Não
Ficções: A Literatura, a Ficção Científica, os Escritores e seus Escritos,
Braulio Tavares. Capa: Thaiz de Bruÿn Ferraz sobre imagem de Michelle Soares.
192 páginas. São Paulo: Bandeirola, coleção Ensaio e Crítica, 2023.
Este é o mais novo livro
do superlativo Braulio Tavares: autor, compositor, pesquisador, editor, poeta,
fã, e algumas coisas mais. A obra reúne 25 textos de não ficção publicados em
jornais, revistas, coletâneas e fanzines ao longo de quatro décadas. Nesse
sentido, podemos afirmar que representa um balanço significativo de sua
produção e a amplidão de seus interesses. De fato, este último aspecto é
impressionante. Braulio trafega com prazer e facilidade pelos mais diferentes e
surpreendentes meandros da literatura, mas sobretudo com uma perspectiva da
cultura popular, que é de onde ele teve formada sua base de cultura geral.
Mas o que mais sobressai
é o talento em ligar e aproximar temas aparentemente distantes ou pouco
explorados. Como entre a ficção científica e a literatura de cordel, como a
obra de Tolkien com a de Guimarães Rosa, ao analisar as obras de autores com
uma perspectiva de muitos interesses, como ele, os casos do argentino Jorge
Luis Borges (1899-1986) e do inglês Colin Wilson (1931-2013) etc.
Eu já conhecia a maioria
destes artigos, publicados previamente, como dito, mas é a primeira vez que eu
os releio em conjunto. A própria organização dos textos do mais atual ao mais
antigo contribui para a compreensão dos interesses do autor ao longo dos anos.
E o efeito geral impressiona, pois ressalta a erudição, a inteligência e a grande
variedade de assuntos e, o melhor, como o autor consegue dialogá-los de forma
hábil e instigante. Talvez um leitor pouco habituado com suas associações entre
o pop e o erudito fique meio estupefato. Mas não por discordar, e sim por ficar
surpreso como é possível que o autor tenha descoberto,
intuído estas possibilidades. E como elas iluminam de novas formas a
compreensão dos assuntos em questão.
Há textos particularmente
deliciosos que tive o prazer de reler depois de muitos anos como, por exemplo,
“A Ficção Científica no Cordel” – em que se compara duas obras de FC escritas
neste formato –, “The Pulp Jungle” – onde é resenhado o livro homônimo de Frank
Gruber, este um autor dos anos 1930 e 1940 que conta os bastidores curiosíssimos
da comunidade de escritores norte-americanos que tiravam seus ganhos em
escrever para as revistas baratas publicadas nessa época –, o texto sobre Colin
Wilson – a comparação com Isaac Asimov (1920-1992) é tão surpreendente quanto
deliciosa, só lendo mesmo –, o artigo “Folhetim: uma Herança Misteriosa”.
Outros textos importantes
são os que revelam a face do pesquisador obsessivo e apaixonado, como em “O Livro que Mudou a Minha Vida: The
Encyclopedia of Science Fiction”, “Os Labirintos de Malba Tahan”, “Statira e Zoroastes: uma Fantasia
Oriental de 1826”, “As Aventuras de Dick Peter” e “A Rainha do Ignoto: uma Utopia Romântica de 1899”.
Alguns textos eu tive o
privilégio de publicar primeiro, no meu fanzine Megalon, como o de Dick Peter, o sobre Colin Wilson, “Em Defesa da
Literatura Hard” – em que ele revisa o argumento sobre os conceitos de FC hard e soft de seu primeiro livro O
que é Ficção Científica? (Brasiliense, 1986) –, e mais dois fascinantes: “O
Efeito Hoen” e “A Folk Fantasy, de Manly Wade Wellman”. O primeiro sobre a
história de um leitor que “previu” o que seria publicado numa edição de Astounding Science Fiction um ano depois;
e o segundo, sobre a obra de um autor norte-americano que explora as tradições
populares rurais do interior de seu país, o que permitiu que alguém com uma
formação cultural semelhante – Braulio – pudesse fazer analogias com o interior
do Brasil – em especial o sertão nordestino –, além de como o curioso percurso
sobre os livros presentes nas casas de pessoas simples, país adentro, oferece uma
rica informação sobre os gostos culturais de pessoas muitas vezes com pouca formação
educacional formal.
Afora estes todos, há
outros trabalhos instigantes, mesmo que o leitor não conheça profundamente o
assunto, pois Braulio torna o tema interessante, pelo grande conhecimento e o
prazer que compartilha com o leitor. É o caso, em especial, de “A Visão
Cósmica em Drummond e Augusto dos Anjos”, onde compara a cosmogonia dos poemas
“A Máquina do Mundo”, do primeiro e “As Cismas do Destino”, do segundo.
Brilhante.
Ao ler este livro fiquei
a pensar na proximidade artística e intelectual de Braulio Tavares com André
Carneiro (1922-2014). Sim, porque ambos têm em comum o fato de serem leitores
onívoros, tirando disso uma grande vantagem em sua criação artística, coisa
mais rara para as gerações de escritores que vieram depois, mais focados em
temas específicos. Ambos também praticaram a literatura de vários modos: a
prosa, a poesia, o ensaio, o jornalismo, a crônica. Os dois enveredaram por
artes que bebem da literatura, como a música (Braulio) e o cinema (Braulio e
André). Com essa comparação quero chamar a atenção de como a cultura geral é
importante e pode ser uma vantagem para quem a cultiva, ao contrário do que se
propaga atualmente no ambiente competitivo que vivemos, que a vê como uma
dispersão de energia e talento.
Por outro lado, a diferença
mais identificável entre ambos é que o André tinha uma postura mais elitista e
Braulio mais da perspectiva da cultura popular, mas não desvinculado do enorme conhecimento
do mainstream. E que o André tenha
avançado mais na prosa e verso, ao passo que o Braulio tem se mostrado um
artista mais voltado ao ensaio e à pesquisa, embora sua ficção esteja entre as
mais relevantes entre nós. Enfim, talvez não seja coincidência que estes que
são, ao meu ver, as duas personalidades mais notáveis da FC&F brasileira,
tenham esta vasta cultura geral e, mais importante, capazes de associá-las de
maneira competente, e de forma tão natural, que faz parecer simples o que não
é. Em síntese, dois artistas multidisciplinares.
Este Não Ficção... é um livro útil mesmo para aqueles que não tem grande
conhecimento sobre os muitos assuntos – especialmente literários – tratados
neste livro: pela fruição de um texto bem escrito, a clareza de raciocínio, a
vastidão das informações, assim como os exemplos e associações entre os temas,
como já dito, muitas vezes surpreendentes. Eu mesmo fui fazendo, ao longo da
leitura, uma lista com as obras citadas, e a ideia de um índice remissivo foi
particularmente bem-vinda.
Por fim, quero apontar
aqui, para uma eventual segunda edição, o complemento de algumas pequenas
informações. No artigo “O Efeito Hoen”, faltou o ano de publicação do número 61
do Megalon, que é XIII; o mesmo caso
para o artigo “A Folk Fantasy, de Manly Wade Wellman”: ano XI; “Em Defesa da
Literatura Hard”, ano VIII, n. 41, mai/jun/jul 1996; a entrevista com Tim
Powers, além de aparecer numa edição da Isaac
Asimov Magazine, teve parte de seu conteúdo publicado no Megalon, ano VIII, out/nov/dez de 1995; e
no artigo “O Folhetim: uma Herança Misteriosa” não veio indicação de onde foi
publicado. E, posso estar enganado, mas não parece inédito, e sim publicado no
final dos anos 1990.
Braulio também publica
regularmente muita coisa interessante em sua coluna online “Mundo Fantasmo”,
com textos mais curtos e que já renderam a ótima coletânea A Arte de Olhar Diferente (Hedra, 2012). Até a publicação desta
resenha estava na casa de 5067 textos! Digo isso porque espero que Não Ficções... possa ensejar a
publicação de novas obras de ensaio e crítica do autor e de outros. Isso
porque, a crítica tem sido uma vertente da produção brasileira da FCB muito
controversa – especialmente a partir dos anos 1990 –, mas que com esta obra
mostra todo o potencial da beleza do ensaio em si, da contribuição à pesquisa e ao aprimoramento da criação ficcional.
—Marcello Simão Branco
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