplares da coleção Urania. Perguntei então
pela seção de FC com a expectativa de conhecer alguma coisa da FC do país. Mas
as estantes estavam lotadas mesmo é de traduções de autores tradicionais como Tolkien,
Asimov, Lovecraft, King, Clarke, Heinlein, Dick, Pratchett, Adams. Havia também
livros de autores anglo-americanos atuais como, por exemplo, Miélville,
Doctorow, Scalzi, Stross e Alastair Reynolds. Mas deixei a livraria sem comprar
nada, pois não vi nenhuma FC de autor italiano.
Circulando pelas ruelas históricas,
achamos um túnel que é na verdade uma grande galeria de lojas. E lá encontrei
um sebo com dezenas de livros da Urânia. Comprei apenas um Quando Due Modi si Incontrano (número 602, de 1973), uma antologia
com duas novelas: “Quando Due Mondi si Incontrano”, de Robert Moore Williams e
“Le Ragioni Degli Altri”, de Jack Vance. Mas no mesmo dia, achei numa banca de
jornal próxima à estação ferroviária, o exemplar atual da coleção Urania, Astronave Mercenaria, de Mike Resnick
(número 1614), e um livro que não havia visto até então, o Almanacco del Mistero. Pude finalmente adquirir exemplares da fantascienza publicada em janeiro de
2015, ou seja, o que de mais atual havia no momento da viagem.
Astronave
Mercenaria
(Starship Mercenary: Book Three) é o
número 1614 da coleção Urania, que existe desde 1952! Historicamente publica
autores estrangeiros, mas depois de instituir o Prêmio Urania, tem publicado
autores nacionais que vencem o concurso de caráter anual. Basta lembrar que nos
últimos anos revelou Valerio Evangelist, autor de prestígio na Europa,
especialmente pelo romance steampunk Black
Flag, lançado no Brasil pela editora Conrad em 2005.
Urania faz parte de uma tradição europeia
centrada em coleções, assim como a Argonauta, de Portugal – que também teve
início em 1953 e terminou em 2006, com 562 edições –, e a Fleuve Noir francesa,
que existiu por meio século, de 1951 a 2001, publicando 2001 edições.
Felizmente para os italianos a Urania mantém-se viva e forte, ao que parece,
pois publica um livro por mês, e numa rápida pesquisa na internet constata-se
que há todo um culto de fãs e leitores em torno da coleção. Vale lembrar que o
próprio Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC) teve como fonte
inspiradora de criação a coleção Argonauta, por meio do livro Quem é Quem na FC, a Coleção Argonauta, Vol.
1, de R.C. Nascimento, em 1985. Na verdade o CLFC nasceu como uma
associação de colecionadores da Argonauta. Mas curiosamente o culto era de
brasileiros e não de portugueses.
Os livros da Urania valorizam o
relacionamento com os fãs. Não havia seção de cartas – apesar de uma
solicitação para isso do editor no texto de apresentação da edição –, mas além
do romance, há resenhas de livros, artigo que discute os princípios científicos
abordados na obra, chamadas para eventos de FC no país e o anúncio do Prêmio
Urania. Não é um livro convencional, mas sim quase uma revista.
Surpresa mesmo tive com o Almanacco del Mistero. É uma publicação
anual de variedades em torno de FC, fantasia e horror. Apresenta uma enorme HQ do
personagem Martin Mistère em P&B como atração principal da revista, com 91
páginas, “Saturno Contro La Terra”, com texto de Alfredo Castelli e desenhos de
Giancarlo Alessandrini. O restante é fartamente colorido com fotos e
ilustrações de artigos sobre filmes, séries de TV, resenhas de livros, notícias
e o tema da edição, a FC pulp,
através da própria HQ e dos artigos “L´alba dei Fanta-Pulp: Tutte Le Strade
Portano a Mongo”, de Maurizio Colombo e Graziano Frediani”, e “Alieni Divini: E
Venne um Ufo!”, de Gianmaria Contro. Uma revista bonita, que em princípio
lembra um pouco o Anuário Brasileiro de
Literatura Fantástica pela proposta, mas é mesmo um almanaque que junta diversas
seções em torno da FC&F.
Deixamos Florença em 17 de janeiro e
partimos para Veneza. Ficamos dois dias numa das mais surpreendentes e
improváveis cidades, toda circundada por rios e canais que somada à sua
arquitetura medieval e renascentista lhe dá um caráter sem igual. Tivemos a
fortuna de ficarmos hospedados num modesto hotel que nos deu o privilégio de ao
abrirmos a janela avistarmos os canais que circundavam o quarteirão. Claro que
visitamos pontos turísticos tradicionais, como a Praça e a Basílica de San Marco,
e viajamos de barco pelos canais – mas não de gondola, pois custava 80 euros! –
mas o mais legal em Veneza é andar a pé e sentir a beleza singular da cidade.
Depois de Veneza passamos uma noite em
Milão – principal centro industrial da Itália, na região da Lombardia – e logo
cedo voamos para Copenhague, em conexão para Bremen, no norte da Alemanha. Na
capital da Dinamarca uma surpresa: a moeda não é o Euro, mas a Coroa. Mas como
o país integra a União Européia, não houve problema de aceitação da moeda. No
início da noite estávamos em Bremen e pudemos sentir a diferença radical de
temperatura: saímos de 10, 12º C na Itália para – 5º C. º.
Fomos recebidos e ficamos hospedados na
casa de uma amiga da Rossana dos tempos da adolescência, que foi viver na
Alemanha, e está casada e com filhos. Foi bom também porque o marido dela,
embora alemão, fala bem português, pois morou alguns anos em Portugal.
Tivemos três dias inteiros no país, e em
dois deles percorremos Bremen e no outro estivemos em Hamburgo, que fica apenas
uma hora de trem de Bremen. É uma cidade portuária, mas semelhante à Florença
no que diz respeito à sua arquitetura histórica, também medieval, mas com um
caráter mais neogótico, em especial em suas muitas igrejas, muitas delas
construídas a partir da reforma protestante, no século 16. É inverno e a noite
chega cedo, por volta das 16 horas – na Itália, às 17h30 –, mas a cidade é
animada, com vários artistas realizando performances na rua, e instrumentistas
tocando música clássica. Tudo ao ar livre e de graça.
No dia seguinte conhecemos Hamburgo, a
segunda maior cidade do país, e muito diferente de Bremen, pelo menos na parte
da cidade em que estivemos. Próximo ao terminal ferroviário onde descemos, sem
querer paramos no bairro da comunidade turca, enorme no norte da Alemanha.
Parecia que nem estávamos mais no país mais rico da Europa, pois as pessoas
tinham a pele morena e o cabelo escuro, além de não falar necessariamente
alemão, mas sim sua língua natal. Com fome, almoçamos num restaurante turco e
quase fomos expulsos, pois o garçom ficou ofendido quando pedimos cerveja. Não
havíamos percebido, mas o restaurante não era apenas turco, mas também mulçumano.
Mesmo assim ficamos, e a comida estava boa. (Sem comparações, contudo, com a
comida alemã típica, e menos ainda com a italiana. Mas não vou entrar nesta
seara, pois renderia outro texto sobre como os europeus comem bem.)
O que nos chamou a atenção também em
Hamburgo – e de forma ainda mais surpreendente, pois estávamos no país de maior
economia da Europa – é a pobreza, com pessoas pedindo esmolas na rua. E vimos isso também em Roma e em Veneza. Isso
sem falar na farta presença de indianos e africanos na península italiana,
vivendo de bicos em situação ilegal. Em Veneza, inclusive, conversamos
rapidamente com um ucraniano – em inglês – foragido da guerra em seu país que
vivia na rua. Mas os mendigos que avistamos foram alemães e italianos mesmo. Apesar
dos bem-estruturados sistemas de welfare
state, os efeitos da grande crise econômica de 2007 ainda estão visíveis no
coração da Europa.
Na segunda noite em Bremen, na companhia
de Joaquim, o alemão que nos hospedou –, entrei de bico numa festa do Partido
Social-Democrata Alemão (SPD), que governa Bremen há 40 anos. Era pelo
lançamento de um programa da prefeitura sobre a inclusão de pessoas com
deficiência no serviço público do município. Ouvimos um ou outro discurso,
bebemos vinho e saímos aquecidos e de volta para o frio quase polar. Estar na
Alemanha em pleno inverno é como estar num freezer
a ao ar livre, apesar dos quilos de agasalhos que temos que vestir. Apesar
disso só vimos neve na região rural entre Bremen e Hamburgo. E soubemos que
começou a nevar forte em Bremen um dia após nossa partida...
Depois de ter procurado Perry Rhodan em Bremen, acabei achando
numa banca de jornal dentro da estação ferroviária de Hamburgo. Mas não era a
coleção principal, e sim Perry Rhodan Neo,
n. 87, “Ruckkehr der Fantan”, de Michelle Stern. É uma das coleções derivadas
da série que procura reescrever o universo ficcional do herói espacial a partir
de outras premissas, isto é, uma história alternativa que, em linhas gerais,
situa a conquista ao espaço em 2036 e não em 1971, como na linha temporal
tradicional da série. É um romance, portanto bem maior que as aventuras
quinzenais, e também contém seções complementares, como de cartas, humor e
artigos. Sai uma vez por mês.
Apenas no dia seguinte é que, novamente,
em Bremen, pude comprar Perry Rhodan.
Era o exemplar da quinzena, “Die drei Tage der Manta”, de Christian Montillon,
número 2788. Isso mesmo, 2788! Já imaginou acompanhar uma série que esteja num
número como este? Fantástico para quem acompanha, mas desanimador para quem
pega a coisa pelo caminho. Em todo caso, talvez até mais que a coleção Urania
italiana, Perry Rhodan é idolatrada
na Alemanha. Inclusive, o vendedor exclamou: “Perry Rhodan!”. Disse mais
algumas palavras em alemão, mas tive de cortar seu entusiasmo ao dizer, em
inglês, que não falava alemão.
Se na Itália esperava comprar um livro
da Urania, não podia estar na Alemanha e não comprar Perry Rhodan, mas fui surpreendido – assim como com o Almanacco del Mistero – com quatro
séries de literatura de gênero vendidas no país. São revistas de formato
semelhante à de Perry Rhodan, mas de
outra editora, e que publicam séries de aventuras infanto-juvenis de FC,
fantasia, horror e western. Comprei o exemplar de FC Bastei Maddrax die Dunkle Zukunft der Ende, com a aventura
“Daa´Muren unter Sich”, de Lucy Guth, que já está no número 391, e tem
periodicidade semanal!
Se na Itália um dos carros-chefes de sua
FC é a coleção Urania, na Alemanha o pulp
está vivo e forte em revistas de aventuras seriadas. Apesar do boom da FC&F brasileira nestes anos
2000, que inveja de ver livros e revistas populares sendo vendidas a preços
baixos (de 2 a 5 euros) em bancas de jornais espalhadas pelos países. Isso sim ajuda
a fortalecer um fandom, e permite o
surgimento de novos autores, além de manter em parte as carreiras de outros
autores. A FC brasileira tentou algumas vezes, mas o fato é que nunca fomos bem
sucedidos neste seguimento de popularização e desenvolvimento da FC&F.
Depois de duas semanas intensas,
partimos no dia 25 de Bremen para Paris e, de novo sem deixar o aeroporto para
conhecer a cidade luz, rumamos de volta a São Paulo, Brasil. Foi muito legal,
mas é bom estar de volta.