Visão alienígena: Ensaios sobre Ficção Científica Brasileira, M. Elisabeth Ginway. 210 páginas. Introdução de Andrew M. Gordon. Capa de
Benson Chin. São Paulo: Devir Livraria, 2010.
Depois da
publicação de Ficção Científica Brasileira: Mitos Culturais e Nacionalidade
no País do Futuro, em 2005, M. Elisabeth Ginway tornou-se, com justiça, a
maior especialista em ficção científica brasileira. E não apenas para a
comunidade literária internacional, mas também entre os brasileiros que
acompanham de perto o gênero.
Cinco anos
depois a mesma Devir que publicara seu livro pioneiro nos brinda com este Visão
Alienígena: Ensaios sobre Ficção Científica Brasileira, que reúne os seus
textos mais importantes escritos antes e depois de Ficção Científica Brasileira,
vistos antes em revistas acadêmicas norte-americanas e nas edições de 2005 e
2009 do Anuário Brasileiro de Literatura Fantástica.[1]
Neste segundo
livro, temos uma amostra mais abrangente do trabalho e dos interesses de
Ginway, mas no mesmo sentido de compreender a realidade social e cultural do
Brasil pela perspectiva agora não apenas da ficção científica, mas também do
fantástico literário e do horror.
O livro está
dividido em cinco tópicos diferentes, cada um deles com artigos de temas
semelhantes que estabelecem um profícuo diálogo temático e analítico.
O primeiro
tópico é “O Gênero Ficção Científica no Contexto Brasileiro”, com o mais longo
ensaio do livro “Um Modelo para Analisar a Ficção Científica do Terceiro Mundo:
O Caso do Brasil”, o mais importante do livro. Ela propõe uma espécie de
tipologia conceitual para compararmos as formas como o gênero é praticado tanto
entre os países desenvolvidos como nos em desenvolvimento, do ponto de vista da
análise de ícones básicos do gênero, como o robô e o alienígena, e temas
recorrentes, como a ecologia e a presença feminina, estes dois últimos mais
ligados às transformações modernizantes vividas pelos países em
desenvolvimento, o Brasil em especial, a partir da década de 1960. Também são abordados
temas de épocas mais recentes, a partir dos anos 1980 e sua Segunda Onda, como a
ficção científica hard, o cyberpunk e as histórias alternativas,
entre outros.
Nas palavras
da autora: “A ficção científica escrita no Terceiro Mundo exige ferramentas
críticas diferentes daquelas tipicamente aplicadas à ficção científica
anglo-americana e europeia, pois a mudança de contexto muitas vezes determina
uma reinterpretação das premissas básicas do gênero.” (página 17). Este
argumento defende que o gênero não é primordialmente de “primeiro mundo”, mas
um fenômeno multicultural e, como tal, se enriquece com a comparação de como
diferentes culturas a praticam, expandindo o gênero, tornando-o mais rico,
complexo e democrático. Em suas palavras, “a ficção científica no Brasil (e em
outras nações em desenvolvimento) está modificando o gênero em aspectos que têm
implicações a longo prazo.” (página 55).[2]
Na segunda
parte da obra, três artigos distintos, mas inter-relacionados analisam ícones
clássicos da ficção científica, como os robôs, os ciborgues e a terra
devastada. O objetivo é vinculá-los com aspectos da sociedade brasileira, de
como estes ícones são reinterpretados de acordo com aspectos ligados à sua
compreensão de conceitos como raça, nacionalidade e perspectivas de
desenvolvimento socioeconômico, a partir de uma postura crítica das histórias,
embora como ela mostra em alguns casos, de certa resignação com uma posição
subalterna do país em relação aos de Primeiro Mundo, em especial as histórias
situadas nos anos 1960. Especialmente interessante é sua análise “Do Implantado
ao Ciborgue: O Corpo Social na Ficção Científica Brasileira”, em que é
mostrado, por meio da análise de algumas histórias, como os implantes passam a ser
compreendidos menos como uma invasão com subtexto político, e mais como uma
espécie de assimilação para uso local, brasileiro.
Na terceira
parte, Ginway agrupa artigos que abordam gêneros diferentes, mas próximos, como
a fantasia, as utopias e as histórias alternativas, além da ficção científica hard.
Aqui a análise tem contornos menos comparativos com modelos estrangeiros e
centra-se na compreensão das histórias a partir das alegorias possíveis com
aspectos da realidade brasileira, como a do vampiro tropical como um agente do
multiculturalismo e a reinterpretação crítica da história brasileira pela ótica
da história alternativa que é, para ela, socialmente engajada e politicamente
emancipatória na ficção de Gerson Lodi-Ribeiro. Outra análise é da ficção
científica hard de Jorge Luiz Calife, por meio de uma ótica que ela
chama de híbrida, entre a utopia da conquista espacial e do futuro de
consenso super-tecnológico, com a distopia em sua crítica do período
autoritário. Em suas palavras: “Os romances de Calife são os primeiros a
combinar a escala épica do mito, sense of wonder, e a crença na
tecnologia no Brasil. De muitas maneiras ele faz a ponte entre o otimismo
tecnológico do início do século xx,
e as preocupações quanto ao regime autoritário do Brasil, expressas pela ficção
distópica posterior.” (página 144).
A próxima
seção é dedicada às autoras na ficção científica brasileira, com três artigos,
abordando Dinah Silveira de Queiroz, Finisia Fideli em textos específicos e
outras autoras sobre temas mais gerais e recentes dentro do gênero no país.
Vale destacar a sua observação sobre a inversão nas vozes dos protagonistas
que, num primeiro momento são masculinos, para depois eles serem parodiados e finalmente
as mulheres assumem o papel principal, talvez numa indicação da mudança e lenta
emancipação feminina na sociedade brasileira, ainda que ainda distante de se
constituir numa relação mais igualitária.
A última seção
trata da ditadura militar sob a ótica da ficção científica e do fantástico, com
um artigo mais geral bastante didático e dois sobre a literatura fantástica dos
principais autores brasileiros neste segmento, José J. Veiga e Murilo Rubião.
Em suma, a abordagem analisa as contradições do processo de modernização
econômica do país sob uma direção política populista (nos anos 1950) e autoritária
(nos anos 1960 e 1970). O que a análise de Ginway sugere é que os textos destes
dois autores apontam mais os erros e os excessos que beiram o absurdo, do que a
sinalização de possibilidades de integração social e desenvolvimento na
sociedade brasileira. Talvez possamos dizer que o problema não é o processo de
modernização em si, mas o déficit democrático, a falta de legitimidade, em que
ele foi conduzido.
No conjunto o
livro é muito rico e instigante, pois oferece uma grande variedade de análises
e interpretações agudas e, por vezes, surpreendentes da realidade social e
cultural brasileira, não apenas por ser do ângulo da ficção científica, mas por
vir de uma observadora “alienígena”. Mas o grande mérito está situado mais na
proposta bem-sucedida de compreender o Brasil pela perspectiva cultural da
literatura de gênero do que pelo fato da analista ser uma estrangeira. Isso
porque Ginway demonstra muita solidez em seus conceitos e amplo conhecimento
sobre a ficção científica e literatura brasileira em geral.
Sua
metodologia comparativa exercida, por vezes, através da análise dos efeitos da fábula
e sobretudo pelas associações alegóricas, distinguem este conjunto de artigos e sua
primeira obra como um esforço notável para analisar a cultura brasileira, tanto
do ponto de vista literário, como dos chamados estudos culturais, com uma
coragem sem paralelo em relação aos seus colegas brasileiros em tempos
recentes, ao reunir dezenas de autores e apresentando-os com sua visão
particular e inovadora da literatura que praticam, não temendo as inevitáveis
polêmicas ao analisar autores atuais.
Em resumo, o
que Ginway mostra é a riqueza complexa da cultura brasileira através de sua
trajetória histórica, pela luz de um gênero aberto a novas experiências
temáticas e especulativas, como a ficção científica. Por este ângulo em
particular é que este Visão Alienígena deve ser recomendado, pois demonstra
as possibilidades de riqueza analítica da fc
escritas por brasileiros em compreender a realidade social e cultural de seu
país a partir de cada época.
– Marcello Simão Branco
[1] Em
2005, “O gênero fantasia no Brasil:
Globalizando e abrasileirando O Senhor dos Anéis”, e em 2009 “Um garimpo
no monte de sucata pós-moderno: O pós-humano na ficção científica brasileira
contemporânea (2006-2009)”.
[2] De
fato, os escritos multiculturais ganharam força com o processo de globalização;
uma outra tendência, com possíveis implicações de longo prazo para o gênero,
é a possível convergência entre o gênero e o mainstream.
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