Leitores de ficção científica são muito desconfiados. Traumatizados por décadas de críticas nada favoráveis a suas histórias preferidas, aprenderam a desconfiar de toda e qualquer opinião, especialmente quando vem do mainstream e ainda mais quando é unânime. Os leitores de fc têm na ponta da língua uma ampla coleção de frases feitas usadas pelos críticos, entre as quais se destaca a máxima "Se é bom, certamente não é ficção científica". O trauma é tão intenso que, quando a crítica é favorável, a desconfiança é ainda maior. Porque, afinal, quem nunca entendeu absolutamente nada de fc certamente deve estar enganado. Fica valendo outro velho jargão: "Não li e não gostei" e o preconceito pela crítica acaba por tornar os fãs de fc igualmente preconceituosos. Deve ser por isso que Graça infinita, obra monumental do escritor novaiorquino David Foster Wallace (1962-2008) extremamente bem avaliada pela crítica, não despertou entusiasmo no meio dos fãs de fc quando de sua publicação no Brasil, ainda em 2014 pela Editora Companhia das Letras. O que é uma enorme e inaceitável injustiça porque, neste caso, as boas palavras da crítica em relação ao livro estão cobertas de razão. E o livro é mesmo ficção científica sem nenhuma sombra de dúvida. Mais do que isso: é muito provável que seja o melhor livro de fc já escrito. Mas aí já é o meu entusiasmo pessoal falando.
Graça infinita é um romance massivo de cerca de 600 mil palavras, publicado originalmente em 1996 nos EUA, considerado pela crítica americana como o último grande romance do século 20. Em termos de extensão, não é nenhuma novidade. Há dezenas de livros que têm essa dimensão e alguns são até maiores. Portanto, não é o tamanho do livro que conta aqui, embora ele seja ótimo também por isso. O que torna Graça infinita memorável é que se trata de uma literatura de alta octanagem, repleta de todo tipo de gadgets que a literatura pós-moderna já ousou aproveitar: citações, experiências formais, discursos descontrutivistas, solilóquios em fluxo de pensamento, linguagem não convencional, sexo, drogas, rock'n'roll e violência próprias da cultura popular deste início de século. Mas não só isso.
Há uma história em Graça infinita. Só não dá para saber com muita certeza quem é o protagonista porque a narrativa é de tal forma fragmentada e são tantos os personagens que algumas vezes parece que estamos lendo, de fato, uma coletânea de contos decapitados, passados todos no mesmo universo. Digo decapitados porque a maior parte dessas histórias não tem início e muitas delas também não têm fim.
De forma geral, o livro acompanha a vida dos três irmãos da família Incandenza: Orin, Hal e Mario. Orin, o mais velho, é atleta profissional, jogador de futebol americano com sérios problemas para dormir. Hal é um gênio viciado em maconha que estuda no ATE, colégio voltado à formação de jogadores de tênis de alto desempenho; e o caçula, Mario, é um adolescente mentalmente deficiente e com um defeito congênito (sua cabeça é desproporcional ao corpo). O pai, James Incandenza – chamado pelos filhos de "Sipróprio" –, também ele um gênio da tecnologia ótica, fundador do ETA e cineasta experimental com uma extensa filmografia, suicidou-se alguns anos antes, mas sua herança maldita ecoa fortemente na vida dos filhos e da esposa, que os meninos chamam de "Mães". A família Incandenza vive em Boston, num futuro impreciso no qual a contagem dos anos é patrocinada por grandes corporações (no caso, estamos em AFGD que, por extenso, significa Ano da Fralda Geriátrica Depend) e os países da América do Norte foram politicamente unificados na Organização das Nações da América do Norte – Onan, para os íntimos – que passa por uma situação de instabilidade política com diversas comunidades terroristas lutando pela separação, como os violentos grupos canadenses Assassinos Cadeirantes e Frente de Libertação de Quebec, entre outros. Os grupos disputam a posse de uma arma chamada por eles de O Entretenimento, que nada mais é que uma das diversas versões de Graça infinita, filme produzido por James Incandenza que tem um nível de mesmerização tão potente que leva seus expectadores à morte. Cópias remetidas anonimamente já causaram baixas em cargos importantes do governo e uma exibição em rede do filme – essa sociedade futura é tão viciada em audiovisuais quanto a nossa – pode ser o ato que permitirá resultados efetivos na luta separatista. A curiosa apresentação gráfica do livro, que não tem nada escrito em sua capa, remete justamente ao cartucho de O Entretenimento.
Wallace elabora o cenário desse futuro com uma riqueza de detalhes que beira a de uma enciclopédia e torna o improvável extremamente convincente. Para coroar o capricho do autor, o livro contém um caderno de mais de 130 páginas, em corpo reduzido, com notas tão bem elaboradas que são peças literárias em si, como por exemplo o verbete que detalha a filmografia de James Incandenza, divertidíssima para quem aprecia boa ficção científica.
A obra de Wallace – que se suicidou em 2008 – dialoga com as de outros dois autores associados à literatura pós-moderna: Thomas Pynchon e China Miéville, que também trafegam pela ficção científica e o experimentalismo formal. A diferença entre eles é que Graça Infinita não é uma obra hermética e cifrada. Apesar das ousadas propostas formais e estilísticas, o texto é claro e acessível, focado em dramas explicitamente humanos: não é necessário ser um iniciado em fc ou em literatura pós-moderna para entender o que o autor diz. Talvez seja isso que tenha deixado os fãs de fc tão aborrecidos... azar deles.
— Cesar Silva
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